Capa do livro 'Alfabeto da Sociedade Desorientada', do sociólogo italiano Domenico de Masi |
Em 'Alfabeto da Sociedade Desorientada', o sociólogo Domenico de Masi classifica o mundo em 26 verbetes
Ubiratan Brasil / O Estado de S. Paulo
A desordem do mundo atual, para ser entendida, precisa ser classificada. Foi o que fez o sociólogo italiano Domenico De Masi, conhecido como o pai do ócio criativo, em Alfabeto da Sociedade Desorientada. São 26 verbetes ordenados alfabeticamente, que pretendem abarcar os assuntos mais prementes. Beleza, gênio, trabalho, desorganização, mas também cidades como Roma e Nápoles estão na lista.
“Não é um tratado de sociologia, uma anatomia e uma fisiologia sistemáticas da nossa sociedade, que são impossíveis dada a natureza fragmentária e esquizofrênica da própria sociedade, mas sim um patchwork de questões cruciais que tenta reproduzir o patchwork da realidade, descobrindo-lhes o nexo”, escreve na introdução. Para isso, ele recorre às ciências humanas, trazendo divertidas informações – ao descrever a história da decadência de Nápoles, ou discorrer sobre a pizza, informando que, em sua origem, era alimento de pedreiros. De Masi respondeu às seguintes questões, por e-mail:
O verbete que mais parece se aproximar de nossa realidade é o da letra D, ‘Desorientação’. Esse seria o problema mais emblemático hoje?
Como procurei demonstrar em meu livro anterior (O Futuro Chegou), pouquíssimas vezes na história humana o trabalho, a riqueza, o poder, o saber, as oportunidades e a proteção social mudaram simultaneamente. Quando isso acontece, ficamos frente a uma verdadeira descontinuidade de época, uma revolução social. Desde a 2ª Guerra Mundial, o salto mais recente nesse sentido coincidiu com a rápida transição para uma sociedade pós-industrial, dominada pela produção de bens não materiais: serviços, informações, símbolos, valores e estética.
Todas as sociedades do passado nasceram tendo por base um sólido modelo teórico preexistente: a democracia de Péricles baseou-se no pensamento de Protágoras, Zenão e Anaxágoras; o sacro Império Romano, nos Evangelhos e nos textos dos Pais da Igreja; os Estados islâmicos, no Alcorão; a democracia americana, no Iluminismo de Voltaire, Diderot, Franklin e Jefferson; os Estados-Nação do século 19, nas obras de Smith, Montesquieu e Tocqueville; a social-democracia e o welfare, nas teses e experimentações de Owen e Bernstein; a União Soviética, no pensamento de Marx, Engels e Lenin.
Apenas a sociedade atual nasceu de tentativa e erro, sem o roteiro de um modelo ideal. Toda nossa desorientação e sensação de crise deriva da falta de um modelo condutor. Nossa atual desorientação envolve as esferas econômica, familiar, política, sexual, cultural. Quem fica desorientado entra em crise, e quem está em crise para de projetar o próprio futuro. Mas, se não planejamos nosso futuro, outros o farão por nós, não em função de nossos interesses, mas dos próprios. E isso nos desorienta ainda mais.
O avanço da tecnologia seria a explicação para os “longos ciclos da história” estarem se tornando cada vez mais curtos?
Da civilização mesopotâmica até fins do século 18, por 5 mil anos a sociedade humana esteve condicionada principalmente à agricultura e ao artesanato. O progresso tecnológico influiu de modo determinante em nossa concepção de tempo. Em menos de um século, a expectativa de vida dobrou. Ao mesmo tempo, inventaram-se máquinas para se economizar tempo (telefone, avião, computador), para enriquecer o tempo (o rádio ouvido enquanto se dirige), para estocar o tempo (CD, secretária eletrônica), para programar o tempo (agenda eletrônica). No entanto, se lemos romances do século 19 e os comparamos a nossa vida e a nossa literatura atual, temos a impressão de dispor sempre de menos tempo.
Alguns países parecem profundamente deprimidos. Fomos condenados a um declínio irreversível?
Há 20 anos, quando vim de Roma para o Rio e São Paulo, saí de uma Itália eufórica e encontrei um Brasil deprimido. Ao fazer a mesma viagem dez anos depois, deixei uma Itália deprimida e encontrei um Brasil eufórico. Hoje, saio de uma Itália deprimida e encontro um Brasil deprimido. Isso porque, como já disse, estamos desorientados. Mas essa desorientação não vai necessariamente durar muito.
É verdade que a atual sociedade pós-industrial é mais complexa que a rural e a industrial; mas também é verdade que os meios disponíveis para decifrá-la, administrá-la e melhorá-la são muito mais poderosos que os de antes. Em dez anos seremos 8 bilhões de bocas a alimentar, mas, principalmente, 8 bilhões de cérebros em condições de pensar, capazes de resolver os problemas que a humanidade enfrenta.
O senhor elegeu Roma e Nápoles como verbetes por causa do classicismo e da beleza desbotada?
Roma tem uma cultura na qual confluem 2.500 anos de pensamento grego e latino, pagão e cristão. Na cultura de Nápoles, confluem o pensamento grego, o latino e o espanhol. O que essas culturas têm em comum? A capacidade de dar precedência àquilo que os gregos chamavam metis sobre o que chamavam thesis. Por thesis, eles entendiam a forma de pensamento lógico, retilíneo, racional, sistemático. Por metis, ao contrário, entendiam a acuidade, a vivacidade, a fineza de espírito, a precisão do olhar, a leveza rápida da intuição, a rapidez mental, a habilidade de driblar obstáculos.
É por isso que amo Nápoles e Roma. É por isso que me orgulho de minha cidadania honorária do Rio de Janeiro, cidade também rica de metis, que corresponde com sobra ao conceito brasileiro do jeitinho, como testemunha uma frase inesquecível de Oscar Niemeyer, gênio mundial da arquitetura. Por todo o século 20, Niemeyer confrontou-se com outro gênio, Le Corbusier, profundamente diferente dele por ser suíço e de tal modo dotado de thesis que foi o precursor da corrente racionalista. Le Corbusier afirma que “a vida na cidade moderna é baseada praticamente na linha reta... A curva é cansativa, perigosa, funesta, de efeito paralisante... A estrada com curvas é arbitrária, fruto do acaso, do descuido, da ação instintiva. A estrada retilínea responde a uma necessidade, é fruto da intervenção precisa, da vontade, da plena consciência. É uma coisa útil e bela”.
Niemeyer, porém, é profundamente brasileiro. Em suas veias, corria sangue índio, árabe, alemão, espanhol, africano e português. Daí seu amor pela metis: “Não é o ângulo reto que me atrai, nem mesmo a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas de meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas nuvens do céu, nas ondas do mar, no corpo da mulher amada. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein”.
Chefes de Estado atuais (como Putin, Merkel e Trump) não parecem representar um modelo ideal de comando. Esse papel seria ocupado hoje por homens como, por exemplo, o papa Francisco?
A falta de um modelo teórico de referência cria um vazio intelectual que alcança todos os governos do planeta. Os únicos líderes mundiais dotados de modelos são o papa Francisco, que se agarra ao modelo cristão, de 2 mil anos, e o presidente da China, Xi Jinping, adepto do modelo marxista, de 150 anos.
Em todos os países democráticos, em maior ou menor grau, o declínio das ideologias afastou um sustentáculo insubstituível e uma orientação segura para os diversos partidos. Hoje, os aparelhos partidários estão desmantelados em toda parte; os líderes, embora menores e sem carisma, dominam, caprichosos e incontrastáveis; as classes confluíram para um bolo amorfo, com uma progressiva convergência dos programas eleitorais. Quem anuncia seu programa não o faz com base no conteúdo proposto, mas na forma de divulgá-lo na mídia e na web.
Desapareceram líderes influentes como Gandhi, Pio XII, Churchill ou Stalin, referências na política. Na Europa, a própria União Europeia e a introdução do euro enfraqueceram o conceito de pátria, de identidade e de fronteira – fatores limitantes, mas que motivavam a segurança e o orgulho pelos quais, nos séculos passados, estava-se disposto a lutar e a morrer.
Na falta de um modelo capaz de indicar o objetivo e o rumo, cada um navega visualmente, formulando um pensamento débil com a colagem de pequenas ideias roubadas nos mil mercadinhos da cultura pós-moderna. “Nenhum vento é favorável ao marinheiro que não sabe para onde ir”, dizia Sêneca. Se hoje, por encanto, desaparecessem do planeta os graves problemas da fome, do desemprego, da dívida pública, do racismo e das guerras religiosas, os vários governos não saberiam como e para onde conduzir seus países.
Por que o senhor acredita que a expressão “recuperação econômica” não passe de uma invenção da elite governante?
Em nenhuma nação do mundo a elite governante demonstra ter a inteligência adequada para resolver os problemas que estão a sua porta. O comunismo perdeu, mas o capitalismo não ganhou. O comunismo sabia distribuir a riqueza, mas não sabia produzi-la, enquanto o capitalismo sabe produzir a riqueza, sem saber distribuir. São gastos bilhões na publicidade da comida de nossos gatos, mas faltam financiamentos mínimos para garantir a nossas crianças o direito ao estudo ou à saúde.
As oito pessoas mais ricas do mundo possuem uma fortuna equivalente à de metade da humanidade, 3,6 bilhões de pessoas. Todo ano o PIB do planeta cresce de 3% a 5%. Apesar disso, no Brasil, como em grande parte do mundo, não se consegue acabar com a pobreza, a violência, a corrupção e o analfabetismo. Sobretudo, as elites governantes não conseguem considerar a felicidade dos cidadãos como principal objetivo de todo bom governo.
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Benê Lima