Arthur Sales / Indústria de Base / Universidade do Futebol
Jornalista. Abordo questões relacionadas ao esporte, com atenção especial aos diretos das crianças nesse universo. Mestre em Ciências da Motricidade (UNESP/RC).
Jornalista. Abordo questões relacionadas ao esporte, com atenção especial aos diretos das crianças nesse universo. Mestre em Ciências da Motricidade (UNESP/RC).
Em parceria com a Universidade do Futebol, apresentamos a seguir
números do primeiro levantamento intitulado O FUTEBOL MASCULINO
BRASILEIRO E A ESCOLARIZAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE JOGADORES. O estudo
traz dados referentes ao número total de jogadores no futebol de base do
Brasil, quantos deles atuam em clubes sem o certificado de clube formador, e
ainda quantos jovens deixam suas cidades anualmente para participar processos
seletivos.
O FUTEBOL MASCULINO
BRASILEIRO E A ESCOLARIZAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE JOGADORES
Este documento foi redigido com o objetivo de
compreender a magnitude do futebol de base masculino no Brasil, evidenciando a
grande concorrência por postos de trabalho de qualidade no futebol profissional
e destacando os conflitos existentes entre o processo de formação esportiva e a
escolarização dos jovens jogadores.
1. FUTEBOL PROFISSIONAL — O
TOPO DA PIRÂMIDE É MAIS FEIO DO QUE PARECE
A carreira de jogador de futebol é curta, instável
e mal remunerada. Mesmo assim, milhares de jovens tentam a sorte nos gramados
pelo país. Vamos aos números:
Os postos de trabalho de qualidade no futebol
brasileiro masculino são pouco variáveis dado o número fixo de clubes nas
principais divisões do país. Em uma conta simples, multiplicando o número de
clubes que disputam as três principais divisões do país e que, portanto, têm
condições de oferecer contratos de trabalho de, ao menos, um ano a seus
jogadores, pelo tamanho do elenco de cada um desses clubes chegamos a um total
estimado de 1500.
Clubes das séries A, B e C
(60)* Jogadores no elenco — estimativa (25) = 1500 postos de trabalho
Além dos postos dentro do território nacional, é
possível contabilizar os internacionais, nem sempre tão glamorosos como os das
grandes equipes europeias, mas atraentes o suficiente para convencer pouco mais
de 1200jogadores a deixar o país de acordo com relatório do CIES de
maio de 2017.
Postos nacionais (1500) +
Postos internacionais (1200) = 2700 postos de trabalho
Portanto, os jogadores brasileiros disputam,
anualmente, cerca de 2700 postos de trabalho de qualidade dentro desse esporte.
Nesses postos, estão os jogadores menos impactados pela sazonalidade da
profissão. Eles conseguem contratos mais estáveis, pois suas equipes tem o
calendário de jogos garantido por pelo menos um ano. Neste grupo, encontram-se
as grandes estrelas do futebol brasileiro, Dudu, Gabigol, Fágner, Pato, Fred, e
os “estrangeiros” Neymar, Daniel Alves, Fernandinho, Alisson… Além de muitos
outros menos conhecidos.
É importante considerar que os postos nacionais
também são ocupados por jogadores estrangeiros, como no caso do centroavante
peruano Paolo Guerrero, do Sport Club Internacional, e o meia uruguaio Giorgian
De Arrascaeta, do Flamengo.
Abaixo desse oásis da estabilidade, fama e grandes
salários, temos a série D, competição de âmbito nacional disputada no segundo
semestre por equipes que tiveram bom desempenho em seus estados na primeira
metade do ano.
Daqui para baixo da pirâmide, a sazonalidade, baixos salários e falta de pagamento já são um fenômeno de impacto social relevante, pela frequência e pelo número de jogadores atingidos. Apesar da importância da questão, os números são pouco precisos, e muitas vezes divergentes. Aos serem analisados os dados disponíveis, a impressão é de que não há no país grande interesse pela questão.
Daqui para baixo da pirâmide, a sazonalidade, baixos salários e falta de pagamento já são um fenômeno de impacto social relevante, pela frequência e pelo número de jogadores atingidos. Apesar da importância da questão, os números são pouco precisos, e muitas vezes divergentes. Aos serem analisados os dados disponíveis, a impressão é de que não há no país grande interesse pela questão.
Quantos jogadores de futebol
profissional temos no Brasil?
As fontes mais confiáveis são o “Raio-x do
futebol”, publicado anualmente pela CBF, e o “Relatório Anual de Informações
Sociais” — RAIS, publicado pelo Ministério Público do trabalho e que, segundo
as reportagens consultadas, possui dados relevantes para o presente
levantamento em sua edição de 2017.
“O Rio é o segundo estado com
mais empregados — 786 atletas com carteira assinada em 2017.
Perde apenas para São Paulo, com 1 790 jogadores” (Ministério
Público do Trabalho. Relatório Anual de Informações Sociais — RAIS, 2017. In.:
Revista Piauí. Maio, 2019).
De acordo com a reportagem, o número combinado de
atletas com carteira assinada em 2017 nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo
seria de 2576.
Números conflitantes com os apresentados por uma
reportagem da Folha, em maio de 2018. Segundo os dados apresentados, o total de
jogadores profissionais atingiria a soma de quase 13 mil, com cerca
de 8 mil apenas no estado de São Paulo.
Já de acordo com os números mais recentes da
Confederação Brasileira de Futebol — CBF, referentes à 2018, os números são os
seguintes:
Contratos profissionais — 22.177
Contratos ativos — 7.048
Vínculos ativos — 47.177
A Federação Nacional dos Atletas Profissionais de
Futebol aponta um total de cerca de 18 mil, com o número de
desempregados podendo chegar aos 15 mil nos momentos do ano
com menos competições.
“De acordo com a Federação
Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol, o País possui hoje 18
mil atletas profissionais. Os índices de desemprego variam ao longo do
ano por causa da mudança no número de competições. Os clubes menores
simplesmente fecham as portas no segundo semestre. “No mês de abril, temos 30%
dos atletas trabalhando. No fim do ano, esse número cai para 6%”, disse o
presidente Felipe Augusto Leite” (Istoé, outubro, 2017).
Mas o que é “desemprego” para
um jogador de futebol?
Estar jogando em um clube pequeno, em uma
competição de pouca visibilidade, com um contrato de três meses, podendo não
receber por isso é a situação da maioria dos jogadores no país. É possível
considerar que essa é uma situação de emprego?
““Veja a Copa Paulista, por
exemplo. É uma competição deficitária, que os clubes usam de laboratório para o
ano seguinte. Oferecem salários baixos para fazer avaliações de atletas ainda
em início de carreira e, logo depois, dispensam os garotos. São atletas que
nunca haviam sido profissionais antes e dificilmente conseguirão outro clube.
Você considera essas pessoas jogadores de futebol profissionais? ”, questiona o
presidente do Sindicato de Atletas de São Paulo, Rinaldo Martorelli. A resposta
dele é que não. Já para a Fenapaf, é sim” (Folha. Maio, 2018)
Como é possível observar no trecho acima, não há
uma padronização para a definição dessas estatísticas, o que torna difícil
conclusão sobre o real número de jogadores trabalhando em situação precária no
país. Uma estimativa baseada nos números acima, estabelecendo o total de
jogadores “profissionais” pelo país em um patamar de cerca de 20 mil,
e levando em conta o cálculo do número de postos de trabalho de qualidade na
altura dos 2700, é razoável considerar que temos, ao menos, 17
mil jogadores em situação precária de trabalho no Brasil.
Total de jogadores no país
(20 mil) — Postos de trabalho de qualidade (2700) = 17300 desempregados/em
situação precária de trabalho anualmente.
O grande sonho e a falta de
qualificação
É depois de adulto que a maioria dos jogadores
começam a entender as dificuldades da carreira que escolheram, mesmo assim,
seguem firme em busca do sonho. Eles têm duas razões para isso. Acreditar muito
no próprio talento e dedicação, apesar das estatísticas difíceis, e não ver
alternativas melhores, falta a eles qualificação.
“As crianças que começam no
futebol hoje em dia pensam isso mesmo. É o que aparece na TV” (Folha, 2018).
“’Para um goleiro, a minha
idade não pesa tanto. Mas na vida, sim. Tenho amigos da minha idade que já
terminaram a faculdade. Eu, não. Mas tenho esperança que vai melhorar. Fiz isso
a minha vida toda. Não consigo me ver fazendo outra coisa’, diz Kaique de 22
anos.
Rodrigo [outro jogador] se
acostumou à mesma cena. Ver antigos companheiros de campo desesperados à
procura de trabalho” (Folha, 2018)
A pirâmide salarial
De acordo com dados da CBF publicados em 2016, o
total de jogadores no país era de 28.203. Desse universo, menos de
4% — cerca de 1100 — tinham no seu contrato de trabalho registrados vencimentos
maiores do que R$ 5 mil.
Carreira curta
Todos esses jogadores, sejam os de seleção, com
seus salários de seis dígitos, ou os milhares da base da pirâmide, com
rendimentos escassos e pouco regulares, verão sua carreira esportiva terminar
de maneira muito rápida, às vezes com 20 e poucos anos, em outras com mais de
40, mas ainda assim com muitos anos de vida pela frente.
Considerando a estimativa de cerca de 20 mil jogadores no país e o número de aposentadorias anuais, 900, de acordo com dados publicados pela CBF referentes a 2018, é possível estimar que em uma década um número aproximado de 29 mil pessoas tenha se aventurado no mundo do futebol profissional e experienciado todas as peculiaridades dessa carreira.
Considerando a estimativa de cerca de 20 mil jogadores no país e o número de aposentadorias anuais, 900, de acordo com dados publicados pela CBF referentes a 2018, é possível estimar que em uma década um número aproximado de 29 mil pessoas tenha se aventurado no mundo do futebol profissional e experienciado todas as peculiaridades dessa carreira.
Jogador brasileiro — A imagem
do país em jogo
Os jogadores de futebol do Brasil estão entre as
personalidades do país com maior visibilidade na comunidade internacional. Suas
declarações, comportamento, atitudes, são uma janela para o mundo mostrando
como é o país e o brasileiro, podendo ter impacto nas relações exteriores,
comércio e turismo. Ter jogadores de elite com uma bagagem educacional rica é
uma vantagem estratégica que o país vem desperdiçando há anos.
Há poucos anos, aconteceu um caso que ilustra como
a defasagem educacional, e principalmente da falta de uma relação mais afetiva
com a escolarização e desenvolvimento intelectual impacta a vida de um jogador
de futebol profissional. Um jogador brasileiro que atuava em um clube
importante na Espanha foi contratado por uma equipe inglesa.
Naquela altura, o jogador não sabia falar uma
palavra em inglês, o que dificultou inclusive seu início no novo local de
trabalho. É emblemático o fato de que um jogador que atingiu esse nível, e que
certamente já tinha a ambição de viver e jogar na Europa, não tenha tido em
nenhum momento de sua carreira a atitude de decidir estudar a língua mais
falada do mundo que, com toda certeza, seria muito útil tanto pessoal, como
profissionalmente, em algum momento de sua vida.
O exército de desempregados
Se a formação educacional dos ídolos é fundamental,
que dirá os milhares de jogadores que ainda irão se aposentar sem nenhuma
qualificação e a conta bancária zerada.
2. NA BASE — A EDUCAÇÃO
JOGADA PARA ESCANTEIO
A realidade das categorias de base no futebol é
muito heterogênea. Enquanto os maiores clubes possuem estruturas físicas
sofisticadas, capazes de acomodar centenas de jovens em condições dignas, na
outra ponta temos alimentação precária e ambientes muitas vezes insalubres e
degradantes. Antes de aprofundar a relação das categorias de base com a
escolarização e a educação de maneira geral, é fundamental entender o número
total de jovens impactados nesse universo.
A Federação Paulista de Futebol tinha até
abril 13.172 jogadores de base inscritos em todo o estado. Não
é possível afirmar com precisão qual é esse número no âmbito nacional. Em fevereiro
de 2019, a CBF disponibilizou em seu site oficial os seguintes números:
Contratos profissionais: 22.177
Vínculos não profissionais: 38.309
Em teoria, entre os mais de 38 mil vínculos não
profissionais deveriam estar contidos muitos dos jogadores de base do futebol
masculino brasileiro, o restante dos jogadores de base está incluído naqueles
que já completaram 16 anos e, por estarem se destacando, podem já ter um
contrato profissional assinado. Por outro lado, entre os 38 mil não
profissionais, podem estar incluídos também registros de ligas amadoras, etc.,
o que diminuiria o número total de jogadores jovens nesse grupo. Foram
consultadas diversas fontes de dentro e de fora da CBF e nenhuma delas soube
precisar o que os dados de fato querem dizer.
Um outro caminho para tentar entender o real
tamanho do futebol de base nos clubes profissionais, aqueles filiados à CBF, no
país, é verificar o número de clubes que participam das competições
estaduais.
Em um levantamento realizado pelo Indústria de Base,
que levou em consideração apenas a menor faixa etária seguinte à idade mínima
permitida para o alojamento de jovens jogadores no país que é de 14 anos, foram
identificados 448 clubes em atividade em 2018. A faixa etária de competição
mais comum nos 27 estados da federação, dentro desses parâmetros, é a sub-15.
Pela grande heterogeneidade de suas estruturas, é
difícil definir com precisão o número de jogadores em cada um desses 448
clubes. Os maiores e mais ricos clubes do país podem ter equipes de futebol de
campo e de futsal que vão desde o sub-9 até o sub-23, enquanto equipes menores
e/ou de estados mais periféricos do ponto de vista econômico e futebolístico
podem ter apenas duas ou três equipes de base, como é possível verificar nos
sites das federações estaduais. De acordo com profissionais de diversas áreas
que atuam ou atuaram nas categorias de base do futebol masculino do Brasil e
que colaboraram com esse levantamento, cada equipe de base de um clube no
Brasil possui de 18 a 40 jovens jogadores e cada clube tem um número total —
somadas todas as suas equipes — que varia de 90 a 300 jogadores. Por considerar
a amostra de dados pequena, foram entrevistados profissionais de apenas 7
clubes, a decisão foi a de estabelecer essa estimativa em 90 jogadores por
clube, o menor número encontrado.
Clubes com categorias de base
(448) * Jogadores/clube (90) = 40320 jogadores de base no país
Lembrando que esses 40320 jogadores vão disputar as
2700 vagas de qualidade no futebol profissional na próxima década com jogadores
que já estão nestes postos e vão demorar anos para se aposentar.
As condições de vida nas
categorias de base do futebol masculino
Se a qualidade da maioria dos postos de trabalho no
futebol profissional é precária, é fácil imaginar que na base, a condição de
vida não deve ser diferente. Para além dessa dedução, o número de clubes com o
certificado de clube formador — CCF, pode ser um bom parâmetro para que se
conclua algo a respeito.
Regulamentado em janeiro de 2012 pela CBF, o CCF é
um mecanismo previsto na lei Pelé que incentiva as confederações esportivas
nacionais, no caso do futebol a CBF, a conceder uma certificação reconhecendo
clubes e entidades esportivas filiadas como formadoras caso atendam requisitos
mínimos. Como contrapartida, os clubes adquirem legalmente o direito à
preferência na assinatura do primeiro contrato profissional dos jovens
treinados na instituição ou à uma indenização caso ele chegue a um acordo com
outra agremiação e também ao mecanismo de solidariedade da FIFA, muito
comemorado por clubes brasileiros em grandes transferências internacionais como
a de Neymar do Barcelona para o Paris Saint Germain e de Philippe Coutinho do
Liverpool para o Barcelona, que geraram, respectivamente, R$ 33 mi para o
Santos e R$ 15,8 mi para o Vasco. Em resumo, o CCF previne que a instituição
que investiu tempo e dinheiro na formação de um jogador deixe de contar com
seus serviços em um momento crucial, que é a assinatura do primeiro contrato de
trabalho ou, ao menos, receba uma compensação financeira por isso. Algo
muito relevante em um cenário no qual a maioria dos clubes do país tem dívidas
significativas se comparadas a seus faturamentos anuais e tem na chamada
“venda” de jogadores uma das poucas soluções para equilibrar as contas.
Apesar dessa garantia jurídica, o número de clubes
com certificado de clube formador representa apenas uma pequena parcela dos
filiados à CBF mesmo entre aqueles que possuem categorias de base. Dos 448
clubes que disputaram competições em faixas etárias nas quais o alojamento é
permitido por lei em 2018, 406 clubes NÃO possuíam o certificado.
Abaixo, os requisitos mínimos para que um clube possa solicitar o
reconhecimento como clube formador junto à CBF.
Os 5 requisitos do CCF
1 — Apresentar a relação de técnicos e preparadores
físicos responsáveis
2 — Comprovar participação em competição oficial
3 — Apresentar o programa de treino, seus
responsáveis e compatibilidade com a atividade escolar dos jovens jogadores
4 — Garantir frequência escolar dos jovens
jogadores
5 — Garantir a saúde dos jovens jogadores (por meio
da contratação dos seguintes profissionais: médico, fisioterapeuta, psicólogo,
nutricionista, e de ações como promover visitas frequentes dos ou aos
familiares, oferecer três refeições diárias, manter os alojamentos limpos e
locais de treinamento preparados para atendimento de urgência).
406 clubes atuando nas categorias de base sem CCF, é dizer que não é possível garantir que mais de 35 mil jovens tiveram acesso à escola.
Clubes sem CCF (406) *
Jogadores/clube (90) = 36540 jovens jogadores em clubes sem CCF
Vale lembrar que o Flamengo, um dos clubes mais
ricos do país, possuía o CCF na época do incêndio que vitimou 10 adolescentes
nas dependências do clube. Um indício de que não é possível afirmar que mesmo
nos clubes certificados o acompanhamento escolar, assim como o dos outros
requisitos do documento, seja rigoroso.
Bom de bola, bom na escola?
O distanciamento do ensino formal nos centros de
formação de jogadores acontece tanto literalmente quanto de uma forma mais
sutil. Estudos publicados por Melo e colaboradores em 2010 apontam que jovens
jogadores provenientes de outras cidades e estados que vivem em regime de
albergamento em clubes do Rio de Janeiro são os que detêm maior número de
reprovações e de atraso escolar quando comparados aos futebolistas em
formação que vivem com a família. Também segundo os pesquisadores, quanto maior
a faixa etária, mais os jovens são levados a estudar no período noturno.
Em outro estudo, realizado por Marques e Samulski em
2009 com 186 jogadores de 18 anos, também é apontado o atraso escolar e
dificuldades para conciliar a escola e a carreira esportiva, sendo que mais da
metade da amostra parou de estudar em algum momento para se dedicar ao futebol.
Não há, em geral, por parte dos jovens jogadores, uma relação afetiva com a escola, “predomina a visão do estudo como obrigação, um mal necessário imposto pelas famílias e pelos clubes para obter a permissão de continuar jogando futebol. É visível o distanciamento afetivo desses jovens da vida escolar” (UNICEF, 2014, p. 28). Tal distanciamento dos jovens em relação à escola, observado também por Rocha, em estudo publicado em 2011.
Existe também, certa complacência com o jovem
jogador. Sua vida escolar tende a ser mais permissiva do que a de um aluno
“regular”. “Professores e diretores se tornam parceiros e colaboradores na
concessão de benefícios sistemáticos que objetivam a compatibilização entre as
rotinas desses alunos. De modo semelhante ao desejo dos atletas, os pais são cientes
e concordam com o funcionamento de tais mecanismos” (ROCHA et al, 2011, p.
262).
A continuação da vida escolar, quando ocorre, é
muito mais por uma obrigação legal, do que por uma convicção. Por isso, “pouca
atenção é dada ao planejamento de uma carreira não esportiva futura” (MARQUES;
SAMULSKI, 2009, p. 115). Os clubes parecem “empurrar seus atletas para o ensino
noturno” (MELO et al, 2016, p. 6) e os jovens jogadores podem chegar a passar
semanas ausentes da sala de aula para participar de competições e testes dentro
e fora do país (MELO et al, 2016; SOUZA, 2008). A questão da perda de dias e
até semanas do calendário escolar por conta da carreira esportiva será abordada
na sequência.
As competições e o conflito
com o calendário escolar
As equipes de base no Brasil disputam competições
estaduais, usualmente de longo prazo e realizadas aos finais de semana,
nacionais, a partir da faixa etária sub-17 e mais restritas aos grandes clubes,
e torneios de sede fixa. Por serem disputados aos finais de semana, os
estaduais, em teoria, não prejudicam a frequência escolar dos jovens jogadores.
Em algumas ocasiões, porém, as equipes viajam para a partida no dia anterior à
disputa, na sexta-feira, o que pode ter como consequência para os jovens que
estudam no período da tarde e da noite faltas frequentes nesse dia da semana.
Essa situação é mais comum nos clubes grandes, pois eles possuem maiores
recursos para financiar a estadia de suas equipes em outras cidades quando
necessário. Os clubes grandes também disputam com maior frequência os
campeonatos nacionais de base, esses sim, em dias de semana.
As competições com sede fixa são as que causam um
maior impacto em relação à perda de dias letivos. Em um levantamento feito pelo
Indústria de Base com quatro clubes grandes do estado de São Paulo, foi
constatado que esses torneios significam, em média, a perda de 30 dias letivos
nas equipes da faixa etária sub-15 de cada clube.
Os estudos e os alojamentos
Se os jogadores que vivem em regime de albergamento
são os mais afetados pelos impactos negativos da carreira esportiva juvenil na
escolarização, é fundamental saber qual é o número total deles em âmbito
nacional. Para tentar responder à essa questão também foram utilizados números
conseguidos por meio de entrevistas com profissionais do futebol. De acordo com
os relatos, o número é pouco homogêneo entre as equipes. Um deles afirmou
trabalhar apenas com jogadores da própria cidade até a faixa etária sub-17, por
outro lado, em dois clubes do sudeste, a taxa de jogadores alojados em relação
ao total de jogadores da base é igual ou maior a 50% o que corresponde a cerca
de 145 jogadores nos dois clubes. A média de jogadores alojados em relação ao
total nos 6 clubes dos quais foi possível obter esse número combinada à
porcentagem de alojados no Fluminense, disponível em reportagem do
Globoesporte.com publicada em fevereiro, é de 25,2%. A mesma reportagem traz os
seguintes números de jogadores alojados em equipes de série A:
Athlético — 120
Atlético — 105
Avaí — 44
Bahia — 100
Ceará — 40
Chapecoense — 48
Cruzeiro — 35
Flamengo — 60
Fluminense — 45 (de um total de 300)
Goiás — 34
Palmeiras — 200 (alojados em duas casas no bairro da Pompéia)
Vasco — 45
TOTAL — 876
25,2% do total de jogadores
de base no Brasil (40320) = 10160 jogadores alojados no Brasil
Há ainda mais um degrau na pirâmide da formação dos
jogadores de futebol brasileiro. O dos jovens que buscam uma vaga em um clube
de futebol filiado à CBF.
3. OS PERAMBULANTES
Os processos de seleção dos clubes são bastante
diversificados e também muito heterogêneos, sendo realizado de acordo com as
respectivas capacidades financeiras de cada agremiação. Eles vão desde
seletivas, as famosas peneiras, até a utilização de uma rede de observadores
espalhada por diferentes cidades e estados. As crianças e jovens aprovadas, a
preferência é pelo ingresso nas menores faixas etárias possíveis, passam,
normalmente, por uma segunda fase do processo de seleção que consiste em uma
semana, duas em alguns casos, de treinos dentro do clube. Uma semana
fora de casa é igual a uma semana sem aulas, já que esse período de
treinos independe do calendário escolar de acordo com os relatos.
Se conseguir dados oficiais precisos sobre
jogadores profissionais e de base já é uma missão ingrata, quantificar o número
dos jovens “perambulantes” com um padrão mínimo de precisão é quase impossível.
Nos relatos dos entrevistados os números variaram entre pouco mais de 30 a
cerca de 500 jovens participando anualmente das semanas de avaliação nos clubes
brasileiros. Esses números são referentes apenas àqueles que se deslocam de sua
cidade de origem perdendo, por consequência, ao menos uma semana de aulas.
Clubes com categorias de base
no país (448) * Jogadores em avaliação por ano (30) = 13440
Há cerca de quatro anos, o Indústria de
Base acompanha de perto a rotina de dois jogadores que deixaram suas
famílias pela aposta em uma carreira no futebol. Um dos casos é o de um jovem
do interior de São Paulo que deixou a casa dos pais em 2015, aos 15 anos, para
viver a 70 km de sua cidade natal. O jovem se mudou para outra cidade de sua
região em 2016, mas ficou apenas dois meses na cidade,
voltando para seu primeiro clube seguindo a sugestão do empresário.
Apesar do período no segundo município, ele não transferiu sua matrícula escolar, terminando os estudos depois de voltar para a cidade do primeiro clube. Após outras idas e vindas, o jovem desistiu da carreira esportiva aos 18 anos.
Apesar do período no segundo município, ele não transferiu sua matrícula escolar, terminando os estudos depois de voltar para a cidade do primeiro clube. Após outras idas e vindas, o jovem desistiu da carreira esportiva aos 18 anos.
Esse garoto teve um início que é considerado tardio
no futebol, mesmo assim foi possível observar ao longo de sua carreira impactos
negativos dos frequentes deslocamentos em sua escolarização. O outro caso acompanhado
pelo site é o de uma criança, um menino roraimense que, desde os 7 anos, passa
por avaliações em clubes de São Paulo e Rio de Janeiro. A primeira foi em
novembro de 2017. Em 2018, foram mais três viagens ao sudeste do país para
semanas de avaliações, em abril, junho e outubro. Aprovado por um grande clube
do Rio de Janeiro, ele está morando com o pai e o irmão, de 5 anos, na cidade
desde o começo do ano. Fica claro nesse caso que a tentativa de emplacar uma
carreira esportiva é um projeto familiar. A pesquisadora Carmen Rial estudou a
história de jogadores bem-sucedidos e constatou que é comum que o filho mais
novo da família consiga êxitos maiores em sua carreira dentro do futebol, isso
acontece, pois, a família, melhor estruturada financeiramente com o filho
caçula, possui mais recursos para investir nele do que na tentativa anterior,
com o irmão mais velho, o que auxilia no êxito da carreira.
A prática de recebimento de jogadores menores de 14
anos em categorias de base de clubes de futebol, como no caso relatado, é
comum, principalmente nos maiores clubes do país. Por conta de os processos de
avaliação não respeitarem, usualmente, o calendário escolar, a consequência é
que milhares de crianças perdem uma quantidade significativa de semanas de aula
para participar desses processos.
Procurando joias, esquecendo
de cultivar o próprio quintal
Esse grande fluxo de crianças e jovens pelo
território brasileiro é questionável não só do ponto de vista educacional, mas
também esportivo. Países muito menos populosos do que algumas cidades
brasileiras formam quase tantos bons jogadores quanto o Brasil, como é o caso do Uruguai, com 3,45 mi habitantes e a
Croácia, com 4,15 mi. Tanto para o desenvolvimento humano dessas
crianças e jovens, quanto para a construção de um processo esportivo mais
sustentável, seria interessante que os jovens jogadores ficassem tanto tempo
quanto possível em suas cidades de origem.
Números
2700 vagas de qualidade por ano no futebol profissional
20 mil jogadores profissionais
40 mil jogadores de base
35 mil em clubes sem CCF
10 mil jogadores alojados
13 mil perambulantes
Ponderações
É importante pontuar que alguns clubes do futebol
brasileiro possuem ótimas estruturas em seus alojamentos e investem na formação
educacional de seus jovens jogadores. As matrículas em escolas particulares e a
necessidade de reforço para alguns jogadores, sinalizam que a defasagem
educacional é um fenômeno que extrapola o futebol, ela atinge as camadas
sociais dos jovens que usualmente buscam no esporte uma esperança de ascensão
social que a escolarização não lhes aparenta proporcionar. Por outro lado, a
formação educacional passa a ser uma preocupação obrigatória das instituições
esportivas a partir do momento no qual se assume a responsabilidade de abrigar
menores.
Os dados e estimativas apresentadas ao longo do
documento servem de alerta em relação ao número de crianças e jovens que perdem
semanas de estudo por conta do início precoce da carreira esportiva, mas também
para o fato de a educação não ser vista como prioridade no país de uma forma
mais ampla. O futebol, pelo lugar de destaque que ocupa na cultura nacional,
pode ser uma ferramenta potencializadora de mudança desse paradigma.
Ações de priorização da educação no esporte de
base, além garantir o previsto no ECA e impactar os milhares de crianças e
jovens diretamente ligadas ao esporte, podem servir como um gesto simbólico de
grande impacto em todo o país. Na Alemanha, por exemplo, um jogador de
dezessete anos não disputou uma partida da competição de clubes mais importante
do mundo, a Champions League, pois tinha uma prova na escola marcada para o
mesmo dia do jogo em questão. Mais do que o impacto prático da ação em si, que
pode até ser questionado, a mensagem passada é de que não há nada mais
importante do que a educação para um jovem, é o esporte de rendimento cumprindo
sua função de transmitir valores positivos para a sociedade.
Referências adicionais
Onde há fumaça, há fogo. Indústria de Base, 2019.
Procurando joias, futebol brasileiro esquece de
cultivar o próprio jardim. Indústria de Base, 2019.
Joia ou gente? Opinião de treinadores brasileiros
sobre jogadores de futebol da categoria masculino sub-15. Arthur Sales Pinto,
2018.
A infância entra em campo: riscos e oportunidades
para crianças e adolescentes no futebol. Unicef, 2014.
Jogadores de futebol no Brasil: mercado, formação
de atletas e escola. Antonio Jorge Gonçalves Soares e colaboradores, 2011
Perfil educacional de atletas em formação no
futebol no Estado do Rio de Janeiro. Leonardo Bernardes Silva de Melo e
colaboradores, 2010
Rodar: a circulação dos jogadores de futebol
brasileiro no exterior. Carmen Rial, 2008.
Veja a situação dos alojamentos das categorias de
base dos 20 clubes da série A. Globoesporte.com, fev/ 2019.
Apêndice– As fontes de
informação direta do relatório
Além da consulta a diversas fontes oficiais e
reportagens descritas ao longo do documento, profissionais de sete clubes do
futebol brasileiro masculino foram consultados diretamente para levantamento de
informações específicas sobre essas instituições. Eles nos forneceram dados
referentes ao número total de jogadores nas categorias de base, número de
jogadores alojados e o processo de seleção de jogadores, conforme a tabela a
seguir.
Apesar da tentativa de buscar clubes dos diferentes
níveis esportivos e administrativos, os dados levantados para esta primeira
versão do relatório são, ainda, muito superficiais. A necessidade de um
levantamento mais abrangente e preciso sobre os aspectos destacados ao longo do
documento é urgente. Os números apresentados servem para que se possa ter uma
ideia inicial da magnitude, e consequente relevância social, do futebol de base
masculino no país.
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Benê Lima