O
plano estratégico que teve início em 2013 chega à metade com sucessos nas
finanças e frustrações em campo. Eis como o clube pretende resolver os
problemas e iniciar uma supremacia rubro-negra no futebol brasileiro
RODRIGO CAPELO
CADÊ?
César, goleiro formado no Flamengo e jogador-chave para a vitória desta quinta-feira (30). O clube carioca quer converter boa organização em títulos (Foto: Luis Acosta/AFP)
César, goleiro formado no Flamengo e jogador-chave para a vitória desta quinta-feira (30). O clube carioca quer converter boa organização em títulos (Foto: Luis Acosta/AFP)
Na segunda-feira que sucedeu a vitória fora de casa do Flamengo por 3 a 0
sobre o campeão Corinthians, em 19 de novembro, chegaram ao Rio de Janeiro os
analistas da Double Pass. Trata-se de uma consultoria belga que aprimorou a
formação de jogadores de futebol na Alemanha e na Bélgica e hoje está presente
também nos Estados Unidos. Foi a segunda vez que a empresa mandou seus
profissionais à cidade para reuniões com dirigentes do Flamengo, como Rodrigo Caetano, diretor executivo
de futebol, Reinaldo Rueda, técnico
colombiano recentemente contratado, e treinadores das categorias de base. A
primeira visita ocorreu em outubro, quando a parceria começou, e durou dez
dias. Os belgas deverão trabalhar no Flamengo até dezembro de 2018 para
ajudá-lo a reestruturar seu departamento de futebol e, se tudo correr como
imaginado, implantar métodos de trabalho dignos de um Bayern de Munique. Com um
objetivo de longo prazo para lá de audacioso: inaugurar uma fase de supremacia
rubro-negra no Brasil. Há no país ao menos mais meia dúzia de clubes que podem
ter sonho parecido. Nenhum, porém, planejou isso com tanto capricho.
A parceria com os belgas vingou
depois que Fred Luz, diretor-geral do Flamengo, leu uma reportagem de Carlos
Eduardo Mansur no jornal O Globo. O colunista descreveu como os
belgas trabalharam em dois países. Na Alemanha, implantaram novos métodos de
treinamento e formação de atletas em academias de futebol espalhadas pelo país.
A contratante foi a federação alemã, interessada no início dos anos 2000 em
reformular a maneira como se jogava futebol por lá. Vê-se o resultado na
primeira divisão e na seleção. Os clubes da elite passaram a usar 23% mais
jogadores formados na base do que no período anterior a 2000, e os alemães
ganharam a Copa do Mundo de 2014 com direito a 7 a 1 no Brasil. Na Bélgica, a
empresa montou o sistema de formação que revelou Kevin de Bruyne, Hazard e
Lukaku, todos empregados por grandes times europeus e integrantes de uma
badalada safra de jogadores belgas. Fred Luz foi atrás dos belgas para que eles
repliquem o modelo no Flamengo.
Parte do trabalho dos consultores
consiste em definir com maior consistência como o Flamengo se comportará em
campo ao longo dos anos. Joga num 4-4-2 ou prefere ter um atacante a mais num
4-3-3? Leva a bola ao ataque pelo chão ou com passes longos? Marca por zona ou
homem a homem? Hoje, no Flamengo e em qualquer outro clube brasileiro, o
técnico que chega tem o poder de impor suas ideias sem se importar com o
trabalho anterior. Isso ocorre a cada troca de treinador. É tanta mudança de
filosofia que time nenhum tem identidade. O Flamengo quer ter uma. Que bata com
valores da história do clube, resumidos por palavras-chave como “raça”, “amor”
e “paixão”. E que se aplique desde a base. Pelo plano, atletas sub-20, sub-17,
sub-15 e até sub-13 aprenderão desde cedo a jogar como o Flamengo joga. Como se
faz no campeoníssimo Bayern de Munique.
Sob a mesma filosofia, o clube
contratou, em 2016, a consultoria Exos, a fim de diminuir o número de dias de
afastamento de atletas por lesões. Destinou a esse fim R$ 1,1 milhão em janeiro
de 2016. Com novos equipamentos e procedimentos no departamento médico, o
resultado apareceu. Houve 64 lesões em 2015 e 22 no ano seguinte.
O plano de reformulação começou a
tomar forma anos atrás, com a chegada do presidente estatutário Eduardo Bandeira
de Mello e de Luz como diretor-geral. As categorias de base do clube foram
reorientadas para formar atletas para o time profissional – não mais para
ganhar torneios de base, que geralmente são vencidos por adolescentes mais
fortes, mas nem sempre de maior potencial. Há algum resultado visível. Na
semifinal que classificou o time para a decisão da Copa Sul-Americana, na
quinta-feira (30), o atacante Felipe Vizeu marcou os dois gols contra o Junior
Barranquilla, da Colômbia. Lucas Paquetá se destacou com mais uma aparição
raçuda. E o goleiro César brilhou ao substituir o contestadíssimo Muralha:
defendeu um pênalti e fez outras defesas importantes para manter o placar
favorável. A semelhança entre esses três: todos vieram das categorias de base
flamenguistas. Há também desdobramentos financeiros.
Em janeiro de 2017, o Flamengo fez a
maior venda de sua história até ali, ao mandar o lateral Jorge para o Monaco
por quase R$ 29 milhões. Em maio, uma venda maior bateu novo recorde, dessa vez
do futebol brasileiro: a ida de Vinicius Júnior para o Real Madrid rendeu R$
165 milhões. Se o Flamengo mantiver um sistema de formação de atletas
moderno e meticuloso, como o que se propõe, tenderá a se manter na dianteira
das exportações de jogadores – e sem depender excessivamente dessa receita.
Os valores animam um clube que, pouco
tempo atrás, não conseguia manter salários em dia e lutava para evitar um
rebaixamento à segunda divisão. Quando o grupo de Bandeira de Mello assumiu o
clube, no fim de 2012, deu com um endividamento próximo a R$ 730 milhões,
sem dinheiro em caixa para nada. Por isso, traçou um plano estratégico para o
período entre 2013 e 2020, junto com a consultoria de gestão EY, que
estabeleceu ciclos a cumprir. O primeiro eles chamaram de “recuperação da
credibilidade”. Incluiu profissionalizar a gestão, elevar receitas e pagar
dívidas. Isso esteve no topo das prioridades de 2013 a 2015. O ciclo seguinte,
que termina agora, foi de investimentos. Com a dívida reduzida para R$ 430
milhões, começou a haver dinheiro para elevar gastos com contratações de
reforços e salários mais polpudos. Essa fase ocupou 2016 e 2017. Agora vem o
terceiro ciclo, intitulado “virtuoso”, de 2018 a 2020. Se o clube conseguir
cumpri-lo, elevará faturamento e investimento e baixará mais a dívida. No
caminho do plano ambicioso, porém, há cobranças externas e erros.
Nas finanças, o Flamengo realmente
chegou, nos últimos anos, a uma posição privilegiada entre clubes brasileiros.
O faturamento em 2017, estimado em R$ 633 milhões após revisão orçamentária,
tem mais de R$ 350 milhões de dianteira em relação a quanto espera arrecadar o
São Paulo – que nos anos 2000 teve soberania financeira e se tornou o
brasileiro mais próximo da supremacia esportiva. Quanto mais dinheiro entra,
mais pode ser investido em futebol. O Flamengo avalia que sua estrutura
administrativa permitirá, a partir de 2018, tomar empréstimos com bancos de
grande porte a juros baixos como nunca aplicados ao futebol. Os times por aqui
usualmente se financiam com empréstimos de pequenos bancos, dirigentes ricos e
agentes de atletas e pagam os juros altos tipicamente cobrados de quem não
apresenta perspectiva financeira sólida. O clube também prevê que suas contas
passem a ser carimbadas por uma das quatro maiores auditorias do mundo. Hoje
essas auditorias passam longe do futebol por causa da tradição de administração
instável e pouquíssima transparência no setor. Nas finanças do Flamengo, já há
feitos a elogiar e o futuro é promissor. O problema é o futebol.
De tanto ouvir que o clube nada em
dinheiro, ainda que na realidade tenha nadado mais em dívidas que em
investimentos no passado recente, o torcedor exigiu mais títulos. No dia em que
o Flamengo comemorou aniversário de 122 anos, 15 de novembro, algumas dezenas
de torcedores foram aos portões do centro de treinamento do Ninho do Urubu
protestar. “Ô, Caetano, vai se f..., o Flamengo não precisa de você!”, gritavam
os marmanjos. O time ainda não havia vencido o Corinthians e ocupava a modesta
7a colocação no Brasileirão. A faixa amarela pendurada em árvores reforçava a
exigência pela saída do diretor de futebol e “diagnosticava” o problema:
“Salário em dia, porrada em falta”. Em cinco anos de gestão Bandeira de Mello,
o time conquistou dois estaduais e uma Copa do Brasil – pouco, diante das
ambições. Os principais dirigentes rubro-negros, entrevistados na sede do clube
na Gávea por ÉPOCA na véspera, dizem estar habituados à pressão de dirigir o
clube de maior torcida do país. Mas admitem que o desempenho no futebol, aquém
do esperado, realmente os incomoda. “O fato de o Flamengo ainda não dominar
completamente as relações de causa e efeito no futebol, que não é uma ciência
exata, é uma preocupação muito grande”, pondera Luz.
Mais de uma explicação circula nos
corredores da Gávea para desvendar a frustração. O Flamengo não tem, em relação
aos adversários, uma vantagem de investimento digna de um Bayern. Na Alemanha,
o time de Munique dedica coisa de € 260 milhões aos salários de atletas e
comissão técnica, enquanto o Borussia Dortmund, único a desafiar sua
supremacia, gasta a metade. No Brasil, o Flamengo investiu R$ 91 milhões em salários
e direitos de imagem de atletas e comissão técnica no primeiro semestre de
2017, ao passo que Palmeiras e Corinthians destinaram valores próximos, R$ 88
milhões e R$ 78 milhões. O Fluminense, rival tradicional, ficou para trás, com
R$ 59 milhões. A demora para formar o time também atrapalha. Éverton Ribeiro,
principal reforço da temporada, chegou só em junho. O goleiro Diego Alves foi
repatriado em julho. As contratações espaçadas atrasam a preparação física e
tática, além do entrosamento. Por isso, Luz quer que o Flamengo forme seu
elenco ainda na pré-temporada, como faz o Bayern na Alemanha.
Os flamenguistas puseram no plano
estratégico metas ambiciosas: querem se tornar o melhor time de futebol das
Américas e subir na lista de 20 maiores do mundo em termos de faturamento. Isso
implica chegar a uma receita de € 200 milhões e conquistar cinco torneios
nacionais, entre Brasileirão e Copa do Brasil, entre dez possíveis. Ninguém fez
isso no Brasil até aqui. Para chegar lá, seus dirigentes prometem manter a
aposta em planejamento e método, além de não cometer irresponsabilidades
financeiras, a antítese do que se viu no futebol brasileiro dos primórdios até
hoje. E boa vontade não basta. O Flamengo precisará faturar de mais jeitos.
Time de futebol, hoje, ganha dinheiro
com televisão, patrocínio, bilheteria e sócio-torcedor. Uns mais, outros menos.
A direção do Flamengo vê um vasto território inexplorado em plataformas
digitais. A pasta de marketing, dirigida pelo vice estatutário Daniel Orlean e
pelo executivo Bruno Spindel, prevê o lançamento de um reformulado aplicativo
rubro-negro em fevereiro de 2018. Nele, o torcedor terá uma segunda tela para a
partida de futebol – esteja ele no estádio ou no sofá de casa –, com acesso a
dados sobre jogadores e imagens de pré e pós-jogo. A arrecadação, esperam os
cartolas, virá de um modelo que funciona bem em games (apelidado de “freemium”,
uma combinação de algo grátis com algo valioso). Se o plano der certo, o
torcedor usará parte dos recursos gratuitamente e pagará para ter acesso a
áreas exclusivas.Além disso, o Flamengo terá direitos que hoje pertencem à TV
Globo, compradora do pacote de direitos de transmissão. A partir de 2019,
quando começa a vigorar um novo contrato, o clube venderá direitos
internacionais e transmissões por streaming (como no Netflix). Com essas e
outras novas fontes de receita, segundo o plano estratégico, o time partirá
rumo aos € 200 milhões em faturamento, nível similar ao momento atual da
italiana Roma.
Quando se fala na possibilidade de
uma supremacia no futebol brasileiro, devem-se observar os adversários. Os
outros clubes grandes têm finanças desajustadas. O Fla-Flu era igualitário nas
finanças há poucos anos. Os tricolores cariocas faziam compras com dinheiro da
patrocinadora Unimed – empresa então dirigida por Celso Barros, torcedor com
ambições políticas no clube. Um episódio em 2007 ilustra a pujança financeira
do período. Em janeiro daquele ano, o Fluminense tirou craques dos rivais –
Leandro Amaral do Vasco e Dodô do Botafogo. Nos anos seguintes, contratou
Conca, Fred e Deco, entre outros reforços caros. Mas a patrocinadora deixou o
Fluminense em 2014. Hoje, o clube das Laranjeiras está quebrado e tem de vender
jogadores para sobreviver.
O Fluminense, como o Flamengo em
2013, começou em 2017 uma reestruturação administrativa e financeira. O
presidente Pedro Abad chamou a mesma EY para desenhar o plano, contratou Marcus
Vinicius Freire, ex-dirigente olímpico, para a função de CEO e cortou gastos.
Teve algum sucesso: a estimativa de déficit para 2017 encolheu de R$ 76 milhões
para R$ 52 milhões. Mas a saúde do tricolor não se compara mais à do Flamengo.
Em situações financeiras igualmente delicadas estão Vasco e Botafogo. Fora do
Rio, só o Palmeiras compete de frente. A desigualdade financeira se firma. A
questão é se o Flamengo conseguirá transformar dinheiro em taças para continuar
a sonhar em se tornar o Bayern brasileiro.
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Benê Lima