Primeira matéria da série “Gol da Alemanha” faz raio-x dos principais problemas enfrentados por jovens jogadores no país
POR NELSON LIMA NETO E MATEUS CAMPOS*
RIO - Na manhã de 23 de agosto, cerca de 15 pessoas tentavam, curvadas, espiar algo que se passava dentro do Caio Martins, em Niterói, por meio de buracos enferrujados de um grande portão de acesso ao estádio administrado pelo Botafogo. Eram pais que, proibidos de entrar, tentavam apoiar os filhos aspirantes a craque— e ao mesmo tempo, visualizar se havia algum futuro na aventura. Eles acompanhavam o processo de seleção para as categorias de base do alvinegro, cuja equipe profissional paga seus pecados em 14º lugar no Campeonato Brasileiro. Cerca de 60 jovens, entre 15 e 20 anos, buscavam a sobrevivência no segundo dia da peneira, dividida em três partes.
A cada etapa, uma leva de sonhos se dissolve para os garotos eliminados. Até chegar às equipes adultas, os meninos aprovados têm que driblar uma tropa de adversários, que inclui a falta de estrutura dos clubes, métodos ultrapassados de treinamento, pressão da família e a voracidade de agentes e empresários. Na imensa maioria dos casos, mesmo os bem-sucedidos, ficam pelo caminho alguns valores hoje esquecidos, que diferenciavam o futebol brasileiro dos outros. Um passeio pelas divisões de base dos clubes grandes, médios e pequenos evidencia a pasteurização que reprime talentos e identidades, tornando os jogadores daqui crescentemente desinteressantes.
Atrás do sonho de se tornar uma estrela dos gramados, o volante Rodolpho, de 16 anos, viajou os 410 quilômetros que separam Vitória, Espírito Santo, da cidade fluminense junto a um amigo da família e a outro colega jogador.
— Já estive fora de casa há uns dois anos, mas meus pais não gostaram da ideia. Fiquei algumas semanas no Centro de Treinamentos do Tigres, em Caxias. Mas voltei para casa. Para fazer essa peneira a gente está contando com a ajuda de alguns amigos na questão do dinheiro — explicou o jovem.
Quem quer passar para o outro lado do muro começa a entender essas intrincadas e complexas engrenagens desde cedo. Em um país onde jogadores profissionais de grandes clubes ganham pequenas fortunas por mês, eles passam a ser uma espécie de investimento da família. Cedo ou tarde, precisam dar o retorno esperado.
— Tem pai que cobra mais que os próprios treinadores da equipe. O envolvimento é tão grande que se torna prejudicial. Tanto que, com a evolução do jogador na base do clube, os dirigentes não gostam da presença do pai ali. Quando o garoto se torna maior de idade, eles praticamente ignoram a figura dos pais. Procuram o próprio menino ou alguém que o represente — explica o pai de um dos jogadores do time de juniores do Flamengo que prefere não ser identificado.
Familiares observam ‘peneira’ do Botafogo em Caio Martins através de buracos no portão - / Nelson Lima Neto
Mãe de Nikolas, meia da equipe sub-16 botafoguense, Cátia Gama conta que um jogador de futebol em formação demanda atenção redobrada da família. Na arquibancada do Centro de Treinamentos das Categorias de Base do Vasco, em Itaguaí, ela acompanhava um jogo da equipe do filho contra os donos da casa.
— A gente faz de tudo por esses garotos. Para você ter uma ideia, há alguns anos, nos mudamos para o Rio Grande do Sul pois o Nikolas havia sido aprovado por uma escolinha de futsal do Internacional. Saímos de Vitória e fomos para Porto Alegre — contou.
Durante o intervalo, ela continuou a narrar os esforços de quem abandonou o emprego para se dedicar integralmente ao projeto de carreira do filho:
— Ele jogava pelo futsal do Botafogo e decidiram levá-lo para o campo. Ele já treina há dois anos. Moramos na Zona Oeste e todo dia eu o levo para Niterói. Acordamo 5h30m. É o grande sonho que temos — disse, no plural totalmente verdadeiro.
O jogo, válido pelo Torneio Guilherme Embry, foi realizado na última terça-feira e acabou com vitória do time cruzmaltino por 2 a 1. Marcada pelo baixo nível técnico, a partida foi recheada de chutões e de ligações diretas entre o ataque e a defesa. De fora do campo, os pedidos lembravam os cacoetes dos profissionais: marcação quanto mais melhor, atenção aos 90 minutos e jogar sério. Nesta última, cabe a tradução: nada de dribles, firulas, lances de habilidade. Um clamor por objetividade que iguala bons, médios e ruins.
Jamais por acaso, jogadas baseadas em trocas de passes foram raras. Mas alguns dos jovens destilavam o estilo comum aos profissionais, com tombos teatrais para enganar o juiz e muita reclamação diante das marcações mais banais. E cera, muita cera.
Fora de campo, os torcedores — pais, em sua grande maioria — também pressionavam a arbitragem. A derrota alvinegra gerou uma reclamação grande dos botafoguenses contra o quarteto de arbitragem. Na súmula do jogo, o árbitro chegou a mencionar que o supervisor técnico do Botafogo, Paulo Ricardo Andreazzi, invadiu o gramado para criticá-lo.
— Você não é ruim. Você é muito ruim — disparou o dirigente.
Ao longo do jogo, quem mais chamou a atenção estava à beira do gramado. Como costumam fazer muitos dos treinadores da Série A, o técnico vascaíno Sérgio Bello demonstrava extremo nervosismo com o desempenho da sua equipe. Aos berros, se sacudia inteiro, questionando a todo momento o desempenho de seus comandados.
DEFASAGEM DOS TREINADORES É UM DOS OBSTÁCULOS
Tanta gritaria, no entanto, quase não tem efeito prático na organização tática dentro de campo. Zagueiro titular do time sub-18 do Fluminense, Wendel diz que as equipes brasileiras das divisões de base estão defasadas em relação aos times europeus. Ele, que já participou de torneios pelo tricolor das Laranjeiras no exterior, reclama.
— Os clubes europeus estão muito à frente da gente. A organização deles é absurda taticamente. A linha de quatro deles atrás é muito sincronizada. Lá é muito organizado e aqui é muito individual. Eles jogam muito coletivamente. Começa desde a base e vai sendo aprimorado ao longo do anos. É o que falta aqui no Brasil. Temos qualidade, mas falta uma organização maior — lamentou.
O técnico do São Paulo, Muricy Ramalho, reiterou que não são poucos os problemas que existem na formação do jogador brasileiro:
— O cara (jogador) vem com bastante dificuldade, bastante defeito (para o profissional). Às vezes essas pessoas que ficam do lado do jogador (empresários e treinadores), ao invés de ajudar, atrapalham. Então a gente tem problemas — afirmou o treinador ao canal Sportv.
Professor da Unicamp e especialista em desenvolver métodos de treinamento para as categorias de base, Alcides Scaglia diz que a pressão sofrida por treinadores das divisões inferiores influencia muito na formação dos atletas.
— No Brasil, a partir do sub-13, o técnico já sofre pressão por resultados. Por isso, ele só pensa em se manter no cargo. O que ele faz? Pega jogadores altos e escala no ataque. Na defesa e no meio, meninos que têm o chute forte. E passam o jogo todo com ligação direta. Ele não quer correr risco de perder a bola no meio campo. Isso é visível no processo de seleção. Os jogadores mais baixos não passam na peneira. E o pior: apenas aspectos físicos são avaliados. Os aspectos cognitivos são deixados de lado. Não se avalia o quão inteligentes os jogadores são — explicou. — Se os clubes formam para vender, têm que formar atletas capazes de se adaptar a todos os cenários. O nível de nossos gestores é muito limitado.
A epopeia vivida pela equipe sub-17 do Flamengo em abril deste ano é um exemplo dos problemas de gestão que sufocam o futebol pentacampeão do mundo. Após a classificação da equipe para a semifinal da Copa do Brasil da categoria, os coordenadores do rubro-negro decidiram aceitar um convite para um torneio no Texas, nos Estados Unidos, organizado pela Adidas, fornecedora de material esportivo do clube.
Os jovens atletas embarcaram no dia 12 e, entre os dias 15 e 20, disputaram cinco partidas de 70 minutos cada. Ao serem eliminados no torneio americano, a delegação embarcou no dia 21, à tarde, rumo ao Brasil. A chegada aconteceu ao meio-dia do dia 22, apenas nove horas antes do jogo contra o Atlético Mineiro, pelas semifinais da Copa do Brasil.
— Na volta, tivemos que enfrentar um voo internacional com poltronas não dobráveis. E nisso tudo, a comissão técnica nos falava que daria tempo, não teria problema. A minha condição não era das melhores. Tinha dores na coluna e nas pernas depois do voo.
Seguimos direto para descansar no CT do Audax e todos dormiram o máximo de tempo possível. Chegamos no jogo e, no segundo tempo, ficou claro que o time se arrastava em campo — revela um jogador da equipe que prefere não se identificar.
— Eles (do comando da base) sabiam que o planejamento estava errado. Não acreditavam que a gente passasse pelo São Paulo (nas quartas de final) e enfrentasse o Atlético-MG — concluiu.
ESTRUTURA ATRASADA
Os problemas de organização e estrutura parecem ter atingido a todos os rivais cariocas. Promotora do Ministério Público, Clisânger Gonçalves conta que, há poucos anos, a estrutura do Vasco para os jovens da base era horrível.
— Me deparei com uma situação absolutamente caótica. Os meninos dormiam em quartos sob as arquibancadas em condições bastante precárias. Estava pior do que lugares onde adolescentes infratores cumprem medidas socioeducativas. O refeitório também estava em péssimas condições.
A precariedade do Vasco transformou uma das instalações do clube para os garotos em cenário de um caso fatal. Em fevereiro de 2012, Wendel Júnior Venâncio da Silva, de 14 anos, participava de um teste no CT de Itaguaí quando sofreu uma convulsão e morreu. Não havia médico nem ambulância no local. Um profissional teve de ser chamado às pressas para prestar atendimento de emergência, mas o jovem não resistiu. A Justiça chegou a fechar o local, reaberto após ajustes da diretoria cruzmaltina.
Diretor-executivo da Base do clube desde 2012, Mauro Galvão admite os problemas, mas diz que eles agora fazem parte do passado:
— Hoje existe um cuidado muito grande. Eles estão sendo bem tratados. Deixaram de morar em São Januário e foram para o CT de Itaguaí, que é ótimo e isolado. A comida é muito boa, fornecida por uma empresa terceirizada. Quando a gente chegou aqui, queria resgatar a credibilidade do clube. O jogador que chegar aqui pode saber que vai ter um bom tratamento e que, acima de tudo, os melhores vão sempre jogar.
Fora da questão esportiva, o auxílio dos clubes ao desenvolvimento dos atletas segue longe do ideal. Aspectos como o ambiente familiar, o desempenho escolar e o impacto que gera o sucesso como jogador de futebol são itens que viram problemas com o descaso dos clubes.
— Não existem investimentos em cursos (preparatórios) e assistência social por parte dos clubes — conta Anthoni Santoro, treinador que comandou equipes na base de Botafogo, Flamengo e Fluminense. — Cadê o suporte social e pessoal? É fundamental saber se o jogador mora perto do clube, onde estuda, como é a família dele. O processo para que a coisa dê certo é muito complicado. São detalhes que os clubes precisam olhar. É muita coisa envolvida e muito interesse em jogo — completa.
O interesse mencionado por Anthoni surge desde os primeiros passos desses garotos nos gramados do Brasil. Um achado certeiro em algum campo de pelada pode render milhões de reais em pouco tempo. No Brasil, até os 16 anos, os clubes não podem assinar contratos profissionais com os jovens. Dependendo do desempenho, o assédio de empresários é intenso. Após o desfecho positivo com uma promessa, são raros os casos em que a assistência acontece de forma efetiva.
— Eu vim do interior de Minas Gerais para o Rio e acertei com um empresário. Desde quando cheguei aqui, ele não me procurou mais. — explica uma das promessas do sub-20 do Botafogo. — Moro em Caio Martins e ele não me ligou em nenhum momento nos últimos meses. Sorte que o nosso vínculo está por acabar. Em muitos casos, os empresários plantam o jogador em um grande clube e esperam dar o resultado financeiro que eles querem. São poucos que se preocupam se você está bem, se está feliz. — desabafa.
O apoio aos jovens, quando ele acontece, é feito na forma de regalias’ Muitos mimos dados aos garotos são camisas, tênis e chuteiras para os que estão começando a se destacar, chegando ao pagamento de luvas em dinheiro, a articulação para beneficiar os pais dos garotos — com uma vaga de emprego, por exemplo — ou na compra de bens, como telefones celulares, carros e até imóveis, para garantir o acerto com alguma futura joia do futebol brasileiro.
— Eles chegam nos oferecendo coisas que não tivemos durante a nossa infância. Os piores casos são aqueles (empresários) que acertam com você, até mesmo por desconhecimento da família, e depois somem. No fim de tudo, eles querem mesmo é ganhar dinheiro em cima de você — afirma um jovem do Sub-17 do Flamengo.
Dentro e fora de campo, problemas se acumulam e impedem que jovens promessas brilhem como os torcedores esperam. No país do 7 a 1, uma outra goleada parece estar acontecendo nas categorias de base brasileiras.
— A Espanha tem um modelo de formação, a Holanda tem outro e a Alemanha outro. Cada país trabalha com uma programação para inserir os jovens naquilo que eles consideram o ideal. Aqui não existe isso. Continuamos a achar que precisamos de um jogador fora de série e que, para ganhar, basta jogar a bola que tudo está resolvido. Isso não adianta mais — explica Thiago Scuro, ex-gerente de futebol do Audax e atual diretor executivo do Red Bull Brasil.
*A série de reportagens “Gol da Alemanha” vem sendo publicada semanalmente pelo “Globo a Mais”
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Benê Lima