Não elegeremos anjos em 2018. Mas o pessimismo não
nos deve desesperar
Fernando Gabeira, O Estado de S.Paulo
Rafael Mayoral, deputado espanhol e secretário de Relações da Sociedade Civil e Movimentos Sociais do Podemos. (Divulgação: Fórum)
De passagem pelo Brasil, um dirigente espanhol
do Podemos, Rafael Mayoral, afirmou que a esquerda não vai salvar as pessoas e
o essencial é fortalecer a sociedade para que ela possa controlar qualquer
governo no poder. Não vi o restante do seu discurso. Mas até onde li, concordo.
De certa forma, tenho usado esse argumento com novos grupos que querem a
mudança no Brasil.
Muitos deles estão legitimamente preocupados com
a falta de alternativas na eleição presidencial. Mas, ainda assim, afirmo que a
descoberta de um nome não é tão importante quanto fortalecer a sociedade para
que possa monitorar ativamente o governo.
No fundo, o objetivo maior deve ser a construção
de um controle social tão preciso, diria até tão virtuoso que possa tornar mais
amena a constatação de que não elegemos anjos, mas pessoas de carne e osso.
Isso é válido para qualquer sociedade, mas no Brasil parece que somos mais
intensamente de carne e osso.
De certo modo, já exercemos algum controle sobre
o governo Temer. Duas medidas foram revertidas por pressão social: a abertura
de uma área de mineração na Amazônia e o abrandamento da lei que pune o
trabalho em condições análogas ao de escravo. Mas esse esforço de controle só
tem surgido em grandes temas. Estamos tratando como normais e cotidianas várias
aberrações que nos transformam num país virado de cabeça para baixo.
Um exemplo que me espantou foi o pedido oficial
de Geddel Vieira Lima para saber o nome e o telefone de quem o denunciou. No
apartamento ligado a Geddel foram encontradas as malas com R$ 51 milhões. Até
agora não sabemos, e creio que a polícia também não, de onde veio o dinheiro
atribuído a Geddel. Mas ele quer saber quem o denunciou. Se a polícia desse o
nome e o telefone de quem denunciou, Geddel iniciaria uma prática
internacionalmente nova: quebrar o anonimato dos informantes, para serem
devidamente assassinados.
Raquel Dodge negou o pedido de Geddel. Mas o
fato de ter existido e circulado como uma notícia normal revela como o País, no
cotidiano, foi posto de cabeça pra baixo.
No caótico Estado do Rio de Janeiro, outra
dessas barbaridades que quase passam em branco: o governador Pezão indicou um
deputado para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), o mesmo cujos membros foram
presos. Questionado na Justiça, Pezão chamou o procurador Leonardo Espíndola
para defendê-lo. Impossível, disse o procurador, sua decisão é
inconstitucional. Ato contínuo, Pezão demitiu Espíndola. Felizmente, o indicado
por Pezão caiu nas garras da Polícia Federal antes de tomar posse no TCE. É
acusado de corrupção, ao lado do presidente da Assembleia Legislativa, deputado
Jorge Picciani.
São só dois fatos cotidianos. Há algo comum em
sua origem. Nascem de políticos do PMDB envolvidos em corrupção. Um quer o nome
de quem o denunciou, o outro considera defender a Constituição algo
incompatível com o serviço público.
E a vida continua. Engolindo alguns sapinhos no
cotidiano, nosso estômago é preparado para os grandes sapos de fim de mandato.
Um deles, que está sendo preparado nos
bastidores, é a derrubada da prisão em segunda instância. As articulações
correm no Congresso e no próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto
ministros do Supremo como parlamentares veem nisso uma saída para neutralizar
não só a Lava Jato, como todas as operações que envolvam políticos corruptos.
Enunciado apenas como uma tese jurídica, o fim
da prisão em segunda instância é palatável. Todos são inocentes até que a
sentença seja confirmada pelo STF. Na prática, resultará em impunidade geral.
Todos terão direito a uma trajetória semelhante à de Paulo Maluf, que de
recurso em recurso vai tocando sua vida, exercendo seus mandatos e até
defendendo outros acusados de corrupção, como Michel Temer.
No momento em que as aberrações se acumulam, a
tendência é criar um País monstruoso. Algo que já tentei definir num discurso,
no alto de um caminhão, em protesto de rua: um País onde os bandidos fazem a
lei.
Enquanto essas coisas acontecem, o debate entre
os que querem a mudança tende a concentrar-se no perfil do líder que nos vai
salvar. Em que rua, em que esquina vamos encontrá-lo? No Acre, em Alcácer
Quibir?
Enquanto não aparece, creio ser necessário
fortalecer as organizações que trabalham com a transparência. Estão surgindo de
vários pontos. Hoje se investiga como os partidos gastam seu dinheiro. Há um
grupo que cuida exclusivamente de despesas de parlamentares. A intensa busca da
transparência fortalece a sociedade. Da mesma maneira, ela ficará mais forte se
todos os grupos que buscam a mudança se unirem num esforço comum.
Nem todos pensam da mesma maneira, estamos
cansados de saber. Mas é preciso um mínimo de maturidade, na situação dramática
do País, para encontrar pontos de convergência.
Não importa tanto se um grande líder vai emergir
dos escombros. Mesmo se aparecer, não será um anjo. Não elegeremos anjos em
2018. Nunca o faremos, creio eu.
A fronteira do pessimismo não nos deve
desesperar. Há algumas instituições funcionando, há grupos trabalhando na busca
da transparência, há a possibilidade real de que todos os que querem mudança
encontrem pontos de contato, um denominador comum.
Como o poeta que fabrica um elefante de seus
poucos recursos, a sociedade brasileira terá de construir seu sistema de
defesa. Alguns móveis velhos, algodão, cola, a busca de amigos num mundo
enfastiado que duvida de tudo – o elefante de Drummond é inspirador.
Quem sabe, como em Portugal, conseguiremos
construir nossa própria geringonça? Prefiro essa visão modesta e realista a
esperar dom Sebastião. Curado de sua megalomania, talvez o Brasil aceite,
finalmente, tornar-se um grande Portugal.
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Benê Lima