Português discorre sobre Mourinho, futebol de rua e "sequenciação e manipulação ecológica" no futebolBruno CamarãoO Sporting Club Braga vive um momento muito especial em sua história. Neste século, o clube da região do Minho, em Portugal, teve mudanças em seu modelo de gestão, a partir da eleição de António Salvador, e deu o pontapé inicial a uma era de resultados que o projetaram em termos nacionais e internacionais.
Estruturalmente falando, a agremiação passou a utilizar o Estádio Municipal de Braga, construído para a Euro 2004, e desde aquela temporada participa ininterruptamente das competições continentais – conquistou a Taça Intertoto em 2008-2009 e atingiu as oitavas de final da antiga Taça Uefa em 2006-2007 e 2008-2009. Mas o ano passado é que reservou um capítulo especial e que merece a referência mais profunda.
Após se sagrar vice campeão nacional, sob o comando técnico de Domingos Paciência, o Braga obteve o direito de participar pela primeira vez desde sua fundação da fase de grupos da Liga dos Campeões da Europa. Nas eliminatórias do principal torneio entre clubes do mundo, bateu os tradicionais Celtic e Sevilla antes de encarar na chave o poderoso Arsenal, além do emergente Shakhtar Donetsk e do Partizan, a quem venceu duas vezes.
Como terminou em terceiro no grupo, migrou para a fase eliminatória da Liga Europa, na qual viria a eliminar Lech Poznan, Liverpool, Dínamo de Kiev e Benfica. Apenas não levantou o trofeu, pois parou diante do compatriota Porto – derrota por 1 a 0, em jogo único realizado em Dublin. O sonho europeu pode ter sido adiado. Mas o trabalho de campo seguiu.
O treinador principal Paciência recebeu o convite para integrar o staff técnico do Sporting, Liboa, e a direção bracarense contratou o treinador madeirense Leonardo Jardim. Depois de ter conduzido o Beira-Mar à primeira divisão na temporada de 2009/2010, e por ter feito idêntico a serviço do Chaves (promoção à Liga de Honra) na temporada anterior, Jardim aceitou o desafio e foi acompanhado por Carlos Pires, António Vieira, Rui Correia, Miguel Moita e Nélson Caldeira. Este último explica, nesta entrevista concedida à Universidade do Futebol, como se dá a relação entre todos.
“O treinador define o rumo, e a partir daí todos colaboram na estruturação do “plano de jogo” e nas propostas para as tarefas de treino (exercícios), que depois de revistos e harmonizados pelo Jardim serão levados à prática”, disse Caldeira.
Formado em Ciências do Desporto pela Universidade da Madeira, com mestrado pela Universidade do Porto defendendo a tese em análise do jogo de futebol, com o título “Relevância contextual das situações de 1x1 no Futebol. Um estudo com recurso à análise sequencial”, Caldeira esteve durante 12 temporadas desportivas no Marítimo da Madeira, iniciando como treinador adjunto da equipe B de futebol profissional e saindo na mesma função, só que na equipe principal, que disputa a primeira divisão portuguesa.
Em sua trajetória, também teve a responsabilidade de ser o treinador principal da equipe B, ao longo de três anos, na disputa dos campeonatos nacionais da segunda divisão. Entre outras funções desempenhadas, destaque ainda para a intervenção enquanto Coordenador do Centro de Excelência e Coordenador Geral de todo o futebol do clube.
Entre outras temáticas, Caldeira fala sobre a formação acadêmica em Portugal, a representatividade de José Mourinho para os jovens gestores de campo, o papel do futebol de rua na formação dos jogadores locais e porque propõe a “sequenciação e manipulação ecológica do treino do futebol” no lugar da periodização tática.
Caldeira (esquerda) e Jardim (centro) juntamente com a equipe técnica do SC Braga, apresentada no início da temporada: trabalho já rendeu qualificação à próxima fase da Liga Europa
Universidade do Futebol – Qual é a sua formação acadêmica e como se deu sua trajetória no futebol profissional?
Nelson Caldeira – Tirei a licenciatura em Ciências do Desporto, com opção, ao nível da metodologia do treino, pelo futebol. Na altura, a Universidade da Madeira, onde me formei, tinha um protocolo com alguns clubes de forma a realizarmos um “estágio” com a duração de um ano, o que me permitiu iniciar no Nacional da Madeira, como treinador de iniciados (sub-15), isto na temporada de 1993-94, apenas com 20 anos de idade. Como a experiência acabou sendo positiva, o clube me convidou a prosseguir e estive mais um ano nessas funções.
Esse trabalho foi fundamental porque me “abriu as portas” do futebol profissional, como “treinador adjunto” logo na temporada 1995-96, na Associação Desportiva de Machico, na segunda divisão portuguesa. Daí passei para outro clube da mesma divisão, a Associação Desportiva da Camacha e, posteriormente, em 1999-2000 acabei por ingressar no Marítimo da Madeira.
No principal clube da Região Autónoma da Madeira, aqui em Portugal, acabei por ficar 12 temporadas, iniciando como “treinador adjunto” da “equipe profissional B” e terminando na temporada passada como “treinador adjunto” da equipe principal, tendo oportunidade de ajudar na qualificação e na disputa das competições europeias (Uefa).
Tive oportunidade de trabalhar com diversos treinadores de grande qualidade, como Nelo Vingada (atualmente na China e antigo treinador de diversos países), Anatoly Byshovets (antigo treinador da União Soviética), Manuel Cajuda (atualmente técnico do Leiria, em Portugal) Mariano Barreto (antigo treinador de Gana), Sebastião Lazaroni (antigo treinador do Brasil), Carlos Carvalhal (atual treinador do Besiktas, da Turquia) e Pedro Martins (atual treinador do Marítimo). Neste último clube, tive oportunidade ainda de desenvolver outras funções, como a montagem do “laboratório de controle do treino”, a coordenação do departamento de prospecção (“scouting”) e também a assessoria da administração.
Também no Marítimo, nas temporadas de 2003-2004, 2007-2008 e 2008-2009, tive a oportunidade de liderar enquanto “treinador-principal” a “equipe profissional B”, que disputava o “Campeonato Nacional da 2ª Divisão”, o que me permitiu desenvolver a minha própria metodologia de treino, sob influência natural de todos os treinadores com quem tive oportunidade de trabalhar, mas também com base na formação acadêmica “contínua”, proporcionada pelas minhas funções paralelas de professor na Universidade da Madeira, ao nível das cadeiras de “metodologia do treino” e “futebol”.
No início desta temporada, tive o convite para ingressar no Sporting de Braga, onde estou atualmente como “treinador adjunto” do treinador Leonardo Jardim.
Entretanto, em termos acadêmicos, tive oportunidade de concluir o meu mestrado em 2001, ao nível das Ciências do Desporto, no ramo de “Treino de Alto Rendimento Desportivo”, na Faculdade do Porto, com uma tese sobre a “Análise do Jogo, com recurso à metodologia observacional”.
Claro que, em conformidade com o plano de certificação de treinadores em vigor na Uefa, tive também de concluir os níveis da formação específica de treinadores. Assim, em 1998, obtive a certificação Uefa Advanced e em 2005 a Uefa PRO, cuja licença foi validada em junho deste ano, através do Curso de Reciclagem Uefa PRO.
Até se firmar como treinador adjunto da equipe principal do SC Braga, Caldeira estudou bastante e passou por diversas etapas em equipes menores de seu país natal
Universidade do Futebol – Atualmente, você é um dos treinadores adjuntos no SC Braga. Poderia explicar um pouco mais sobre essa função e o dia-a-dia de trabalho no clube?
Nelson Caldeira – O Sporting de Braga, como outros grandes clubes em Portugal, tem uma estrutura técnica relativamente vasta. Como um dos “treinadores adjuntos”, procuro colaborar o melhor possível para o desenvolvimento da concepção de jogo e metodologia de treino defendida pelo treinador Leonardo Jardim.
Neste âmbito, existe um conjunto de tarefas que são distribuídas por todos os elementos da equipe técnica, desde a análise dos adversários, à elaboração dos “planos de jogo” e o “projeto estratégico” para cada confronto. Temos ainda aspectos como o desenvolvimento de “projetos individuais de treino”, de âmbito técnico, táctico e condicional, bem como tarefas ao nível do “registro e controle do treino”.
Universidade do Futebol – Como se dá a integração entre os diversos profissionais que atuam no staff técnico e o Leonardo Jardim? Há um acompanhamento conjunto com o departamento de formação de atletas (categorias de base)?
Nelson Caldeira – Porque já tive a oportunidade de liderar durante algumas temporadas uma equipe técnica, considero que todo o grupo de trabalho deve reforçar a “personificação” da liderança, apontando-a na pessoa do seu “treinador principal” (head coach). Tenho a convicção, portanto, que um “treinador adjunto” tem uma missão que deverá ser marcada pela descrição, sendo exigido um forte “low profile”. Considero que o nosso papel nestas funções, deverá ser o de procurar colaborar no desenvolvimento das “ideias e concepções do treinador principal”, pelo que as nossas próprias ideias e filosofia de treino e jogo devem passar para um plano completamente secundário.
É por isso que considero natural o fato de aqui no Sporting de Braga todo o “staff” ter na linha de pensamento e metodologia do “treinador” o seu fator aglutinador. Ao contrário do que acontece em outras estruturas, a concepção mais comum do treino desportivo em Portugal é altamente integrada e integradora. Nesta perspectiva, em que se enquadra o nosso “treinador principal”, o processo de treino desportivo é visto na sua totalidade, pelo que não existe a especialização profunda dos membros do “staff”, como em outros países. Todos somos “treinadores” que trabalham na globalidade do processo de treino, quer seja, mais em termos técnicos, ou táticos ou físicos, sempre sob a linha orientadora definida pelo treinador.
No que respeita à segunda parte da questão, o Sporting de Braga tem um departamento de formação, superiormente coordenado pelo prof. Agostinho Oliveira, ex-treinador da seleção portuguesa e com uma vastíssima experiência nas equipes de base do país.
A presença dele no topo da hierarquia do futebol “base” do clube espelha a forte aposta neste setor, que aqui, como em muitos outros clubes no nosso país, é visto com grande carinho e empenho. Por tudo isto, existe desde o futebol profissional um acompanhamento do trabalho que se vem desenvolvendo autonomamente na formação, mas o apertado calendário competitivo da nossa equipe não deixa muita margem temporal para um maior envolvimento.
Agostinho Oliveira, ex-treinador da seleção portuguesa e com uma vastíssima experiência nas equipes de base do país, hoje coordena o departamento de formação do SC Braga
Universidade do Futebol – Como é a sua relação de estruturação de trabalho com o treinador? Você participa diretamente da preparação da equipe para os jogos oficiais?
Nelson Caldeira – Como deixei transparecer na resposta à questão anterior, não só trabalho eu na preparação da equipe para a competição, como todos os outros membros da comissão técnica. O treinador define o rumo, e a partir daí todos colaboram na estruturação do “plano de jogo” e nas propostas para as tarefas de treino (exercícios), que depois de revistos e harmonizados pelo Jardim serão levados à prática.
Universidade do Futebol – A inserção de aparatos tecnológicos para auxílio da comissão técnica já é vista de forma consolidada pelos principais clubes europeus? Se sim, a relação entre custo e benefício é válida?
Nelson Caldeira – Claro que existe o recurso a alguma tecnologia, sobretudo ao nível da análise do jogo e ao processo de controle fisiológico do treino, isto para além de todos os recursos disponíveis ao nível do departamento médico do clube. Contudo, pela complexidade do processo de construção do rendimento desportivo numa realidade como a que temos no futebol de alta competição, nem sempre é linear o contributo de cada recurso tecnológico. Isso porque normalmente a tecnologia centra-se sobre “um fator” apenas, permitindo uma análise “microscópica” desse mesmo fator, mas não elucidando muitas vezes o contributo desse aspecto para a globalidade do potencial de rendimento.
Assim, acredito que nada substitui o olhar transversal do fenômeno futebolístico, ainda mais quando devido ao custo de muitos dos equipamentos não se justifica pormenorizar a análise de um determinado fator.
Dou como exemplo as avaliações de um aspecto fisiológico como os níveis de lactato, algo muito interessante no que respeita ao “pormenor” dos contributos dos diferentes sistemas energéticos num dado ponto do esforço, mas com muito pouca relevância para o entendimento das capacidades globais de prestação, mesmo no âmbito mais reduzido das capacidades condicionais. Para mais, o seu carácter “invasivo” afasta-o ainda mais da necessidade que julgo premente em manter a realidade “ecológica” do treino, relativamente ao contexto do jogo, da competição.
Por outro lado, a implementação de um sistema de seguimento do esforço em treino, por exemplo, através da frequência cardíaca (utilizamos o Team System2, da Polar), permite-nos, sem qualquer invasão e respeitando a globalidade do processo de treino, seguir a dinâmica do esforço individual e coletivo. Este equipamento tem ainda mais relevância quando a “densidade” competitiva é tão elevada, com jogos na quinta-feira referentes às competições europeias, e aqueles realizados no fim de semana para a Liga Portuguesa, pois permite-nos seguir alguns parâmetros que elucidam o grau de recuperação dos jogadores. Num plano idêntico, mas com valências técnicas distintas, insere-se o controle do treino por GPS, com acelerômetros.
Contudo, tal como deixei transparecer anteriormente, face à leitura global que realizamos constantemente ao efetuado em competição e pela necessidade de preparar minuciosamente a “próxima competição”, o principal investimento tecnológico está centrado na “análise do jogo”, no tratamento das imagens em vídeo, o que fazemos com recurso aos sistemas Amisco e Sports Code.
Universidade do Futebol – Qual o diferencial da formação acadêmica de Portugal em relação à pedagogia adaptada às práticas esportivas?
Nelson Caldeira – Esta é uma pergunta interessante, mas que acarreta uma elevada complexidade na sua resposta. Isto porque a formação acadêmica em Portugal (tal como noutros países da Europa) não está totalmente articulada com o sistema desportivo.
Existe, em primeiro lugar, uma enorme diversidade de “cursos” ao nível das “Ciências do Desporto”, traduzindo uma elevada variabilidade nas competências dos formandos. Por outro lado, no caso do futebol em particular, essa formação acadêmica não se traduz em qualquer reconhecimento ao nível da carreira de treinador, já que esta encontra-se estruturada segundo as diretrizes da Uefa e do seu modelo de formação (com os diversos níveis, incluindo o “Advanced” e o “Pro”).
Neste momento, existe ainda uma “névoa” acrescida pelas necessidades inerentes a um novo processo do próprio “Instituto do Desporto de Portugal”, no que respeita à emissão da “Carteira de Treinador”.
Assim, neste enquadramento “legal”, algo difuso da carreira de “Treinador de Futebol”, o papel das universidades não tem sido, em minha opinião, tão marcante quanto poderia. Contudo, considero fundamental dizer que a “formação acadêmica” tem tido em Portugal um duplo papel inquestionável.
Em primeiro lugar a “formação inicial” de possíveis “treinadores” para um mercado de trabalho aberto, onde todos têm a possibilidade de concorrer, mas onde em longo prazo só os mais aptos (com maior entendimento do futebol e do treino desportivo) têm mais probabilidades de obter sucesso.
Em segundo lugar, a “investigação” dos fatores de rendimento, num entendimento do fenômeno na sua globalidade, salvaguardando a complexidade da modalidade.
Para Caldeira, existe ainda uma “névoa” acrescida pelas necessidades inerentes a um novo processo na emissão da “Carteira de Treinador” em Portugal
Universidade do Futebol – Portugal possui uma cultura própria de futebol, e em especial, de formação de treinadores?
Nelson Caldeira – Pelos contatos que vou mantendo regularmente com colegas oriundos de outros países, julgo claramente que sim. Só assim se explica que Portugal, um pequeno país com cerca de 10 milhões de habitantes, ocupe um dos primeiros lugares do ranking da Fifa e que os seus clubes, com orçamentos muito reduzidos face a outros grandes clubes europeus, sejam crônicos candidatos às fases mais adiantadas das competições de clubes (Liga dos Campeões e Liga Europa). Isto permitiu que hoje Portugal ocupe o 5º lugar do Ranking da Uefa para o posicionamento dos seus clubes nas competições do continente.
E isto é tão mais importante quando juntamos a constatação de que todos os clubes profissionais de Portugal têm atualmente treinadores portugueses ao seu serviço. Para mais, são às dezenas os treinadores portugueses que hoje dão mostras da sua competência no estrangeiro.
E o que marca esta reconhecida competência?
Acho, em primeiro lugar, que temos uma tradição muito ligada à concepção de que o “Futebol de Rua” pode ter um papel preponderante na formação dos jogadores. Muitos dos jogadores de topo têm origem neste “jogo da bola”, “livre e espontâneo”. E por consequência a grande maioria dos nossos treinadores também guarda na sua essência essas raízes.
Assim, tal como a cultura futebolística portuguesa, os nossos treinadores são “altamente adaptáveis”, flexíveis, e ao mesmo tempo profundamente conhecedores do jogo e dos fatores chave para alcançar o sucesso.
Depois, existiram nos últimos 20 a 30 anos alguns aspectos os quais reputo verdadeiramente decisivos para a atual projeção do futebol português e dos seus treinadores.
Refiro-me, por exemplo, à demonstração da qualidade dos nossos jogadores jovens, expressa nos Mundiais sub-20 (em 1989 e 1991), que culminou também o primeiro avanço da estruturação do programa de formação de treinadores, liderado pelo prof. Carlos Queiroz e iniciado em 1984. Esse primeiro processo estruturado de formação trouxe as bases para algo que faltava ao caráter espontâneo do “futebol de rua”: a sistematização dos exercícios de treino e, fundamentalmente, a organização tática.
Este processo teve continuidade com a “mudança de paradigma” ao nível dos processos de treino anteriormente vigentes e que não tivemos medo de assumir. Quer ao nível dos cursos de treinadores da Federação Portuguesa de Futebol, com o prof. Jorge Castelo e a sua taxonomia de exercícios que trouxe uma nova terminologia diferenciadora a todos os formandos, quer ao nível da formação universitária em “Ciências do Desporto”, nomeadamente com o desenvolvimento das bases da “Periodização Tática”, na Faculdade do Porto, pelos professores Vítor Frade, Júlio Garganta e seus colegas.
É por isso que, em minha opinião, hoje os treinadores portugueses dominam tanto o lado aleatório e caótico do jogo ao manterem uma profunda “intuição”, preservando o caráter mais genuíno do jogo, com os fundamentos tácticos para o trabalho de “organização coletiva” no terreno.
Universidade do Futebol – Qual a sua avaliação sobre o trabalho de José Mourinho? O que ele representa em termos simbólicos para o país?
Nelson Caldeira – Além de ser hoje um símbolo de Portugal (tal como, no futebol, o são também Eusébio, Figo ou Cristiano Ronaldo), o efeito que José Mourinho teve sobre a imagem dos treinadores portugueses é verdadeiramente fantástico.
Em primeiro lugar, porque ele conseguiu êxitos internacionais que catapultam o nome do nosso país para uma escala global, que nunca antes tínhamos atingido. Depois, porque ele personificou a mensagem de “é possível”, mesmo nascendo num país periférico da Europa, e sem ter uma carreira brilhante como praticante, atingir os maiores sucessos. Desde que se conheça o jogo, e como moldar as nossas equipes para enfrentarem a competição com maiores probabilidades de êxito.
É claro que já existiam grandes treinadores portugueses antes de Mourinho. Começando por José Maria Pedroto, com quem o FC Porto iniciou a sua ascensão internacional, passando por Artur Jorge, que foi campeão europeu, em 1987, também pelo FC Porto, e chegando a outros nomes como Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Manuel José, entre outros. Mas a partir de Mourinho, os jovens treinadores portugueses preparam-se para uma dimensão europeia e não apenas para a escala nacional.
É por isso que hoje vemos, por exemplo, a ascensão do André Vilas-Boas (Chelsea), do Carlos Carvalhal (Besiktas), do Domingos Paciência (Sporting), ou do Leonardo Jardim (Braga), não como “clones” do José Mourinho, mas como treinadores que partilham a tal raiz comum em termos conceituais de que falava há pouco.
Carvalhaes, Paciência, Villas-Boas e Mourinho: treinadores portugueses que brilham no cenário europeu e servem de referência para os jovens
Universidade do Futebol – O Mourinho defende um modelo de treino integrado, em que não há separação entre o que é físico, técnico, tático e psicológico. O que você pensa a respeito disso? Tal filosofia de trabalho já era aplicada no futebol português por outros treinadores?
Nelson Caldeira – No primeiro processo estruturado de formação de treinadores em Portugal a que me referi, o prof. Carlos Queiroz incluiu uma disciplina que se denominava “Integração de Fatores”. Isto em 1984, numa altura em que José Mourinho era aluno na atual Faculdade de Motricidade Humana, tendo como professores Jesualdo Ferreira, Carlos Queiroz e Nelo Vingada.
Pessoalmente, considero que a nossa preocupação em “não dividir” analiticamente o processo de treino tem origem neste movimento que compreendia a necessidade de entender o fenômeno na sua “globalidade”.
Assim, enquanto outros países dividiam e especializavam cada vez mais os seus treinadores, em Portugal foram sendo formados “especialistas da generalidade”, também inspirados por pensadores das Ciências do Desporto, como Manuel Sérgio (em Lisboa) ou Júlio Garganta, Vítor Frade e João Paulo Cunha e Silva (no Porto), entre outros. Estes foram demonstrando que não fazia sentido o “micro” sem o “macro”, que não fazia sentido particularizar o treino de qualquer capacidade, desde que a mesma não fosse ligada à globalidade do jogo e à complexidade do mesmo.
José Mourinho: um treinador pós-moderno. Confira a coluna especial do filósofo português Manuel Sérgio
Universidade do Futebol – Como você definiria o que é a Periodização Tática, e quais os benefícios de usá-la como metodologia de treino?
Nelson Caldeira – Pelo contato que mantive com a Universidade do Porto, na altura do mestrado, e por contato com treinadores que aplicam na prática este “conceito global”, posso transmitir a minha opinião pessoal sobre o mesmo. Contudo, a minha leitura sobre o conceito não transmitirá toda a sua riqueza, o que pode ser conseguido através de uma conversa com o professor Vítor Frade, que poderemos considerar como o seu “mentor”.
Na minha ótica, devo começar por referir que o conceito base da “periodização tática”, nasceu por “oposição” às lógicas de periodização “convencional” que existiam (e existem) na metodologia geral do treino desportivo e que se aplicavam (e ainda se aplicam) de forma “cega”, em muitas equipes e contextos, ao treino do futebol.
Repare que o termo “periodização” sempre pretendeu destacar a necessidade de se dividir um determinado espaço temporal (por exemplo, a temporada desportiva) em “períodos”, com diferentes objetivos de treino, de forma a alcançar patamares de rendimento superiores aos que se conseguiriam se o treino fosse abordado sempre da mesma forma.
Na medida em que Matveiv, Platonov, Verkhoshank, Bondarchuk e Tudor Bompa, entre outros, teorizaram sobre a necessidade de “periodizar”, muitos treinadores e “preparadores físicos” importaram esta lógica para o futebol, apesar de ser um “jogo desportivo coletivo” que, na sua essência, está muito distante das modalidades individuais que serviram de base à estruturação das “leis” da “periodização convencional”.
E, portanto, é neste ponto que nasce a “periodização tática”, dizendo que se algo haveríamos de “periodizar”, ou seja, dividir em períodos temporais, não seriam, por exemplo, as curvas gerais de volume e intensidade, mas sim a aquisição de um jogar.
Assim, se desde o meu ponto de vista tivesse que destacar um conceito que melhor explicasse o ponto fundamental da “periodização tática”, escolheria o de “especificidade”, ou seja, a necessidade de treinar de forma “específica”, respeitando as lógicas do jogo na sua globalidade e, ainda mais “especificamente”, o “jogar” que pretende o seu treinador.
Ora, os defensores da “periodização tática” acreditam que todas as adaptações que os jogadores necessitam, de um ponto de vista individual e coletivo, advêm de um treino específico, subordinados ao fator que se considera mais importante, ou seja, o tático. Assim, os conteúdos de todos os outros aspectos (por exemplo, físicos) não devem ter uma lógica de “alternância vertical” (por exemplo, um bloco de algumas semanas destinado a uma capacidade e logo depois a outra), mas sim uma “alternância horizontal”.
Este princípio da “alternância horizontal” pretende transmitir a ideia de que em todos os microciclos (semanas), se deve trabalhar a potência, a velocidade e a resistência. Sendo que as características desses tipos de contração muscular devem estar em coerência com os aspectos táticos que o treinador pretende implementar, ao nível do seu modelo de jogo.
Quanto aos benefícios desta abordagem, devo dizer que, como em tudo na vida, podemos ter algumas vantagens, mas também teremos algumas desvantagens, o que depende enormemente da interpretação que cada treinador faz dos próprios conceitos da “periodização tática” e dos ajustamentos que realiza ao próprio cenário que encontra em cada clube, a cada momento.
É por isso, que, pessoalmente, defendo uma abordagem algo distinta da “periodização tática”.
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De fato, comparo frequentemente o trabalho de “modelagem” de uma equipe e a sua preparação para a competição desportiva, com a própria evolução das espécies, pela necessidade de adaptação que está presente em ambos os processos. É por isso que mais do que dividir em “períodos” o tempo disponível para treinar (seja no horizonte temporal de uma semana, ou de um mesociclo), o que considero fundamental no trabalho dos treinadores é a “sequenciação” e “manipulação” das aprendizagens que pretende promover.
E este aspecto tanto mais importante se torna quando o processo de aprendizagem não é linear. Ele evolui de forma relativamente caótica, aproximando-se de um “atrator”, seja ele um “modelo biomecânico” do gesto técnico, ou um qualquer princípio do “modelo de jogo” do treinador.
Considero assim que, mesmo na alta competição, estamos sempre procurando promover um conjunto de adaptações que torne a nossa equipe mais apta a enfrentar com sucesso o próximo adversário, não só daquilo que é previsível que ele realize (capaz de ser suportado por uma eficaz organização), mas mais do que isso que prepare a nossa equipe para se auto-organizar eficazmente num momento altamente “estressante” como o da competição.
É por isso que, pessoalmente, acabo por divergir um pouco dos fundamentos da “periodização tática” e prefiro inspirar-me na abordagem “ecológica” ao treino desportivo. Devo dizer, neste particular, que muito influenciado pelo prof. João Mateus, e que apresentou em 2004 no congresso mundial “Ciência e Futebol” os fundamentos para esta abordagem, creio que faz todo o sentido procurar as adaptações necessárias através de um processo que decidi chamar de “sequenciação e manipulação ecológica do treino do futebol”.
Não sendo aqui o espaço para aprofundar o tema, concluo que a “periodização tática” constitui um claro avanço face às abordagens “convencionais”, mas que temos de ser ainda mais audazes!
É por isso que proponho a “sequenciação e manipulação ecológica”, cujo conceito estou a procurar expor num livro que está em fase final de preparação e que conflui a minha reflexão sobre a experiência prática, mas também com o suporte teórico que advém da “Análise Ecológica das Tarefas”, de Walter Davis, e na percepção – ação, de Gibson.
Isto porque temos de procurar uma aproximação ao processo de treino que respeite não só a necessidade dos jogadores se “adaptarem” às ideias do treinador na formatação de um jogar, mas também na resolução dos problemas que ultrapassam essa mesma formatação (organização). Pois, o jogo não é só tático (embora este conceito possa ser entendido sob abrangências distintas). É muito mais do que isso... é jogo... ecologicamente falando, com toda a sua complexidade cultural, social, psicológica, física e emocional nas interações que emergem pela ação dos seus intervenientes.
De que serve, por exemplo, uma excelente “periodização tática” se o treinador não consegue criar o clima de trabalho adequado ao desenvolvimento da equipe? Ou se pura e simplesmente tem dificuldades de liderança, naquele contexto cultural e social específico? É por isso que digo que este processo altamente complexo não pode ser “periodizado”: ele tem de ser “sequenciado e manipulado”.
Universidade do Futebol – O que é o Modelo de Jogo em sua visão? E qual seria o atual, na equipe principal do SC Braga?
Nelson Caldeira – Na minha linha de pensamento, o “modelo de jogo” reúne a filosofia do treinador e as suas concepções de como uma equipe pode obter “sucesso”, ou seja, ganhar. Contudo, este “modelo” não deverá ser algo estático, mas sim enormemente dinâmico, na medida em que essas concepções devem estar em reflexão permanente face aos comportamentos e potencialidades dos seus próprios jogadores e ao contexto competitivo esperado.
O “modelo” é, assim, algo que deve guiar os comportamentos dos jogadores (conforme as ideias do treinador), mas que é inspirado constantemente pelos próprios jogadores.
Comparo esta necessidade de interação entre “treinador” e “jogadores” ao que se passa constantemente num sistema vivo. Por exemplo, se durante muito tempo se pensava que a comunicação entre o “cérebro” e o “coração” era basicamente num sentido, hoje sabe-se que a “informação” que o “coração” envia ao “cérebro” é provavelmente superior à que vem em sentido contrário. Isto porque o “cérebro” não teria a possibilidade de “conduzir” corretamente o “pulsar” do “coração”, se não o “ouvisse” permanentemente.
Assim, considero que o “modelo de jogo”, num âmbito da tal “sequenciação e manipulação ecológica” que defendo, é algo que ultrapassa o conteúdo tático unidirecional “treinador-equipe”, devendo ser um processo de construção altamente “ecológico”. Considero que o treinador, enquanto parte da equipe (tal como o cérebro faz parte do corpo), deve estar totalmente atento à informação que provém dos jogadores e de todas as outras partes da equipe, para ir construindo o seu modelo a cada dia que passa. O seu papel (do treinador) será o de descobrir a melhor “estrutura genética” para a sua equipe (o que podemos comparar ao processo de “sequenciação”), mas intervindo criteriosamente ao nível da “manipulação” dos constrangimentos dos exercícios de treino, de forma a modelar os comportamentos tácticos-técnicos, no contexto sócio-cultural da sua equipe.
Com toda a certeza que, com o passar do tempo e das sessões de treino, o “modelo” irá sendo “cristalizado” na “cabeça do treinador” (provavelmente, também, no papel), mas sabendo que esse modelo é único, só tendo “validade” para aquela equipe e, provavelmente, para uma parte da temporada. Isto porque, por exemplo, bastará a saída de um jogador para poder ser necessário refundamentar o “modelo”, com maior ou menor magnitude.
Na nossa realidade atual, no Sporting de Braga, o “modelo de jogo” nasce da confluência da filosofia de jogo, das experiências e concepções do treinador Leonardo Jardim, com as características particulares dos jogadores, entendidas no nosso contexto social e cultural.
É por isso que embora compreendendo o interesse dos leitores desta entrevista na resposta mais prática a esta questão, uma resposta mais aproximada sobre o “Modelo de Jogo” (atual) da nossa equipe só pode ser dada através de uma entrevista própria e extensa ao nosso treinador principal, de forma a tentar aproximar-se das razões, objetivas e subjetivas, que conformam os nossos processos de jogo neste momento.
“Modelo de jogo” nasce da confluência da filosofia de jogo, das experiências e concepções do treinador, com as características particulares dos jogadores, entendidas em um contexto social e cultural
Universidade do Futebol – Em sua avaliação, o que a sua equipe precisa ter nas diferentes dimensões do jogo em termos de grandes princípios, sub-princípios, sub-sub princípios, etc.?
Nelson Caldeira – Como procurei deixar transparecer, a minha divergência com a “periodização tática” não é absoluta. Considero a “periodização tática” um avanço considerável face à “periodização convencional”. Apenas penso que temos de ir mais além e, provavelmente, por um caminho algo distinto do preconizado por esta corrente.
Isto porque não compreendo como é possível um treinador ter o seu “Modelo de Jogo”, qual livro escrito e acabado, devidamente estruturado num conjunto de “princípios” e “sub-princípios” que podem conduzir à apropriação de um qualquer jogar por parte da sua equipe. Isto conduz a episódios recorrentes de treinadores que quando chegam a uma equipe, antes mesmo de procurar analisá-la com profundidade, estão muito mais preocupados em “transmitir” o seu “modelo” (estático) de “como querem que a equipe jogue”. Por isso, é habitual os comentaristas dizerem que aquela equipe “já joga à imagem do seu treinador”, ou como diz um analista português: “traduz a impressão digital do seu treinador”.
Ora, eu entendo que uma equipe não pode ter a “impressão digital do seu treinador”, mas sim “a impressão digital das interações de todos os seus elementos”. Assim o processo constante de construção de uma equipe, preparando-a para enfrentar a competição com maiores probabilidades de sucesso, deve ser entendido como algo bi-direcional, onde o treinador tem de estar muito atento aos “sinais” que surgem do envolvimento (equipe, jogadores, adversários, etc.). E onde cada “princípio” que ele considere pertinente incluir deverá se submeter à análise “intuitiva” da sua aplicabilidade naquele contexto em particular.
Sendo assim, considero muito “excessiva” a definição de “princípios”, “sub-princípios” e “sub-sub-princípios”, quando se está procurando criar adaptações a um jogar que, nunca nos esqueçamos, é algo que deveria ser “natural”.
Se juntarmos 10 jogadores e um guarda-redes, mesmo sem treinador a estabelecer qualquer tipo de princípios de jogo, eles próprios vão criar relações e definir as suas próprias dinâmicas de inter-ação. Todavia, porque a emergência da competição o obriga, é necessário acelerar estas “reações químicas”, pelo que devemos entender o treinador como um catalisador deste entendimento superior de adaptação entre os elementos da equipe (pela manipulação dos constrangimentos).
Desta forma, teremos não só uma “organização” estabelecida externamente pelo treinador, mas também uma “mais coesa auto-organização”, capaz de suportar com maior capacidade as grandes perturbações causadas pela própria competição.
Costumo dizer que apenas a “organização” seria excelente para enfrentar uma competição se esta não tivesse, por absurdo, um “adversário”. Mas a partir do momento em que existe um adversário, este irá nos colocar no jogo situações imprevistas, pelo que irá exigir uma “ordem relativamente caótica”, ou seja, uma forte “auto-organização”.
Uma das imagens que costumo dar é a tradicional do “balde com pedras”. Se o objetivo for arrumar o mais bem possível um conjunto de pedras dentro de um recipiente, poderá ser uma perda de tempo procurar “arrumar” de forma organizada, uma a uma, essas mesmas pedras. A análise objetiva das superfícies de cada pedra e das melhores possibilidades de ela se encaixar com as restantes pode ser ultrapassada rapidamente se simplesmente metermos algumas pedras num balde e as “agitarmos”. Provavelmente, o “acaso” irá “auto-organizar” as pedras na melhor configuração de “inter-ações”possível, fazendo com que naquele recipiente “caibam” mais pedras do que aquelas que caberiam se nós tentássemos organizá-las.
De igual modo, quando definimos princípios (“organizamos externamente as pedras de um balde”), estamos aproximando os comportamentos de um determinado “jogar”, mas estamos limitando muitas inter-ações possíveis e desejáveis (todas as que iriam emergir naturalmente pelo “agitar do balde”).
É por isso que considero que o “jogar” de uma equipe deve ser construído através da observação, da análise das interações mais fortes que os seus jogadores podem tomar, através do próprio "jogo". Só depois devem surgir alguns princípios, únicos e irrepetíveis para aquela equipe em particular (tal como, por vezes, basta mudar a “localização de uma pedra no balde” para que a “auto-organização” funcione ainda melhor). Mas sem complexificar externamente (ou seja, pelo treinador), com demasiados “sub-princípios”.
Isto porque considero que o jogar, livre, dinâmico e intuitivo, não pode estar a ser demasiado perturbado por “princípios de jogo”, que são por definição “conscientes e relativamente estáticos”.
Claro que são necessários alguns pontos de ligação entre os elementos da equipe (o que chamo “atratores”), mas o entendimento da estrutura de jogo (chamada habitualmente de sistema e que, em minha opinião, constitui o mais forte atrator da auto-organização) e de alguns princípios tático-estratégicos são claramente suficientes. Mas mais do que suficientes, devemos ter a noção de que “demasiados princípios e sub-princípios”, tornam o “jogar” bem menos intuitivo (porque mais consciente), logo menos rápido e menos dinâmico.
Podemos estabelecer, como exemplo, o “princípio” de defender com as “linhas juntas”. E este princípio é suficiente para estruturar toda a “fase defensiva”, quer quando estamos “pressionando alto” ou quando estamos “defendendo com a linha defensiva baixa”. Agora se vamos em cada momento (adversário, resultado, etc), optar por uma ou outra, isso vai depender em muito da análise que fazemos da nossa própria equipe (por exemplo, da rapidez dos jogadores que compõem a nossa linha defensiva). E mais importante, este princípio aglutinador (geral) não precisa de implicar um “vasto conjunto de sub-princípios”.
O fundamental, em minha opinião, é não esquecermos de que “quem joga são os jogadores”. São eles que ganham, na prática, os encontros. É por isso que, neste contexto onde é fundamental o pensamento e decisão intuitiva, guiada sub-corticalmente, o treinador deverá ser um “sequenciador e manipulador ecológico” e não um “periodizador da tática” (claro que muito menos deverá ser um “periodizador convencional”, com toda a atomização que lhe está subjacente).
Você vai montar o seu treino? Não esqueça (e cuidado com) o princípio das propensões
Universidade do Futebol – Como o senhor enxerga o período conhecido como “pré-temporada”, que seriam os dias iniciais da temporada, cerca de 15 a 30 dias dependendo do clube? Quais as preocupações com esse período de tempo na sua visão metodológica?
Nelson Caldeira – Por tudo o que aqui foi dito, considero este período como fundamental, assim, como toda a temporada!
Porque se é indubitável que este período, sem competição oficial, deveria permitir a construção, diria, “interativa” do “modelo de jogo da equipe”, conhecendo os jogadores e as suas interações, e introduzindo alguns princípios por parte do treinador, a verdade é que toda a temporada necessita de um “construir” permanente deste “jogar” que identifica a equipe.
Tal como o nosso corpo está permanentemente em renovação (nascem e morrem milhares de células todos os dias), também a equipe está em construção permanente quer de forma mais marcada quando entram e saem jogadores, quer pelas próprias alterações “naturais” das suas capacidades individuais e coletivas (chamados de forma comum como alterações na forma desportiva).
Assim, considero a pré-temporada um “privilégio” (pela ausência de competição oficial) no processo de construção da equipe e do seu “jogar”, podendo constituir-se como uma base importante no entendimento entre treinador e jogadores, no estabelecimento de princípios comuns e das próprias regras de funcionamento da equipe.
Caldeira vê a pré-temporada como um "privilégio": momento de maior entendimento entre jogadores e treinador no processo de construção da equipe e do seu "jogar"
Universidade do Futebol – Qual a importância do erro no processo de ensino-aprendizagem (em especial a jovens atletas em formação)?
Nelson Caldeira – O “erro” só é “erro” na medida contrária ao nosso entendimento do “correto”.
Assim, mesmo em termos técnicos, o “erro” deve ser visto como “dificuldades de adaptação” aos constrangimentos que são levantados por uma tarefa (exercício de treino ou situação de competição).
Assim, na “sequenciação e manipulação ecológica” que advogamos, tanto em termos técnicos (na formação dos jovens jogadores), quer em termos do “jogar” tático-estratégico de uma equipe de alta competição, é algo inevitável e até desejável em certa medida, pois é esse “erro” que nos serve de “feedback” inerente à distância relativa que um dado comportamento mantém do atrator pretendido.
Agora, o aspecto fundamental é que o treinador propicie uma aproximação gradual a um determinado atrator. Seja ele do “gesto técnico eficaz”, seja ao “jogar” que é pretendido pelo treinador, em confluência com os sinais “emanados” pela própria equipe.
Um exemplo que posso utilizar para melhor tentar explicar o que considero a este nível é o da imagem dos equipamentos dos jogadores num vestiário, no fim de um treino ou jogo.
Se não existir nenhum lugar para os jogadores deixarem os seus equipamentos sujos, o mais provável é que os equipamentos fiquem muito dispersos pelo chão. Agora, se existir um “cesto” qualquer para receber os uniformes sujos, então eles ficarão dispersos, mas dentro desse mesmo “cesto”. Claro, que alguns calções ou camisas podem ficar no chão, mas a grande maioria ficará dentro do “cesto”.
Ou seja, podemos dizer que a existência do “cesto” para a roupa suja, no vestiário, funciona com um “atrator”, concentrando no seu interior as peças de roupa sujas. Com o “cesto” podemos considerar que é um “erro” se após o treino existir uma peça de roupa no chão, mas, na sua ausência, não poderá ser considerado “erro” esse mesmo comportamento.
No âmbito do futebol profissional, a “modelagem” dos comportamentos, dando este exemplo, é “acelerada” ao criarmos um constrangimento do tipo (por exemplo): existe uma multa pecuniária para quem deixar uma peça de equipamento fora do cesto de roupa suja! Desta forma, fica muito fácil “corrigir” o “erro”, pois o comportamento está fortemente “constrangido”, em direção ao pretendido: não deixar equipamentos sujos no chão do vestiário.
Assim, os princípios do jogar funcionam como um atrator de comportamentos, concentrando esses mesmos comportamentos no seu interior. Claro que continuarão existindo comportamentos fora dos princípios, ou seja, continuarão existindo “erros”. Contudo, da mesma forma em que os jogadores podem ser “educados” a colocar a “roupa suja” no respectivo “cesto” (mesmo que este seja cada vez “mais pequeno”, constrangendo a tarefa), também podem “apreender” a executar um determinado gesto técnico ou a respeitarem um determinado princípio tático-estratégico, diminuindo gradualmente os seus “erros”.
Agora é importante termos a noção de que, em determinados contextos, pode ser positivo os jogadores passarem pela experiência da “confusão” (caos) que é um chão de um vestiário repleto de equipamentos sujos e dispersos. O vivenciar dessa experiência (ter que passar com a roupa limpa, depois do banho, pelos equipamentos sujos dos demais colegas) pode tornar mais forte a aprendizagem. E os jogadores perceberem que é muito melhor ter a roupa suja num recipiente próprio. Ou seja, o “erro” pode ser muito positivo para a aprendizagem, independentemente do contexto competitivo de que estamos falando.
O que acontece muitas vezes é que o treinador não dá tempo ao “erro”, e sem ter consciência disso não só estará limitando a “auto-organização” como também tornando as aprendizagens menos consistentes.
Brasileiro Márcio Mossoró conversa com Leonardo Jardim; a importância do erro e o "vestiário sujo"
Universidade do Futebol – Qual é a relevância da universidade para o diálogo e para a melhoria da atuação do profissional de futebol?
Nelson Caldeira – A universidade, enquanto pólo de desenvolvimento do conhecimento, pode ser verdadeiramente importante para a evolução do futebol profissional. Contudo, cabe à universidade iniciar uma verdadeira aproximação ao futebol, porque neste momento, pelo menos em Portugal, existe ainda algum distanciamento.
Para isso, acho importantíssimo que a universidade ponha em causa os seus próprios métodos de produção de conhecimento, aproximando-os das necessidades da comunidade futebolística e dos treinadores em particular.
Os treinadores no seu dia-a-dia necessitam de lidar com uma enorme quantidade de variáveis que transportam consigo uma elevada complexidade, que tem de ser respeitada no momento em que a investigação pretenda produzir conhecimento “aplicável” à prática.
E o problema é que o próprio método científico coloca muitos entraves a esta aplicabilidade. Dou um exemplo muito simples no que respeita à análise do jogo e que se prende com o conceito de posse da bola.
No campo, é muito claro para os treinadores quando um jogador (e a sua equipe) está com a posse da bola. Contudo, em termos acadêmicos, ao nível da análise do jogo, temos de concretizar o que é estar em “posse da bola” e temos de criar algumas definições que clarificam a análise, mas afastam da realidade.
Por exemplo, se considerarmos que uma equipe está de posse da bola quando um ou mais elementos da mesma realizam no mínimo dois toques consecutivos, estamos “filtrando” aquele conjunto de interceptações (vulgarmente designados por “cortes”) em que uma equipe apenas toca por uma única vez, continuando a bola na posse do adversário.Contudo, também estaremos afastando aquelas situações em que um determinado jogador, embora apenas dando um toque na bola, tinha todas as condições de tempo e espaço, para decidir livremente a próxima ação, mas ainda assim falha o passe ou outra ação técnica.
Aí, para os treinadores, a sua equipe esteve com a “posse da bola” e perdeu-a, enquanto para os “analistas do jogo”, aquela equipe “nem chegou a ganhar a posse”. O mesmo se passa no domínio do treino das capacidades condicionais, pois os investigadores têm referenciais que têm uma reduzida aplicabilidade ao terreno.
Ora, quando os investigadores chegam ao terreno trazem muitas vezes este tipo de preocupações acadêmicas, que pouco significam para os treinadores.
Por outro lado, se o universo do futebol profissional não se abrir de forma significativa à própria investigação, também este hiato não será minimizado.
O que estou falando é na necessidade de se estabelecerem verdadeiras “pontes” e não apenas da utilização do nome da “universidade” para dar “credibilidade teórica” a alguns projetos desenvolvidos pelos clubes (sobretudo ao nível da formação), mas que na maioria das vezes passa ao lado dos gabinetes das equipes técnicas do “futebol profissional”.
Neste âmbito, sei que já existem alguns casos de sucesso desta necessária parceria entre “universidades” e “futebol profissional” que urgem ser replicados e ampliados.
Porque, com dizia Kurt Levin, “não há nada mais prático do que uma boa teoria”, mas no meu ponto de vista, não podem existir boas “teorias” se não estiverem fortemente alicerçadas na “prática”.
Caldeira vê distanciamento entre academia e prática futebolística; treinadores necessitam de amparo diante da complexidade do ambiente que os cerca
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Sinopse
"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."
CALOUROS DO AR FC
domingo, dezembro 11, 2011
Nelson Caldeira, treinador adjunto do SC Braga
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Benê Lima