Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, janeiro 05, 2017

Por sonho de presidente, futebol vira política pública na China

Gilles Sabrie/The New York Times
8-year-olds work on their dribbling at the Evergrande Football School in Qingyuan, China, Dec. 6, 2016. As Chinese soccer clubs spend lavishly to lure top players from Europe and South America, an equally ambitious effort is underway to build future generations of homegrown talent via academies like this one, now the the worldÕs biggest soccer boarding school. (Gilles Sabrie/The New York Times)
Garoto de oito anos em escola de futebol na cidade de Qingyuan, na China

CHRIS BUCKLEY
DO "NEW YORK TIMES", EM QINGYUAN, NA CHINA

Os 48 campos de futebol do vasta Escola de Futebol Evergrande, no sul da China, mal parecem suficientes para os 2,8 mil alunos. Diante de um prédio principal da escola os jovens atletas correm para os campos a cada dia, chutando, driblando e passando com a esperança de conquistar a glória e riqueza futebolística no futuro.

"O futebol será minha carreira, quando eu crescer", disse Wang Gai, 13, um menino magro e alto que estuda no colégio interno há três anos, depois de um treino matinal sob o comando de um técnico espanhol. "Quero ser o Cristiano Ronaldo chinês", ele disse, em referência ao superastro português.

Preparar o próximo Ronaldo ou Messi se tornou um projeto nacional na China, onde o torcedor número um do futebol no país, o presidente Xi Jinping, está determinado a transformá-lo em uma grande potência futebolística.

A boy helps two fellow students with their sit-ups at the Evergrande Football School in Qingyuan, China, Dec. 6, 2016. While China has excelled at individual sports that demand intense discipline from an early age, the country has not done as well at fostering group sports, where skills like teamwork and improvisation count as much as personal virtuosity. (Gilles Sabrie/The New York Times)
Crianças chinesas em treinamento de futebol no país

É como uma corrida espacial para a China, cujos times e seleções têm apresentado desempenho entre pobre e mediano nas competições internacionais recentes. Mas o esforço já causou uma onda de gastos e atraiu apoio ao esporte em escala que espantou torcedores, jogadores, técnicos e dirigentes de todo o mundo.

Nas duas últimas semanas, a principal liga do futebol chinês atraiu astros do futebol europeu e sul-americano, e os contratos reportados atingem valores de até US$ 40 milhões (R$ 128 milhões) anuais, o que representa o maior salário mundial para um jogador de futebol. Um clube chinês ofereceu US$ 105 milhões (R$ 337 milhões) anuais a Cristiano Ronaldo, mas ele recusou, disse o agente do futebolista na semana passada.

Esses valores estonteantes estão abalando as fundações do futebol profissional. Antonio Conte, treinador do famoso Chelsea, da Inglaterra, denunciou a onda de contratações chinesas como "um perigo para todos os times do mundo".

A campanha por criar um futebol digno de se equiparar à ascensão econômica da China é um dos símbolos da ambição de Xi, de transformar a China em uma grande potência altamente confiante. "Minha maior esperança para o futebol chinês é que seus times se tornem os melhores do mundo", ele anunciou no ano passado.

Nos dois últimos anos, o governo dedicou ao futebol o esforço concentrado anteriormente devotado à conquista de medalhas olímpicas em modalidades individuais como os saltos ornamentais e a ginástica.

As autoridades prometeram limpar e reorganizar o futebol profissional e criar uma nova geração de jogadores, por meio da construção de dezenas de milhares de campos de futebol e da criação de programas de futebol em dezenas de milhares de escolas. O objetivo é estabelecer um fluxo de grandes jogadores que um dia se tornem capazes de vencer a cobiçada Copa do Mundo masculina, e que restaurem as glórias que a seleção feminina do país conquistou no passado.

(161111) -- BEIJING, Nov. 11, 2016 (Xinhua) -- General Secretary of the Communist Party of China (CPC) Central Committee Xi Jinping, also Chinese President and Chairman of the Central Military Commission, addresses a gathering to commemorate the 150th anniversary of Sun Yat-sen's birth in Beijing, capital of China, Nov. 11, 2016.
Presidente da China, Xi Jinping, é fã de futebol

O esforço encorajou os clubes chineses a gastar dinheiro sem pensar duas vezes. Além de pagar dezenas de milhões por jogadores estrangeiros, os donos de times chineses investiram centenas de milhões de dólares em participações em clubes europeus, na esperança de aproveitar seus conhecimentos nos ramos de preparação de jogadores e marketing.

"Os gastos atuais geraram imensas expectativas", disse Simon Chadwick, professor de empreendedorismo esportivo na Universidade de Salford, no Reino Unido. "Gastar muito na contratação de jogadores também significa adquirir heróis e ícones".

Mas se o futebol destila as ambições nacionais de Xi, também ilustra de que maneira seus planos podem fracassar, como aconteceu em outras arenas, em meio a ordens confusas e metas distorcidas, especialmente em nível local. Há resistência dos pais, preocupados por seus filhos dedicarem menos tempo às atividades acadêmicas, e medo de que os gastos pesados com astros estrangeiros desviem dinheiro e atenção do processo de desenvolvimento de talentos nacionais.

Os problemas do futebol, ao que parece, são parecidos com os da economia mais ampla: o desejo de sucesso rápido e vistoso coloca os objetivos de longo prazo em risco.

O "Diário do Povo", principal jornal do Partido Comunista chinês, alertou na semana passada sobre uma "bolha" de gastos irresponsáveis no futebol profissional chinês que poderia estourar e prejudicar seriamente o esporte. Investidores demais têm expectativas febris, e alguns clubes, autoridades e escolas estão só fingindo trabalhar no desenvolvimento de jovens atletas, afirmou o jornal.

"Um dos maiores problemas é o imediatismo", disse Cameron Wilson, escocês que vive em Xangai e edita o site Wild East Football, que acompanha os esportes na China. "Há todos esses grandes planos e ideias, mas quando o assunto é o trabalho de base, nas províncias, cada um faz o que quer".

Os apaixonados torcedores de futebol chineses adorariam ter seleções nacionais competitivas, em lugar das equipes medíocres que têm agora. A seleção masculina recentemente foi classificada no 83º posto do ranking da Fifa, logo acima das Ilhas Faroe, um remoto território associado da Dinamarca que só tem 50 mil habitantes, e é pouco provável que a China conquiste vaga na Copa do Mundo de 2018.

A seleção feminina - o orgulho do futebol chinês em décadas passadas - vem tropeçando. Em 1999, ela conquistou o segundo lugar na Copa do Mundo feminina, mas caiu ao 13º posto no mais recente ranking da modalidade.

"A seleção nacional é uma piada", disse Xu Yujun, 16, que foi ao Estádio dos Trabalhadores, em Pequim, para assistir ao seu time favorito na cidade demolir um adversário inepto da província de Henan. "Creio que serão precisas décadas para resolver o problema; não é só questão de dinheiro, mas de atitude".

Por anos, o futebol profissional masculino sofreu seriamente com problemas de corrupção, ultrajantes até mesmo para um país onde a corrupção é tão comum como a China. Desde que revelações sobre resultados arranjados de partidas causaram escândalo nacional, em 2009, o pior das trapaças foi eliminado. "Ainda existe corrupção", disse Wilson. "Ela só não é tão gritante".

Para Xi, o futebol é paixão desde a infância. Suas viagens ao exterior incluíram poses para fotos ao lado de David Beckham e outras celebridades do futebol. Na Irlanda, em 2012, houve um famoso momento no qual ele tentou entusiasticamente chutar uma bola, mas demonstrou estar fora de forma.
Em setembro, o presidente visitou a escola na qual estudou em Pequim, onde aprendeu a jogar futebol e se tornou torcedor, de acordo com as memórias de um antigo professor.

"Vejam como sou saudável", disse Xi aos jovens futebolistas da escola. "A base disso foi o esporte quando eu era moço".

A seven-year-old student folds clothes before going to sleep in his room at the Evergrande Football School in Qingyuan, China, Dec. 6, 2016. Parents pay up to about $8,700 a year to send children to the worldÕs biggest soccer boarding academy, where 24 Spanish coaches oversee training and students spend 90 minutes a day on drills and also play on weekends. (Gilles Sabrie/The New York Times)
Garoto de sete anos em escola de futebol na China

Investidores privados correram ao ramo do futebol profissional, encorajados pelo apoio de Xi ao esporte e aparentemente ansiosos por marcar pontos junto ao governo.

Na principal janela de transferências do ano passado, os 16 times da Superliga chinesa gastaram US$ 300 milhões (R$ 965 milhões) na contratação de jogadores estrangeiros, superando em US$ 120 milhões (R$ 386 milhões) os gastos da Premier League inglesa, de acordo com a FIFA TMS, uma empresa que compila dados sobre transferências de jogadores. Em 2017, é provável que os preços sejam ainda mais altos.

Mas o foco de Xi é o longo prazo e a próxima geração de jogadores. Seu plano dispõe que 50 mil escolas do país tenham fortes programas de futebol, até 2025, ante cinco mil em 2015. O número de campos de futebol no país crescerá para mais de 70 mil até o final de 2020, ante menos de 11 mil no início do projeto. Àquela altura, dispõe o plano, 50 milhões de chineses, entre os quais 30 milhões de estudantes, jogarão futebol regularmente.

"Agora os diretores de todas as escolas estão prestando bem mais atenção ao futebol", disse Dai Wei, diretor de esportes na Escola Bayi, onde Xi estudou. "Antes isso seria impensável".

Mas há fortes resistências culturais à iniciativa, mesmo na Bayi.

Alguns pais desencorajam os filhos de dedicar tempo aos esportes, disse Dai, porque eles têm muitos deveres de casa e enfrentam forte concorrência nos exames acadêmicos.

Embora a China venha apresentando excelentes resultados nos esportes individuais que exigem intensa disciplina desde muito cedo, o país não se saiu tão bem no incentivo aos esportes coletivos, onde capacidades como o trabalho de equipe e a improvisação contam tanto quanto a virtuosidade pessoal.

A escola Evergrande, uma instituição privada e maior colégio interno de futebol do planeta, diz que sua fórmula de intenso treinamento combinado a educação sólida pode mostrar o caminho para o desenvolvimento de atletas jovens.

"Quando mais escolas de futebol forem construídas, mais e mais crianças jogarão e os astros se multiplicarão", disse Liu Jiangnan, diretor da escola inaugurada em 2012. "Eu apostaria que, dentro de sete ou oito anos, metade da seleção chinesa de futebol terá vindo da escola".

Some of the 48 fields at the Evergrande Football School, the worldÕs biggest soccer boarding academy, in Qingyuan, China, Dec. 6, 2016. While China has excelled at individual sports that demand intense discipline from an early age, the country has not done as well at fostering group sports, where skills like teamwork and improvisation count as much as personal virtuosity. (Gilles Sabrie/The New York Times)
Campos de futebol em escola em Qingyuan, na China

Atraídos por esperanças como essas, os pais pagam até US$ 8,7 mil (R$ 28 mil) anuais para que os filhos estudem na Evergrande, onde os treinos são comandados por 24 treinadores espanhóis. Os jogadores promissores recebem bolsas, e as crianças de famílias mais pobres têm descontos, dizem os dirigentes da escola.

Mas mesmo na Evergande as crianças começam no esporte mais tarde do que suas contrapartes na Europa e América do Sul, e muitas vezes lhes faltam fundamentos de jogo em equipe e tática, diz Sérgio Zarco Diáz, um dos treinadores espanhóis.

"Os meninos estão melhorando, ano após ano", ele diz, com esperança.
Mas a abordagem da Evergrande é cara demais para ser copiada em larga escala.
Algumas escolas, por falta de treinadores e espaço para campos, desenvolveram treinamentos próprios, como a ginástica de futebol, na qual crianças se exercitam com bolas. Isso pode impressionar as autoridades visitantes, mas não prepara os jovens para o fluxo de uma partida, disse Zhang Lu, respeito comentarista de futebol chinês.

"O futebol da China já fracassou no passado tentando correr em busca do sucesso instantâneo", disse Zhang em entrevista em Pequim, recordando esforços frustrados anteriores para promover o esporte, nos anos 80 e 90. "O problema é que o pensamento de todos continua a correr em linhas tradicionais. Todo mundo pensa que futebol é só resultados, competição, treinamento, criação de astros".
Zhang em lugar disso vem encorajando as escolas a se concentrar na diversão do jogo e em promover ampla participação. A abordagem oferece a mais crianças uma pausa na monotonia das aulas, e no futuro produzirá mais campeões do que uma abordagem elitista, de cima para baixo, ele argumenta.

Algumas escolas estão tentando seguir suas ideias. Em uma tarde recente, o smog que costuma cobrir Pequim se dispersou e as crianças da Escola Primária Caoqiao correram para os campos, gritando de alegria e rindo.

"Hoje cedo, o futebol foi cancelado por causa do smog", disse o diretor Lin Yanling. "Mas ao meio-dia avisei aos alunos que podiam jogar, e eles explodiram de alegria". 
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Benê Lima