A responsabilidade científica do futebol
Nada se resolve só com especialistas, com a neutralidade do positivismo, mas com peritos que o são porque também conhecem o todo
Entretanto, o F.C. Porto assiste do pódio de campeão, piscando um olho discreto e vencedor, à conversa azeda entre os dois principais clubes da capital, que parecem viver em clima de marasmo, derrotismo, de verdadeira confusão mental.
Com efeito, o que é a Taça da Liga? No âmbito europeu
Não ponho em causa as poucas e lúcidas páginas que justificam a Taça da Liga. O que está aí, à vista de toda a gente, é que os principais clubes, ou olham para ela com um olhar lateral e sem interesse, ou fazem o que os actuais Benfica e Sporting (e digo actuais porque já os conheci, quando escreveram páginas imorredoiras, na história do nosso futebol) parecem ser especialistas: legarem à posteridade um retrato onde se surpreendem os tiques e os ridículos de uma macrocefalia que se fez acéfala.
E, no entanto, há no Benfica e no Sporting funcionários e técnicos (incluindo os de saúde) de eloquente competência e honestidade. Uma boa parte deles conheço-os, há largos anos. Alguns muito me ensinaram, quando foram meus alunos. O que se passa então, no futebol sénior destes clubes, que se encontra confuso e envolto em sucessivos falhanços, mascarados por longas
Há poucos dias, um daqueles técnicos, que não teme cotejo com o que de melhor apresenta, na sua área, o futebol inglês, ou o italiano, ou o espanhol, confessava-me, derramando uma sentida tristeza: “Professor, no campo da avaliação dos índices de fadiga e do controlo de treino e da recuperação física e da prevenção das lesões etc. e até no da observação e análise de jogo, estamos ao nível do que melhor se faz na Europa e por isso lhe pergunto: o que nos falta, no seu entender, para sermos uma equipa vencedora?”. Tinha o rosto carregado de ansiedade e prosseguiu: “Lembro-me, com frequência, do que nos ensinava nas aulas e muitas vezes dou comigo a repetir: é preciso saber mais do que futebol, para se saber de futebol. Professor, estou rodeado de gente que sabe de futebol e a prestação da equipa, que tem jogadores de classe, é um rosário de insucessos”.
Sempre tive receio de falar do que nunca fiz. Se bem que razoavelmente informado, designadamente no que à filosofia das ciências diz respeito, sou um modestíssimo filósofo. No entanto, não posso esconder que levo uma vida de convívio fraterno com treinadores desportivos de excepcional relevo, como o Mário Moniz Pereira, o José Maria Pedroto, o Mário Wilson, o José Mourinho. Leio, atentamente, os livros do Jorge Castelo, um teórico sem par no futebol europeu,
Se todos sabem muito de futebol e a equipa, mesmo com jogadores de grande valia técnica, não é eficiente, a organização, que transforma um conjunto em sistema, não funciona.
Repito: é a organização que une e transforma os elementos em sistema. Mas esta união é mais qualitativa do que quantitativa. Um conjunto de bananas não faz um sistema. O conjunto é sistema, quando é corpo e alma, ou seja, quando o jogador corre e remata e defende e luta... porque acredita! Quando o seu desempenho, a sua atitude ganhadora resultam de uma totalidade que não se desmorona porque objectivos bem nítidos e fundamentados a informam. Um dos mais notáveis biólogos de todos os tempos pode ser ouvido, neste passo: “o que define uma máquina são as relações (...). A organização de uma máquina implica matéria, mas esta matéria não entra enquanto tal na definição de máquina” (Francisco Varela, Autonomie et
Na alta competição, o futebolista é, em todos os momentos, interpelado, convocado a dar uma resposta complexa, total às solicitações do jogo e da própria vida. A responsabilidade do futebolista (como do praticante de qualquer outra modalidade, em alta competição) é humana, bem antes de ser futebolística.
Como bem o mostrou Michel Serres, no seu livro La traduction. Hermes III (Minuit, Paris, pp. 81-83), o perito, à maneira antiga (e há uma praga desta gente, nas altas instâncias do futebol) tem um discurso parcial, limitado, reduzido a uma única problemática. Como se tudo não estivesse em rede com tudo! Ocorre-me o Imbelloni, ao tempo treinador do Braga, a sustentar que no futebol tudo estava inventado. Desconhecia o antigo jogador argentino que, numa compreensão complexa da realidade, a inércia é impossível, dado que tudo é processo, tudo se encontra em devir histórico. No desporto, a competição é tentativa de superação
As crinas brancas das ondas emergiam à superfície da paisagem em que o nosso olhar se perdia. Almoçávamos tranquilamente, na Costa da Caparica...
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal
Perfil
Manuel Sérgio
Manuel Sérgio
É licenciado em Filosofia; doutor e professor agregado em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa; Medalha de Mérito Desportivo, concedida pelo Governo Brasileiro e Honra ao Mérito Desportivo, concedida pelo Governo Português; Medalha de Ouro do Conselho de Almada. É autor de 38 livros. Professor catedrático aposentado da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. É também presidente do setor universitário do Instituto Piaget (Almada). Antigo professor da Universidade Estadual de Campinas; sócio da Associação Portuguesa de Escritores e antigo Dirigente do Clube de Futebol "Os Belenenses".
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Benê Lima