167 Rogério Ceni. A difícil convivência com o maior ego do futebol brasileiro

Brasil e Barcelona, amistoso. Abril de 1999. Wanderley Luxemburgo (ainda com w e y) resolveu apostar em Rogério Ceni. Ele poderia se transformar em seu goleiro para a Copa de 2002, que sonhava comandar.
Mal imaginava o treinador que chegaria a CPI do Futebol. E seria revelada a falsidade ideológica do técnico, que atuou a carreira toda como jogador, inclusive nas seleções brasileiras de base, com três anos a mais do que mostrava seu RG. Com a CPI, Luxemburgo perdeu o cargo na Seleção, o w e o y e ainda recuperou os três anos que escondera.
Mas vale recordar a partida de Barcelona, o Brasil poderia ter vencido por 2 a 0, não fossem duas falha clamorosas de Rogério Ceni. Ele largou a bola em dois lances e deu o empate ao time catalão.
Nos 22 anos de Jornal da Tarde, cobri muito mais Corinthians e Palmeiras. Só que muitas vezes tive de ir ao São Paulo. Nos anos 90 e início dos anos 2000, quando os repórteres tinham acesso aos jogadores, saía com uma certeza ao deixar da redação e ir ao CCT da Barra Funda. Lá vinha confronto com Rogério Ceni.
Eu adorava.
Rogério Ceni sempre foi um jogador diferenciado. Não aceitava crítica de maneira alguma. Mesmo sabendo estar errado. Ele adorava contestar jornalista, técnico, preparador físico, médico, presidente.
Inteligente e intuitivo, logo percebeu que no mundo do futebol as convicções muitas vezes são vazias. Vi Rogério Ceni fazer jornalistas vividos ficarem sem argumentos e voltarem atrás em críticas mais do que merecidas.
Estava no CCT da Barra Funda quando Rogério tentou explicar a entrevista que deu em Barcelona, quando falhou de forma bizarra e perdeu a chance de ser o goleiro do Brasil na Copa América, na Olimpíada, ser o titular de confiança de Luxemburgo. Perdeu o posto para Dida.
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Na Catalunha, Ceni declarou. "Acho que fiz uma boa partida, mas por dois lances isolados ninguém percebeu isso. As bolas poderiam ter escapado das minhas mãos e algum dos zagueiros ter tirado de cabeça.
"Mas infelizmente saíram dois gols. Foi uma boa atuação e, se não tivesse saído esses dois gols, teria sido uma das melhores atuações de um goleiro nos últimos tempos pela Seleção."
Eu não acreditei quando ele reiterou sua opinião. "Foi uma das melhores atuações de um goleiro pela Seleção. Tirando os dois gols." Falou com segurança, firmeza estudada, encarando aos jornalistas que o cercavam. Não me aguentei.
"Como assim, Rogério? São os gols que decidem o jogo", rebati.
"Mas tire os gols e analise com calma a minha atuação e verá que fui muito bem", falava e procurava olhar de cima para baixo, para intimidar. "Só quem é ou foi goleiro pode avaliar a atuação de um goleiro." Deixava claro que não levava em consideração a minha ou qualquer outra opinião dos repórteres.
Não, por acaso, tinha o apelido de 'presidente' entre os jogadores. Até mais velhos, sempre se dobraram diante da personalidade forte, liderança e obsessão pela vitória de Ceni.
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As entrevistas eram como um jogo de xadrez para ele. Não admitia perder o duelo verbal para nenhum jornalista.
Comecei no JT quando Zetti era titular absoluto de Telê Santana. E já ouvia ouvia falar sobre o potencial de um jovem goleiro nas categorias de base.
Seu nome era Alexandre. Ele tinha as características para ser o novo dono da posição, quando Zetti saísse. Chegou a atuar sete vezes como titular, não tomou nenhum gol, até diante do Nacional do Uruguai, pela Libertadores de 1992. Mas sofreu um grave acidente automobilístico, indo para um churrasco em São Roque, perdeu a direção do carro que dirigia e morreu.
Alexandre tinha um talento que poucos lembram. E que Rogério Ceni tratou de aproveitar. Ele sabia jogar muito bem com os pés. E batia faltas. Mudou a vida do terceiro goleiro.
Só que Ceni ia além. Ele mostrava personalidade forte demais. Era o goleiro do Expressinho, um tipo de São Paulo B, comandado por Muricy, enquanto o São Paulo A, de Telê Santana ganhava o mundo.
Depois de seis anos na reserva, Rogério Ceni se cansou. Tinha uma proposta excelente do Internacional, clube que torcia quando menino. E com coragem, procurou a direção do São Paulo. Ele estava pronto para ser titular de uma grande equipe. Se não fosse no Morumbi, iria para Porto Alegre. Essa atitude inesperada decretou o fim do período de Zetti. E ele acabou vendido para o Santos.A bem da verdade, em 1996, estava muito melhor que seu rival.
Estive no CCT da Barra Funda quando o falecido Mário Sérgio era o treinador. E não permitiu que Rogério Ceni fosse o cobrador oficial de faltas do time. "É uma desmoralização para os jogadores de linha. Não tem cabimento", me disse Mário.
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"Eu tenho de aceitar. Ele é o técnico. Mas nada me impede de treinar", me respondeu Ceni. E, como naquela época, os treinos eram abertos para a imprensa, todos víamos seu talento incrível para bater na bola. As cobranças iam no ângulo, perturbavam os goleiros da base. E irritavam Mário Sérgio e, principalmente, os 'jogadores da linha', que não tinham tanta perícia.
Mário Sérgio perdeu não só a batalha, mas o emprego por sua teimosia.
Rogério Ceni sempre foi assim. Sabia questionar, enfrentar e usar a imprensa como poucos. Mas ele não teve limite. Se no São Paulo podia fazer o que queria, na Seleção Brasileira, por exemplo, não se impôs. Não só por não admitir falhas. Ele teve fases excelentes. Deveria, por exemplo, ser o goleiro titular na Copa de 2006. Só que Ceni não se continha. Chegava a questionar esquemas táticos de técnicos do Brasil.
Ele foi ingênuo. Acreditava que seus questionamentos feitos na concentração não vazavam para a imprensa. Vazavam. Assim como o descontentamento dos treinadores por terem suas escolhas táticas questionadas diante do time.
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Eu e Darci Filho, um excelente radialista gaúcho, estávamos no voo da Seleção que ia para a Copa de 2002. Neste bendito avião, vi Rogério Ceni ir até a cabine do piloto. Resolvi falar com ele, Darci Filho quis ir junto. A cena foi surreal.
"Rogério, você sabe por que seu espaço é limitado na Seleção? Você é muito individualista. Contesta a tudo e todos. Suas queixas irritam treinadores. Enquanto você questionar os técnicos perante os outros jogadores, nunca será titular. A Seleção é muito diferente do São Paulo."
Rogério Ceni ficou branco. Ele nunca foi com a minha cara. O goleiro teve uma atitude incrível quando o então repórter da extinta rádio Gazeta, José Diniz Neto, sofreu grave acidente. O alegre jornalista ficou manco, com problemas de locomoção. Logo perdeu espaço, virou produtor. Ceni sabia que o salário de Diniz seria muito baixo e o contratou como seu assessor de imprensa pessoal.
E fui logo tentar com Diniz, uma exclusiva com Ceni.
"Bicho, o Rogério fala com o mundo inteiro, menos com você. Pode esquecer. Você desce o cacete nele, ninguém faz isso. Não vou te enrolar, que não sou disso, Cosme. Não tem entrevista."
Ouvi e guardei a resposta. Realmente, dos inúmeros jogadores importantes com quem convivi, Rogério e Carlos Tevez foram os únicos que não fiz exclusivas. Tevez, quando passou pelo Corinthians, só falou para a TV Globo. Ceni seguiu escolhendo jornalistas para ser entrevistado.
Mas naquele voo, fiz questão de falar tudo o que pensava para Ceni. Darci Filho sempre foi um grande companheiro nas coberturas da Seleção. E foi meu guarda-costas, impedindo Rogério de sair daquele 'aconselhamento'. Também confirmou ao goleiro o quanto sua fama egocêntrica era enorme nos bastidores do futebol brasileiro. Inclusive no Rio Grande do Sul.
A situação durou incômodos minutos, até que Ceni voltasse para seu lugar no avião. Mas nada mudou. Ele seguiu o mesmo. Treinando mais do que todos os companheiros. Jogando machucado. Sendo, com certeza, o jogador mais dedicado da história do São Paulo Futebol Clube.
Mas arrogante em suas entrevistas. Colecionando ressentimentos entre os jornalistas. Setoristas, mesmo são paulinos, detestavam quando tinham de entrevistá-lo. Havia uma repórter que diariamente se dizia tão campeã do mundo quanto ele. "Gente, ele não entrou em campo em 2002. Eu também, não. Se ele é campeão, eu também sou."
Rogério buscou impor suas ideias aos treinadores que o comandava até o último dia de sua carreira. O técnico dando ou não espaço aos seus palpites. Quem ficou contra ele sentiu sua força. Como Ney Franco.
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Por isso não foi titular em 2006, mesmo depois de sua soberba atuação contra o Liverpool, sendo o grande personagem do título mundial do São Paulo. Vivia fase muito melhor do que a do titular Dida.
Acompanhei também toda preparação na Suíça. E foi possível perceber que em Weggis e, depois na Alemanha, que Ceni seguia sempre sozinho, isolado. Sem poder algum no grupo. Enquanto Dida permanecia calado, titular absoluto. Júlio César treinava na linha.
E Adriano, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Fenômeno e Roberto Carlos iam para as noitadas até as cinco da manhã, nas várias folgas que Parreira cedia. O fracasso da Seleção não foi por acaso.
Até o final da carreira de Ceni, fui algumas poucas vezes ao CCT, depois de 2006. Em nas raras coletivas do goleiro que participei, ele sempre me encarou e demorava para dar suas respostas, pensava com calma. E confrontava cada pergunta, cada questionamento. Como se respondesse àquela conversa forçada no avião.
Tenho a convicção que, se aprimorar seus conhecimentos táticos, Rogério Ceni poderá sim ser um grande treinador. Mas tem de aprender lidar com os dirigentes. Não ser ingênuo como foi nesta primeira passagem no São Paulo. Usado como cabo eleitoral de Leco e o homem que legitimou o milionário novato Vinicius Pinotti, como o dono do futebol do clube.
Precisa entender, explicar e até aceitar as críticas e questionamentos da imprensa. Principalmente quando estiver errado. Algo que não admite nem para o espelho.
Seu ego foi o grande trunfo da carreira.
Mas também a maldição para Rogério Mücke Ceni...
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