Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, julho 17, 2019

Sobre o treinador-artista

Algumas ideias sobre quem faz do jogo uma obra de arte
Fernando Diniz, do Fluminense: a arte está no caminho. (Foto: Lucas Merçon/ Fluminense Football Club)

Existe um filósofo francês, chamado Michel Onfray, que escreveu um livro bem interessante, embora difícil, chamado A Escultura de Si. No livro, Onfray ensaia o significado e a importância de ‘fazer das nossas vidas uma obra de arte’.
Há uma certa passagem em que, citando um dos seus mestres (Nietzsche), Onfray exalta o filósofo-artista, cuja diferença estaria na ‘capacidade de inventar novas formas de existência’. Este trecho, em particular, é muito chamativo.
Na coluna de hoje, gostaria que fizéssemos uma adaptação, que não é tão distante assim: vamos pensar um pouco sobre o significado e a importância do treinador-artista. Vejamos.
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Uma das primeiras diferenças do treinador-artista, talvez a primeira, está na sua relação com as emoções. Este treinador ou treinadora não deixa as emoções em um lugar secundário ou alheio, da mesma forma como sequer imagina suprimir as emoções, em nome de uma razão pura, como têm nos ensinado muitos cursos mundo afora. O treinador-artista, pelo contrário, está aberto às emoções. Por isso, está aberto a si mesmo, à sua própria humanidade, e então está aberto ao jogo e ao mundo.
Nas palavras do mesmo Onfray, que citei acima, o artista é aquele que ‘põe a emoção antes da reflexão’. Repare que não existe nenhum crime aqui: ninguém está falando em desligar a razão ou ‘desligar a ciência’, como alguém poderia interpretar. Na verdade, o que não se pode é desligar as paixões, suprimir os afetos – como jamais fizeram, diga-se, inúmeros dos maiores artistas de todos os tempos. O treinador-artista não é aquele que mata a reflexão. Talvez seja o que consulte as paixões primeiro. E então reflete.
Quando aceita as próprias emoções e, especialmente, quando deixa as emoções em um lugar privilegiado, quando simplesmente aceita sentir (por si e pelos outros), o treinador-artista não apenas admite um compromisso com a sua humanidade inteira, como também admite um compromisso com o treinamento das paixões. É mais ou menos disso que falamos quando falamos de uma pedagogia dos afetos. O treinador-artista sabe que haverá momentos de profundo pensamento, mas também haverá momentos de intuição, de rapidez, momentos que, às vezes, a mais fina razão não alcança. Por isso, a formação básica é emocional.
E o treinador ou treinadora-artista pode saber disso sem ter lido Daniel Goleman ou Daniel Kahneman. Mas eles sabem.
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Ótimo, vamos então refletir sobre a reflexão deste treinador-artista. Essa reflexão pode ser superficial? Não, não acho. O treinador-artista é aquele que consulta primeiro as emoções mas, ao mesmo tempo, é aquele que trabalha continuamente para refinar o próprio pensamento, sobre as coisas e sobre si. Ou seja, é um treinador/treinadora que não sabe apenas de futebol, que não lê apenas sobre futebol, que pensa além do futebol, que pensa muito além do futebol e que, por isso, pode pensar coisas extraordinárias sobre futebol, pode ‘inventar novas formas de existência’, como falamos acima.
Sendo mais específico, o que faz do treinador-artista acima da média é a capacidade de desenvolver um pensamento original, assim como de recriar este pensamento continuamente. O artista não está exatamente interessado em seguir as normas vigentes, isso todos já fazem, ele prefere criar as próprias normas (autonomia, portanto). Por isso, ele se pergunta: por que não usar meu goleiro para o ataque? Por que não usar as forças do adversário em nosso favor? Por que o jogador A não pode jogar nas funções X ou Y? Por que só se pode ‘driblar no último terço’? Por que os pontas não podem atravessar o campo quando quiserem para criar superioridades no setor da bola? Por que é preciso simetria no ataque? Enfim. A arte também parte da dúvida, mas talvez seja uma dúvida do coração.
A meu ver, isso é dramaticamente necessário, pois esses treinadores e treinadoras trazem uma outra cor ao futebol. Um dos problemas do nosso tempo é que as coisas, às vezes, parecem monocromáticas, parecem estar em um mesmo tom, as pessoas também, às vezes o próprio pensamento, as maneiras de pensar, tudo parece muito semelhante. De alguma forma, isso também mora no futebol. Às vezes, temos a impressão de que muitas equipes jogam muito parecido, com sistemas muito parecidos, com substituições que se repetem, que nossas equipes (incluo as minhas) sejam vez por outra tão obedientes, tão tementes à ordem, como se um grande prego fincasse cada jogador ao espaço (foi Valdano quem disse isso), de modo que nossos jogadores vão se esquecendo de jogar futebol, de jogar o jogo (são coisas diferentes), de desfrutar o jogo e, por isso, não apenas se esquecem, como talvez sequer imaginem que possam fazer arte.
O treinador-artista, portanto, não é necessariamente aquele que consegue fazer arte. Pode também ser aquele que sabe que ela existe e que ela é possível.
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Se seguirmos a linha que fomos traçando ali em cima, você vai concordar comigo que o treinador-artista não é necessariamente aquele que ‘joga bonito’ – especialmente se associarmos o jogo bonito ao jogo ofensivo. Nem sempre. O treinador-artista é o que primeiro sente, que pensa por si, é um escultor de si mesmo e da equipe. Diego Simeone, por exemplo, é um artista. Por quê? Porque em uma cultura em que a maioria dos treinadores estão ávidos pela posse, ele pensou pelo avesso, abdicou da posse, e construiu um projeto a partir do caráter, da defesa, passando pela transição (Antoine Griezmann, aliás, evoluiu muito neste modelo). E fez disso uma arte, uma estética defensiva, que trouxe títulos e que, por isso, também trouxe terríveis insucessos. E continua sendo arte. Porque a arte não se mede nas vitórias, apenas.
Ou seja, não existe um modelo de jogo específico, uma estrutura específica, por onde o artista começa e segue. O treinador-artista olha para si, consulta suas emoções, reflete rigorosamente sobre elas, faz isso continuamente e, como em um susto, talvez descubra em si mesmo um conhecimento que ainda não havia encontrado, uma solução que parecia oculta, um saber seu (portanto, único) – e então leva este saber para o campo. Lá, no ateliê dos treinadores, ele refina suas ideias, confronta suas ideias com o jogo, com os atletas, com o tempo, com o espaço. Ali, se aprimora como treinador/treinadora e, ao mesmo tempo, se aprimora como artista.
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Por fim: é obrigatório, além de ser treinador ou treinadora, com tudo o que isso já significa, ser um treinador-artista? Não, claro que não.
Mas nenhum treinador nasce treinador. Treinadores tornam-se treinadores. Ou seja, precisam ser criados, pelo mundo e por si mesmos. Sendo um ato criativo, tendo de esculpir a si mesmo, deduzo que já exista um quê de artista (a ser continuamente trabalhado) em cada um dos treinadores.
Ainda que se trate de um grande segredo.

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Benê Lima