Por Patrick Cruz | Para o Valor, de Brasília
Tibério Barreto era professor de biologia do Lyceu Paraibano, tinha 41 anos e era torcedor do Auto Esporte. No dia 9 de março, ele não estava em uma das arenas que estão sendo erguidas para a Copa do Mundo, mas no Estádio Almeidão, em João Pessoa. Foi lá que Barreto fez o penúltimo ato de sua vida: comemorar o gol do Auto Esporte que garantiu o empate do Macaco Autista - apelido do clube fundado por taxistas em 1936 - contra o Sousa pelo Campeonato Paraibano. Três semanas antes dessa partida, o Almeidão, em obras, estava interditado. Segundo os argumentos apresentados na ocasião pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), o estádio não oferecia condições de segurança aos torcedores. Novos laudos foram obtidos, acordos entre as autoridades, selados, e o estádio foi liberado.
O penúltimo ato do professor Tibério Barreto na vida foi comemorar um gol do Auto Esporte. O último foi cair no fosso que separa a arquibancada do Almeidão e o gramado do estádio. Com a queda, Barreto - vivendo o futebol, perto do clube que amava, mas longe de qualquer pompa ou holofote associados à Copa do Mundo - morreu, vítima de traumatismo craniano.
Existem no Brasil 30 mil jogadores de futebol e 684 clubes profissionais. Embora a Copa do Mundo dê um pouco a impressão de que o esporte mais popular do país será cada vez mais feito de gramados impecáveis e craques estelares, os números e outras evidências atestam: o futebol brasileiro é muito mais Almeidão que Maracanã, muito mais Auto Esporte que Flamengo, muito mais Tibério Barreto que pay-per-view em alta definição. O frenesi com a aproximação da Copa do Mundo põe em cores mais vivas o rococó arquitetônico das novas "arenas" - termo tornado obrigatório para qualquer praça esportiva que pretenda soar moderna, ainda que não passe de um estádio de futebol -, mas o verdadeiro futebol brasileiro sobrevive em estádios chamados Zerão (Macapá), Joia da Princesa (Feira de Santana, BA), Moça Bonita (Rio), Baixada Melancólica (Santa Maria, RS).
"Com exceção dos novos estádios e dos novos centros de treinamento, feitos por exigência da Fifa, a Copa do Mundo não trouxe outras mudanças ao nosso futebol", diz Alex, ex-jogador da seleção brasileira, meia do Coritiba e um dos líderes do Bom Senso FC, grupo de atletas de elite que se uniu por mudanças no futebol brasileiro. "Quem jogar nas séries A e B após a Copa do Mundo terá estádios lindos para praticar futebol. Esse é o maior benefício."
Como são 20 clubes na série A e 20 na B, serão poucos (menos de 6%) os que desfrutarão do benefício citado por Alex. A modernização (ou construção) de estádios nas principais capitais do país é, sim, um avanço para o futebol brasileiro, mas talvez seja pouco retorno para tanta expectativa criada - ao menos segundo a visão de muitos atletas, treinadores e dirigentes de pequenos clubes do interior do país ouvidos pelo Valor.
Algumas declarações têm um quê de ressentimento com os efeitos colaterais trazidos pelo mundial. "A Copa diminuiu o tempo de duração dos estaduais. A maioria dos jogadores vai ficar desempregada no meio do ano", diz Gênesis Fernandes, atacante que defendeu o Formosa no Campeonato Brasiliense entre fevereiro e março. Mazelas do calendário à parte, Gênesis, com seu nome bíblico, renovou a fé em um futuro melhor e acertou transferência para o Tocantinópolis, de Tocantins, no início do mês.
(Uma explicação sobre a dinâmica do futebol que não aparece no horário nobre: em Estados sem clubes nas principais divisões do futebol brasileiro, os estaduais e copas regionais costumam ser mais extensos. Assim, as federações preenchem o calendário dos clubes que não estão em nenhuma das quatro divisões do Brasileiro.) Para torcedores dos grandes centros, habituados a estádios colossais e competições transmitidas pela TV, o rebaixamento para a segunda ou terceira divisões do Brasileiro é a antessala do fim do mundo. Mas, para todos os mais de 600 clubes que não estão entre os 60 que disputam as séries A, B ou C do Brasileiro, a Série D, patamar mais baixo do nacional, é um luxo. É impensável para torcedores do andar de cima do futebol, mas, para 90% de quem vive o mundo do futebol brasileiro, a verdade é esta: Série D não é demérito, mas sonho de consumo.
Meu ano por um jogo
Às vezes, uma só partida vale por toda a temporada. O Náutico Futebol Clube, homônimo do Náutico pernambucano, foi campeão estadual de Roraima em 2013. O título deu à equipe o direito de representar o Estado na Copa do Brasil neste ano. A competição, com 87 participantes na edição 2014, é, segundo o chavão da crônica esportiva, o "campeonato mais democrático do país". Com representantes de todos os Estados, ela põe na mesma tabela os clubes da elite - os gigantes Grêmio, de Porto Alegre, e Cruzeiro, de Belo Horizonte, são os maiores campeões do torneio, com quatro títulos cada um - e times periféricos. Tira a sorte grande o clube pequeno que consegue avançar no torneio, disputado em partidas eliminatórias.
Foi o caso do Linhares (ES) e do 15 de Novembro de Campo Bom (RS), que chegaram às semifinais em 1994 e 2004, respectivamente. O 15 de Campo Bom ainda pôs uma cereja sobre o bolo: naquela campanha, o clube apresentou ao país o treinador Mano Menezes, que depois faria sucesso no Grêmio e no Corinthians e chegaria à seleção brasileira, comandada por ele entre 2010 e 2012. Mas Linhares e 15 de Campo Bom são anomalias estatísticas. Para os pequenos, como o Náutico de Roraima, chegar à Copa do Brasil é um fim em si. Na primeira rodada, em Boa Vista, o clube enfrentou a Ponte Preta, clube de Campinas (SP) que está na Série B do Brasileiro. Se vencesse, empatasse ou perdesse por menos de dois gols de diferença, o Náutico teria a primazia de viajar a Campinas para enfrentar a Ponte no segundo jogo da série eliminatória. Não deu. O Náutico perdeu por 4 a 1 para a Ponte Preta, que viajou a Boa Vista com um grupo inteiro de reservas, incluindo o técnico.
"Como o público no estádio é pouco, a renda não cobre nem a despesa para a realização dos jogos", diz Adroir Bassorici, presidente do Náutico. "Só no jogo contra a Ponte Preta tivemos R$ 8 mil de prejuízo." Ainda assim, a goleada foi o que de melhor aconteceu ao clube nessa temporada. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) paga prêmios a todos os participantes da Copa do Brasil. A premiação engorda cada vez que a equipe avança no torneio. Para o Náutico, eliminado na primeira partida, foram destinados R$ 160 mil. O dinheiro cobriu parte do buraco nas contas do clube, que fechou 2013 sem pagar dois meses de salário. "Mais do que triste, fico envergonhado de ficar devendo. Acabam duvidando da índole da gente."
A Copa do Brasil é um dos poucos momentos em que os clubes periféricos conseguem alguma projeção para o grande público. A cobertura da imprensa costuma apelar à imagem clichê do confronto entre Davi e Golias nas rodadas iniciais da competição, quando clubes grandes e pequenos se enfrentam. O tom não raro condescendente da cobertura pouco deixa entrever que a convalescença de clubes como o Náutico de Roraima é também um sintoma dos males do futebol brasileiro: calendário sobrecarregado para grandes clubes e raquítico para os pequenos, campeonatos desorganizados e pouco atrativos, amadorismo.
Décio de Abreu, o Esquerdinha, é o treinador do Náutico. Ele foi revelado pelo Palmeiras no início da década de 80, pelo qual disputou os melhores campeonatos, nos melhores estádios. Hoje, Esquerdinha vive o antiglamour do futebol brasileiro por excelência. Ele chegou ao Náutico na manhã de 12 de março - e o jogo contra a Ponte Preta foi poucas horas depois, à noite. Por falta de dinheiro para as inscrições, os últimos jogadores haviam sido inscritos pelo clube na véspera. Esquerdinha foi ponta-esquerda, posição que exigia virtuoses da bola - e tão escassa era a oferta de solistas para a função que ela acabou praticamente extinta. O ex-atleta - operário de uma posição tão rara que é hoje quase artigo de museu - vê mais do que apenas fatalismo no combalido futebol do interior do país. "O enfraquecimento dos clubes pequenos compromete a formação de novos jogadores", diz.
Sem pequeno não há grande
Romantizar o futebol à moda antiga - o do amor à camisa e do culto ao drible em detrimento da objetividade desalmada e insossa do gol - é quase um esporte nacional por si só. Mas, idealizações à parte, é fato que, sem os clubes pequenos, o futebol brasileiro não seria a potência que é. É disso que trata a preocupação de Esquerdinha. O maior jogador de todos os tempos, Pelé, eternizou-se como atleta do Santos, mas foi nas divisões de base do Bauru Atlético Clube que ele apareceu para o mundo. Se não fosse o BAC, será que o Santos o teria descoberto? Foi o pequeno Jabaquara, de Santos (SP), que revelou Gylmar, goleiro titular da seleção brasileira nos títulos mundiais de 1958 e 1962. Do Novorizontino, clube de Novo Horizonte (SP), saiu Márcio Santos, zagueiro titular na conquista da Copa de 1994. Antes de ganhar fama no Cruzeiro, de Belo Horizonte, Ronaldo, campeão em 1994 (como reserva) e em 2002 (como titular e artilheiro), destacou-se nas categorias de base do São Cristóvão, clube carioca que hoje disputa a terceira divisão do estadual do Rio.
Se a formação de jogadores é um problema crescente por causa do enfraquecimento dos pequenos clubes, como diz Esquerdinha, ainda assim os novos talentos continuam a surgir. Talvez por teimosia. A trajetória errática da carreira do goleiro Adeilson Batista é a regra, e não a exceção, no universo dos jogadores de futebol. Ele está hoje em seu oitavo clube como profissional, o União Cacoalense, que disputa o estadual de Rondônia. "Se chegarmos às finais, vamos jogar até maio", diz Adeilson. "Depois disso, futebol só no segundo semestre. Até lá, a maioria vai ficar sem clube, sem emprego, sem salário."
Adeilson tem 23 anos, idade com que muitos jovens egressos das faculdades e admitidos por grandes empresas estão começando em programas de trainee. Mas ele já tem milhagem que muito trainee vai demorar anos para acumular. O goleiro rodou por clubes do interior do Paraná, seu Estado de origem, Santa Catarina, Mato Grosso e, agora, Rondônia. Já chegou a ficar nove meses sem clube. Nesse intervalo, deu aulas de futebol em uma escolinha e trabalhou "com o que aparecia": segurança, entregador de panfletos, servente de pedreiro. "Só permanece no futebol quem tem um objetivo e acredita nesse sonho", afirma.
O discurso é um lugar-comum. Todo atleta, do início ao fim da carreira, quer completar a trinca ser descoberto-chegar a um grande clube-jogar no exterior. E o sonho de tantos aparece nas contas nacionais. Segundo o Banco Central, as transferências de atletas para outros países movimentou US$ 2,75 bilhões desde 1992, quando o levantamento começou a ser feito. Esse montante é quase US$ 1 bilhão a mais do que o faturamento do McDonald's no Brasil no ano passado. De 2009 para cá, as transferências somaram US$ 1,1 bilhão.
Não é apenas o lugar-comum que move esse exército de sonhadores. "Existe também um fator racional na decisão desses jogadores de perseguir uma carreira que todos sabem ser uma aposta de alto risco", comenta Antônio Jorge Gonçalves Soares, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "É uma carreira em que poucos fazem sucesso, mas de grande prestígio social e que paga altos salários - e o garoto não precisa fazer faculdade para isso."
No Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo, o professor tem participado de pesquisas sobre o universo educacional dos atletas. Por ser um acadêmico, a pergunta e conclusão do professor - ao menos para o senso comum - não deixa de ser surpreendente. "Que benefício esse menino teria se, em vez de se dedicar à tentativa de construir uma carreira no futebol, se dedicasse com afinco aos estudos no ensino médio?" Como as escolas técnicas são poucas, raciocina o professor, o ensino médio não é um fim em si.
Em um de seus levantamentos, Leonardo Melo, também integrante do laboratório, deu mais base científica ao raciocínio. Atletas das categorias de base de 13 a 20 anos pesquisados por ele em 2010 cumpriram média de 25 horas semanais de treinos e preparativos. Em sala de aula, os estudantes que não perseguiam a carreira esportiva cumpriram as mesmas 25 horas. Isso significa que o mesmo menino que chega aos 18 anos sem treinamento formal para nenhuma profissão - caso se concentre mais na escola e menos na bola - pode, no futebol, ao menos dar a sorte de conseguir um bom contrato. "Mas, mesmo que o sonho não dê certo, só o fato de ele ser um atleta é um fator de prestígio em sua comunidade. Sem contar que muitos desses garotos chegam a viajar para o exterior ainda muito cedo. Como o ensino médio, que não prepara para nenhuma profissão, pode competir com isso?" O ensino médio precisa ter "terminalidade" para preparar os garotos para algo além do vestibular, teoriza Soares.
Vim, fui, parei e voltei
Isso não significa que os garotos estudiosos deixam de sonhar. O atacante Fabiano Bandeira começou no futebol nas divisões de base do Madureira, clube da zona norte carioca, e depois passou por América e ABC, os dois principais clubes do Rio Grande do Norte. O jovem atleta desistiu de jogar profissionalmente com apenas 20 anos, mas seguiu no mundo da bola: como aluno da faculdade de educação física e jogador do time da universidade, o que garantiu a ele a bolsa de estudos que assegurou a conclusão do curso - e a permanência nos campos. Fabiano é professor concursado da rede pública estadual de ensino do Rio e está concluindo uma pós-graduação em administração e marketing esportivo. E a bola? Em 2013, o atacante decidiu voltar a jogar profissionalmente. Ele acabou como capitão do União de Marechal, clube da terceira divisão do estadual do Rio.
Fabiano (ainda) não conseguiu realizar o sonho de criança de defender o Botafogo, seu clube do coração. Mas sem dramas. Aos 30 anos, ele diz que sua meta atual é conseguir um clube médio para atuar no Brasil ou então uma transferência internacional. Não precisa ser uma potência no esporte, como Inglaterra ou Espanha, diz o atacante, mas um país onde ele ao menos seja remunerado dignamente.
"Com o tempo, as metas mudam", observa o professor-jogador, que hoje concilia as duas atividades. "Mas de repente posso ir para um clube pequeno ou então me surpreender com uma proposta melhor do que o que imagino no momento. O futebol é imprevisível." Tão imprevisível que, em 2013, durante um treino, Fabiano foi convidado para um teste como ator. Foi assim, em um clube pequeno, que ele teve a oportunidade de se transformar no intérprete de Djalma Santos, melhor lateral-direito da Copa de 1958, no filme "Pelé", produção americana escrita e dirigida pelos irmãos Michael e Jeff Zimbalist que contará o início da carreira do rei do futebol. Vincent D'Onofrio no papel do técnico Vicente Feola e Seu Jorge no de Dondinho, pai de Pelé, são os nomes mais conhecidos da produção. O filme será lançado em maio.
Cerne das demandas do Bom Senso FC é a racionalização do calendário, a melhora das condições dos estádios e o "fair play" financeiro
Com o filme, Fabiano certamente há de ter mais gente para aplaudi-lo do que teve o atacante Acerola em 27 de fevereiro. Naquele dia, o time de Acerola, o Legião, enfrentou o Atlético Ceilandense pelo Candangão, o campeonato brasiliense de futebol. No improvável horário das 10 horas (de uma quinta-feira, e não era feriado), o Ceilandense derrotou o Legião por 2 a 1 - e a contenda teve como testemunhas nove pagantes nas arquibancadas do Estádio Bezerrão. A renda do jogo foi de, redondos, R$ 90, dinheiro que daria para comprar quatro entradas inteiras para os cinemas de Brasília. "Melhor seria se tivesse torcida", diz Acerola. "Mesmo que fosse torcendo contra."
Até o momento, o campeonato brasiliense de 2014 tem média de 1.025 pagantes por jogo. No ano passado, o Candangão teve média de 1.176 pagantes, segundo levantamento da Pluri Consultoria, o que o colocou na posição de 14º estadual no ranking da média de público. Teria sido bem pior se na final entre Brasiliense e Brasília, vencida pelo Brasiliense, os ingressos não tivessem sido vendidos ao preço simbólico de R$ 1 (ou, em muitos casos, distribuídos gratuitamente pelo governo do Distrito Federal). Dos 88 mil espectadores do Candangão do ano passado, 22 mil (ou 25% do total) estavam nesse único jogo, o primeiro do novo Estádio Mané Garrincha. O estádio, construído para a Copa de 2014, tem capacidade para 71 mil espectadores.
O gigantismo e o raquitismo
No contraste entre o gigantismo do Mané Garrincha e o raquitismo do campeonato brasiliense ficam explícitas algumas das penúrias dos pequenos clubes do futebol brasileiro - coisa que Copa do Mundo alguma parece capaz de corrigir. O estádio é novíssimo, mas o campeonato que mais deveria usufruir dele programa jogos em horário comercial, atrai espectadores que podem ser contados nos dedos de uma mão, realiza partidas esquecíveis. A mudança de calendário resolveria problemas do gênero?
"Nas discussões sobre alternativas para melhorar o futebol brasileiro, fala-se muito em calendário, mas essa não é a única prioridade", diz Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo e da Federação Nacional de Atletas Profissionais de Futebol. "Estamos discutindo calendário há anos. Sobram propostas." Falta mais ação política da categoria de atletas, paciência para discutir e rediscutir ideias e propostas com clubes, federações e as TVs que transmitem os diferentes campeonatos, avalia. Mas, em uma carreira tão efêmera, é difícil manter a coesão entre pessoas que querem vencer na vida o mais rapidamente possível, seja qual for a fórmula das competições ou as condições de trabalho nos clubes.
O Bom Senso FC atraiu holofotes ao reunir nomes de peso, entre eles os goleiros Dida (Internacional) e Rogério Ceni (São Paulo), o meia Zé Roberto (Grêmio) e o volante Gilberto Silva, campeão do mundo com a seleção em 2002. O cerne das demandas do grupo é a racionalização do calendário (mais jogos para os times pequenos e menos jogos para os grandes), a melhora das condições de segurança e conforto dos estádios e o que chamam de "fair play financeiro", um sistema de controle das finanças dos clubes para evitar que os dirigentes gastem mais do que arrecadam.
As ideias soam sensatas, mas ainda não estão na ordem do dia dos artistas do espetáculo. "Às vezes parece que as ideias deles [jogadores de elite] beneficiam só quem está em grandes clubes, com bons contratos", comenta o atacante Acerola - embora admita não estar totalmente familiarizado com as ideias em pauta. O próprio Alex, meia do Coritiba e um dos líderes do movimento, reconhece que o diálogo ainda não é fluido. "A união entre os jogadores ainda é, com certeza, um grande impasse. Acredito que os jogadores de elite têm que começar a tentar as mudanças porque têm exposição na mídia nacional e podem usar isso a favor. É nossa tentativa."
O que vai e o que chega
A Copa do Mundo pode ter renovado as esperanças de mudança no futebol brasileiro entre os otimistas, mas não demoveu Elias Guerreiro da ideia de encerrar a carreira. O agora ex-goleiro tem apenas 25 anos. Elias considera que teve uma carreira vitoriosa, dadas as perspectivas que se apresentavam para ele, filho de pai pedreiro e mãe faxineira, ambos analfabetos. "Viajei pelo Brasil de cima a baixo, conheci a Europa, me hospedei em ótimos hotéis, ganhei títulos, tive reconhecimento", conta ele, que defendeu equipes como Mesquita (RJ), Guarani de Pouso Alegre (MG) e Rio Negro (AM).
Na Europa, Elias jogou uma temporada na Suécia, onde foi campeão da sexta divisão local. Mas já não havia mais estômago para aguentar a gangorra de uma carreira tão incerta. "No primeiro semestre você joga a primeira divisão nos estaduais, com cobertura da imprensa. Mas, no segundo, quem não consegue um clube no Brasileiro, na Série C, acaba tendo que jogar em times sem expressão alguma - e a gordura financeira acumulada no primeiro semestre é queimada." Elias montou uma empresa de assessoria esportiva e está no primeiro semestre da faculdade de educação física em São Paulo, onde mora.
Elias e Christian não se conhecem, mas, mesmo que fossem íntimos, depoimento algum demoveria Christian Silva, o Chris, do ofício de fé das jovens promessas do futebol: perseguir o sonho. O zagueiro é o capitão dos juniores do Internacional de Lages, clube da segunda divisão de Santa Catarina. Aos 18 anos, é pai de Ryan, de 9 meses. Ele mora com o filho, a mulher, a sogra e mais cinco pessoas em uma pequena casa no Passo Fundo, um dos bairros mais carentes da cidade. Em 2013, ainda na equipe de juvenis, o zagueiro foi campeão estadual da categoria na terceira divisão do campeonato e recebeu elogios do técnico da equipe principal, Nasareno Silva. O treinador vê no garoto potencial para seguir carreira como jogador. Até lá, Chris divide-se entre os treinos, os cuidados com Ryan e a venda de maçã do amor e resmas de alho de porta em porta. É com essa atividade que o zagueiro ajuda a custear as despesas da casa. "E o alho vende bem", conta. Um bom dia de vendas rende R$ 70.
Se dominasse o jargão econômico, Chris diria que alho tem grande liquidez. Ele não é fluente em economês, mas entende o desdobramento na prática. Ele relata que no início deste ano acabaram as fraldas de Ryan. Sem dinheiro para comprá-las, Chris pegou o alho que tinha em casa, foi para a rua, lançou-se às vendas e conseguiu o dinheiro de que precisava para comprá-las. Nada de lamento: se era preciso levantar dinheiro, ele foi atrás e conseguiu.
Entre junho e julho, Cristiano Ronaldo, Messi, Neymar serão o centro das atenções do mundo. Chris passará longe da Copa do Mundo. No interior de Santa Catarina, treinando e vendendo alho, continuará a perseguir seu sonho e a criar uma das tantas trajetórias - ora anônimas, ora infrutíferas, ora vitoriosas e quase sempre periféricas - que fazem o futebol brasileiro ser o que é.
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Benê Lima