Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

segunda-feira, maio 02, 2016

A República dos 7 x 1: da Copa do Mundo ao impeachment

POR RODRIGO ANDRADE*
Quando a seleção brasileira entrou em campo no Itaquerão para o primeiro jogo da copa do mundo, os jogadores em fila indiana com a mão no ombro do jogador à sua frente, me lembrei da pintura de Peter Brueguel, “A parábola dos cegos”, de 1568, em que uma fila de mendigos cegos tropeçam e caem, de acordo com a parábola de Cristo “Se um cego guia outro cego, os dois caem num buraco”. Como pode uma seleção brasileira entrar em campo da mesma maneira que um time de cegos entraria?! E nem precisava ir tão longe para fazer tal associação, pois um pouco antes da copa do mundo houve a copa mundial de futebol de cegos, da qual o Brasil se saiu campeão, e num comercial da Coca Cola veiculada durante o Mundial, esse time campeão tinha o prazer de acariciar a verdadeira copa do mundo, o troféu que viria a ser entregue ao capitão da seleção alemã. E numa cena que seria tocante não fosse a capacidade intrínseca da propaganda de tornar tudo boçal, o nosso time de cegos entra no recinto onde está a taça em fila indiana com as mãos nos ombros do jogador da frente, com a humildade e a dignidade de quem enfrenta dificuldades gigantes.

No caso da seleção brasileira, em vez de humildade e dignidade, havia máscara e demagogia, e a simbologia inscrita na fila de cegos que usava ao entrar em campo acabou sendo a tradução perfeita para o futebol apresentado durante a copa, sem a menor noção de suas limitações, uma ausência total de planejamento futebolístico, de visão de jogo, de qualquer preocupação técnica ou tática, apostando todas as fichas no talento do jogador brasileiro (a esta altura uma figura histórica), na família Felipão, e principalmente no clamor patriótico da torcida e na fé em Deus. A histeria com que os jogadores (e a torcida) cantavam o hino nacional aos berros e no modo como, de olhos bem fechados, os jogadores erguiam seus indicadores para o céu e rezavam antes de começar as partidas, tentando inflamar o ambiente e o time mostram isso (sendo que o time seguia sem a mínima combustão)… Aliás, conseguiram inflamar o time, sim, só que para pior! Já que o destempero emocional de jogadores experientes como o capitão Tiago Silva, incapaz, aos prantos, de bater um pênalti contra o Chile, foi outro fator decisivo para o desastre… Em suma, a seleção brasileira apostou na irracionalidade, apelando para sentimentos nobres (e falsos), se esquecendo de jogar futebol e pagou um preço que jamais sonhou pagar.
Menos de dois anos depois, o Brasil inteiro se vê arrasado por um tsunami de ódio e irracionalidade baseados nos mesmos sentimentos nobres do patriotismo (“o último reduto dos canalhas”**) da fé, da luta do bem contra o mal (que se coloca acima da lei), num maniqueísmo primitivo e fanático (como acontece entre as torcidas de futebol). Uma onda gigante de panelaços, gritos guturais, intolerância e até discursos em prol da ditadura militar varreu o Brasil de norte a sul. Pois a meu ver esse movimento, que teve seu germe nas manifestações de 2013, se plasmou com forma e unidade um ano depois, justamente na Copa do Mundo, em dois momentos marcantes: o vexaminoso xingamento da torcida à presidenta Dilma no jogo de abertura e nos inacreditáveis 7 x 1 contra a Alemanha. O primeiro por razões óbvias, o segundo por ser o desfecho humilhante daquela apoteose de patriotismo e fé. Ninguém esperava 7 x 1, mas o que esperava aquela torcida ignorante de futebol que só sabia cantar ” Sou brasileiro com muito orgulho”? Que cantar o hino nacional à capela ganhasse os jogos, derrubando os adversários como se fossem as muralhas de Jericó? Tentavam ganhar no grito.
E se uma simples derrota num jogo de futebol já é difícil de engolir (a culpa é quase sempre do juiz), imagine uma derrota da nossa seleção, símbolo máximo da nossa excelência, reconhecida como a melhor do mundo, em casa?! Acrescente-se a isso a derrota patética da fé e do patriotismo em tamanho fervor! O baixo nível do nosso time, a profundidade abissal da nossa incompetência em campo é por demais doloroso para ser aceito ou meramente reconhecido e foi simplesmente recalcado, enterrado vivo, e vivo permanece, oculto. Sentimentos ruins como vergonha, desprezo e raiva daquela porcaria de time apodrecendo no espírito dessa gente orgulhosa. Pra onde foram esses fétidos sentimentos todos? Acredito que o recalque dos 7 x 1 é um elemento fundador (entre outros, claro, mais importantes, claro) desse movimento pró impeachment, dessa onda de ódio. Não é a toa que esses manifestantes usavam a camisa da seleção brasileira como uniforme para protestar contra o governo e usam calças e saias brancas, como a seleção brasileira em quase todos os jogos da Copa (embora não contra a Alemanha, diga-se). Em cada brasileiro e brasileira gritando pelo impeachment, um David Luiz, um Fred, um Hulk. A vergonha, a frustração e a raiva que aquele uniforme inspirava foi trocada, neuroticamente, patrioticamente, pela veneração. Me pergunto se, à luz da polarização que divide hoje o Brasil, a seleção brasileira não representa apenas um lado do país, o lado que clama pela pátria, deus e a família, o lado incapaz de criticar o time em nome do patriotismo, que veste com orgulho o distintivo da CBF (símbolo máximo da corrupção brasileira), do lado coxinha, enfim… aliás, noso time vem deixando de ser a seleção brasileira e se tornando a seleção da CBF desde de 2006, quando começou a escalada de vexames do nosso escrete (nosso ou deles?)…
Assim como o 7 x 1, a corrupção geral do Brasil é difícil de aceitar, nossa incompetência é difícil de aceitar, o nosso ridículo é difícil de aceitar, e bem ao modo como Freud explica o conceito de projeção, sentimentos indesejados e recalcados em nós são projetados no outro, como defesa. E a visão religiosa que divide o universo entre bem e mal, e que parece tomar conta do mundo em geral e do Brasil em particular, e dessa ala golpista em especial, favorece tal projeção: o mal é o outro. E se na Copa não tínhamos um “outro” a quem projetar nossa vergonha e nossa raiva (então só restava jogar nossa incompetência para debaixo do tapete), na política sim, passamos a ter, já que a polarização produzida pela onda de ódio que tomou conta do país permitiu isso, e ao se jogar toda a conta da corrupção para o PT, para o governo, abre-se uma pizzaria. É claro que a verdadeira razão para tal é a manutenção do poder político e econômico, algo muito concreto, e não um sutil mecanismo psíquico de defesa, mas acredito que o recalque dos 7 x 1 teve sim um efeito psicológico que contribuiu para a formação das hordas de paneleiros patrióticos antes frustrados e agora exultantes e redimidos.
Seja como for, o Brasil tinha uma copa do mundo em casa para jogar, um prato cheio para um espetáculo do nosso futebol, mas cego para suas próprias limitações técnicas, perpetrou um fiasco. Depois do fiasco, outro prato cheio, agora pra mudar completamente a gestão do futebol brasileiro, mas sobreveio outro fiasco, a continuidade, na figura lamentável de Dunga (um moralizador de estilo militar) como técnico da seleção, que continua cega (e a caminho de ficar fora de uma copa do mundo pela primeira vez). Agora a Operação Lava Jato é uma oportunidade de ouro para se desbaratar um cartel de empresas gigantes que alimenta um sistema corrupto que toma quase a totalidade da classe política e dos governos, seja que governo for, há décadas! Uma chance única de conseguir uma vitória histórica, de dar um salto como sociedade e como sistema político. A Lava Jato é como uma copa do mundo em casa! Mas ao invés de mudança, vemos um golpe de estado de colarinho branco para manter as coisas como sempre foram, com a distorção escandalosa do processo todo em prol da tomada de poder por parte dos chefes da classe política corrupta e fisiológica. Usando a nossa cultura arraigada cada vez mais punitiva, moralista e conservadora, aponta-se toda a máquina policial, jurídica, econômica e midiática contra o governo atual, certamente envolvido no sistema da corrupção geral e perene que domina o país, mas que tem legitimidade popular. Articula-se assim a continuidade – agora vacinada! – com a volta do golpismo. Se expulsa o PT e a visão social da política e então, como diz um locutor de futebol: “segue o jogo”…
E não é que aquela apoteose histérica de patriotismo e fé está ganhando o jogo da política no grito?! O Brasil virou várzea! Um impeachment baseado em provas pífias, lançado por uma advogada que mais parece uma fanática religiosa em transe, liderado pelo inacreditável Eduardo Cunha, aprovado por parlamentares invocando Deus e a família (como os slogans de 64) e até torturadores da ditadura militar, conduzido por um juiz também religioso que, dizem, a tempos se gaba entre amigos de que “ainda vai pegar o Nine Fingers”, usando sem escrúpulos (mas muito bem apoiado e garantido) expedientes como a vergonhosa liberação das escutas, a condução coercitiva etc, sempre em sintonia com o Jornal Nacional para inflamar a opinião pública – é tudo na base da inflamação, como na copa! – levou o pais a um passo de um fiasco histórico, uma derrota humilhante da democracia que pesará para sempre sobre nós. Estamos tomando uma surra ainda mais inimaginável que a da copa. O impeachment será o nosso 7 x 1 em proporções republicanas. O que aquela derrota foi para o futebol brasileiro o impeachment será para a história do país (o 7 x 1 inscrito nos números finais da votação do congresso – 367 x 137 – acabou dando um toque irônico de verdade naquela sessão infame). A comparação pode ser desproporcional, pois quem se importa com a seleção brasileira hoje em dia? Mas justiça seja feita, ela é o modelo exemplar da nação: um time de cegos.
*Rodrigo Andrade, autor também da ilustração,  é artista plástico.
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**Samuel Johnson