Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

sábado, setembro 08, 2012

Adriana Silva Amorim, professora de Dramaturgia e mestre em Artes Cênicas

Artista fala sobre estado de arte do jogo, relação técnico-professor dos atletas e espírito interdisciplinar
Bruno Camarão / Universidade do Futebol

Adriana Silva Amorim aprendeu a amar o futebol sob um olhar bem peculiar. Filha de pai corintiano, esposa de marido tricolor baiano, a professora de Dramaturgia na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e mestre em Artes Cênicas envergou o sentimento apaixonante do futebol para o lado do parceiro. E, consequentemente, para o viés acadêmico.

A atriz de formação realizou uma dissertação de mestrado intitulada “Teatro x Futebol: por uma dramaturgia do espetáculo futebolístico” e costuma dizer que a pesquisa busca sistematizar intelectualmente aquilo que o povo já sabe, dado que o saber popular sempre será anterior e superior ao saber escolar, sobretudo no campo da cultura.

Adriana passou a estudar aquilo que o povo sabe e experimenta no cotidiano. Mesmo tendo chegado, como intelectual, “atrasada à festa da vida real”.

Para ela, o futebol tem origens em ritos sagrados, como o teatro, e é feito num lugar específico para se ver, como o teatro. Os paralelos continuam: a modalidade tem seus elementos próprios de constituição como o teatro, é efêmera e eterna ao mesmo tempo, enquanto cena, exatamente como o teatro.

“O futebol é uma representação da vida real, colocando em cena importantes elementos da experiência humana, como o teatro. O futebol requer uma apropriação do modo de fazer, sobretudo do ponto de vista corporal, como o teatro. Por que, então, o futebol não é arte?”, questiona Adriana.

A doutoranda em Artes Cênicas, com licenciatura em Teatro, entende que um gol é um processo de transformação do ‘eu’ particular no ‘eu’ coletivo e essa definição está embargada em algo político. As manifestações físicas e comportamentais do torcedor numa partida decisiva representam um momento de fronteira entre a vida real e cotidiana e a existência subjetiva.

“Em tempos de tão poucas experiências ritualísticas, em tempos de racionalização profunda, eu acredito que o futebol se configure como importante manifestação simbólica do homem contemporâneo, porque através dele, como nos ritos religiosos antigos, o homem sai de si e experimenta outra existência que é fundamental porque ainda é coletiva e nós somos, eu não tenho dúvida, seres coletivos, apesar de vivermos e conduzirmos a sociedade e as relações de forma tão individualizada”, acrescenta.

Nesta entrevista concedida à Universidade do Futebol, a artista fala sobre como é possível um jogador de futebol se alfabetizar em todos os sentidos, do lingüístico ao político, passando estético, e também se dedicar ao aprendizado da própria profissão. Além disso, enaltece a relação “treinador-professor” existente nos clubes e o espírito interdisciplinar que molda as comissões técnicas.

Universidade do Futebol – Em primeiro lugar, fale um pouco sobre a sua relação com o futebol e como o esporte se integra à sua atuação profissional.

Adriana Silva Amorim – Minha relação com o futebol não era tão intensa quanto se pode supor, por conta da minha escolha do objeto de pesquisa no mestrado e no doutorado. Sou filha de um corintiano e durante o tempo em que vivi em São Paulo, tanto na infância, quanto mais tarde na juventude, alimentei algum envolvimento com o time, mas nada que se possa considerar uma grande paixão. Mais tarde, de volta à Bahia, tornei-me torcedora do Bahia, por influência do meu namorado (agora marido). Um ótimo objeto de estudo para os especialistas em questões de gênero, pois sempre digo nas rodas de conversa ou nos congressos: “Era corintiana porque meu pai mandava e agora sou Bahia porque meu marido mandou”! Uma brincadeira infame, que não deixa de ser verdade.

Somente depois da pesquisa, porém, é que virei uma aficionada pelo futebol, intensificando minha torcida pelo Tricolor Baiano, a ponto de não conseguir assistir à final do último Estadual, com medo de dar um ataque nervoso.

Em relação à minha atuação profissional, o futebol aparece apenas como tema das minhas reflexões sobre arte, teatro, recepção estética e história da arte e história do teatro ocidental, mais especificamente. É importante esclarecer que não estudo esporte e sempre que falo do futebol falo de seu aspecto cultural e estético. Obviamente tenho que passear por questões antropológicas, históricas e sociológicas e aí acabo tendo que falar um pouco sobre o esporte, mas somente do ponto de vista da estruturação do pensamento específico do meu trabalho.

Confesso que já tentei enveredar-me por uma construção artística prática que dialogasse com o que eu estudo na teoria, mas acho que mesmo estando há quase cinco anos me dedicando a esta pesquisa, talvez ainda não tenha chegado a hora de enveredar-me por esta construção prática. Alguns grupos de teatro trabalham com a perspectiva do esporte na criação de suas obras, são os chamados matches de improvisação, com base nas teorias do Teatro Esporte, mas eu ainda não tive a oportunidade de experimentar. Anseio por concluir a pesquisa conceitual e buscar experiências práticas que dialoguem com minhas suposições teóricas.



 

Tricolor, Adriana tem no futebol um tema das reflexões sobre arte, teatro, recepção estética e história da arte e história do teatro ocidental, mais especificamente

 

Universidade do Futebol – A sua dissertação de mestrado é intitulada “Teatro x Futebol: por uma dramaturgia do espetáculo futebolístico”. De onde surgiu a ideia dessa abordagem e como você estruturou o trabalho?

Adriana Silva Amorim – Eu sou atriz e no ano de 2007 estava em cartaz com meu grupo num teatro de Salvador. Como a maioria dos grupos da cidade, tínhamos sérios problemas de público, com uma bilheteria muito fraca. Como membro da Cooperativa Baiana de Teatro na época, meu grupo junto com os demais se dedicava a discutir e pensar estratégias para este que parecia (e ainda parece ser) o grande problema do teatro contemporâneo: a falta de público. Acontece que num domingo, saindo meio abatida de mais uma sessão com pouquíssimas pessoas na plateia, deparo-me com a manchete do jornal “A Tarde”: “60.000 PAGANTES NA FONTE NOVA”.

Essa manchete realmente mexeu com alguma coisa em mim, ou melhor, com várias coisas em mim. E olha que era um jogo da Série C, justamente quando o Bahia conseguiu o acesso à Série B, o dia do acidente na Fonte Nova. Eu me lembro que dizia aos amigos que esse risco a gente não corria: o risco de um teatro desabar por excesso de gente feliz pulando dentro dele. O mais previsível, ao ler a manchete, seria eu ficar com uma raiva mortal do futebol e maldizer os 60.000 pagantes. Pois foi justamente uma sensação oposta que me acometeu. Eu pensei: “deve ter alguma coisa muito mágica no futebol que a gente não tá conseguindo captar. Não dá pra ignorar a força desse evento”.

Neste momento eu havia abandonado meu projeto de pesquisa com o qual havia entrado no Programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, por razões diversas. Estava sem projeto de pesquisa, finalizando o primeiro semestre do mestrado. As professoras da disciplina de Pesquisa em Artes Cênicas e o orientador entenderam meus motivos e me deram um tempo para eu configurar outro projeto.

Assim, depois do impacto da fatídica manchete, o futebol passou a chamar muito a minha atenção. Em casa, com a TV ligada e conversando com os amigos, comecei a problematizar algumas questões. Uma delas foi a força da torcida. No jogo que passava, a torcida gritou tanto o nome de um jogador que ele entrou em campo. Ficamos pensando como seria legal se um ator estivesse mal em cena, a plateia gritasse e ele fosse substituído. Essa força da torcida me deixou impressionada e passei a observar sua influência, sobretudo a força das grandes torcidas organizadas. Então, depois dessa longa introdução, digo que a minha aproximação com o futebol sempre foi do ponto de vista do comportamento da torcida.

Na estruturação do meu trabalho, eu acabei passando por um processo de organização, como é próprio do processo de pesquisa. Eu estava apaixonada pela torcida de futebol, compreendendo o torcedor como um espectador especializado, coisa que o dramaturgo, diretor e grande teórico do teatro Bertolt Brecht (1898-1956) sempre sonhou. Brecht admirava as lutas de boxe da Alemanha da primeira metade do Século XX e sonhava com um teatro que causasse nos espectadores o mesmo que as lutas causavam. Algo bem parecido com o futebol da gente. Assim comecei a estruturar meu trabalho a partir das teorias da recepção estética, com foco no torcedor.

Meu orientador, porém, muito sabiamente, me alertou para o seguinte: como estudar a recepção de um evento esportivo, do ponto de vista estético, sem antes configurá-lo como tal? Assim, sua sugestão foi que eu configurasse o futebol do ponto de vista da encenação para depois fazer uma análise da sua recepção. Como a pesquisa era de mestrado, curta e rápida, não houve tempo para fazer a segunda parte, que na verdade era a ideia original. Isso ficaria como tarefa para o doutorado. Dessa forma, o mestrado tornou-se a tentativa de configurar o futebol enquanto evento espetacular, verificando seus elementos cênicos e dramatúrgicos.

A estrutura da dissertação responde à seguinte lógica: o primeiro capítulo fala sobre o universo do futebol, levantando dados históricos, elementos básicos, uma pitada sociológica e um pouco sobre o futebol no Brasil. No segundo capítulo eu falo sobre os aspectos artísticos do futebol. Tento discutir sobre o conceito de arte, sugerindo que o futebol é um evento estético e não apenas esportivo. Neste capítulo faço um levantamento dos elementos cênicos que fazem do futebol, no meu ponto de vista, um espetáculo. No terceiro e último capítulo faço um levantamento dos elementos dramatúrgicos do futebol. Para quem não é iniciado em teatro, não custa esclarecer que elementos cênicos são todos aqueles relacionados à cena em si, concretamente, ao que vemos na nossa frente e elementos dramatúrgicos são aqueles que dizem respeito ao que talvez pudéssemos chamar de discurso da cena, uma espécie de criação ficcional que se estabelece com a organização dos elementos cênicos.

No teatro, novela ou cinema seria, grosso modo, dizer que a dramaturgia está ligada à história que se conta através da ação. Mas isso já é bem específico da pesquisa do ponto de vista do teatro e dizer assim do modo que estou dizendo é quase uma heresia. Se alguém de teatro ler isso dito assim, dessa forma, estou morta (risos).


Adriana atuava em um teatro, para um público pequeno, e se viu motivada a entender mais sobre o futebol após se deparar com uma manchete de jornal sobre um jogo do Bahia

Universidade do Futebol – No segundo capítulo de sua tese, em “O Futebol através da História – dos ritos sagrados ao futebol moderno”, você levanta uma questão que eu gostaria de fazer: a partir de quais elementos culturais o futebol se constro´i e ao faze^-lo como interfere na constituic¸a~o desta mesma cultura?

Adriana Silva Amorim – De todas as leituras importantíssimas que fiz no mestrado, a mais reveladora e transformadora foi a obra de José Miguel Wisnik Veneno Remédio, o futebol e o Brasil (Cia da Letras, 2008). A maestria com que o poeta, professor e compositor trata as questões do futebol no nosso país, e de alguma forma em todo o mundo, é de tirar o fôlego. Então, boa parte da minha defesa, fora do universo teatral que é a minha especialidade direta, está centrada nos conceitos apresentados por Wisnik.

Assim, a partir do cruzamento de sua leitura com outros autores, percebi que o futebol ao desembarcar no Brasil tem seus princípios completamente transformados por traços e comportamentos do nosso povo, ao passo que, com o passar dos anos, a prática do futebol vai interferir na construção da identidade deste mesmo povo. Isso revela um processo bastante dialético, pois nós construímos o nosso futebol e este futebol nos constitui. Claro que esta ideia é foco de grandes debates e sonoras polêmicas. E aí está o centro nervoso do meu pensamento em relação ao futebol e à cultura como um todo. Quem, como eu, entende o futebol como parte da nossa identidade, reconhece o fato de que ao sair das mãos da elite branca e ir parar nos pés, só para não perder a metáfora, dos negros operários, o futebol ganhou uma nova configuração.

A criação do drible, que para muitos antropólogos reúne elementos de outras manifestações culturais dos negros e mulatos brasileiros, como o samba, por exemplo, aliado a uma nova forma de comportamento em campo tanto do ponto de vista individual do jogador quanto do ponto de vista do relacionamento entre o corpo coletivo de um time, é o mais emblemático elemento criativo genuinamente brasileiro. Claro que esta tese recebe muitas críticas, por considerar racista a análise de que os negros teriam um comportamento corporal diferente dos brancos. Eu não quero entrar nesse debate, por dois motivos.

Primeiro porque não tenho estudo suficiente em sociologia para bancar debates sobre racismo ou sobre identidades do ponto de vista étnico. Segundo porque não é o foco da minha pesquisa. O que é foco de minha pesquisa, deste ponto de vista, da constituição dialética do futebol e do povo brasileiro é o fato de que – e aí entro no universo do teatro também – sempre fomos, e ainda somos bastante colonizados. Então, é difícil pra gente aceitar que uma prática popular, vivenciada por negros operários, que envolve sobretudo o desempenho corporal, supostamente em detrimento à atividade intelectual (supostamente, é importante ressaltar), é difícil aceitar essa atividade como formadora de nossa identidade e, do ponto de vista cultural e artístico, mais difícil ainda configurá-la como alta produção estética.

Costumo dizer que minha pesquisa busca sistematizar intelectualmente aquilo que o povo já sabe, dado que o saber popular sempre será anterior e superior ao saber acadêmico, sobretudo no campo da cultura. Estudamos aquilo que o povo sabe e experimenta no seu dia-a-dia. Como intelectuais, chegamos sempre atrasados à festa da vida real.



 

Universidade do Futebol – Como se deu a “esportilização” dos rituais, chamada por você, e a modernização do uso da bola? Estes foram os pontos mais relevantes para a criação do “futebol moderno”?

Adriana Silva Amorim – Estes termos são resultado do cruzamento entre algumas teorias de Gerd Bornheim, (1929 – 2002) filósofo brasileiro especializado em Brecht e Johan Huizinga (1872 – 1945), filósofo holandês que na década de 30 escreveu Homo Ludens, um tratado sobre o jogo na cultura. Os dois autores falam sobre a diferença entre jogo e esporte.

Quando comecei a estudar futebol intensamente, descobri que o nosso esporte favorito tem origem em antigos mitos registrados em diferentes partes do mundo. Os ritos que se aproximam do nosso futebol e de quem mais temos registros são os ritos do México pré-colombiano e um rito da região onde hoje é a França que apresenta características similares ao futebol moderno. Na leitura destes ritos encontramos diferentes registros sobre o uso da bola, por exemplo. Algumas leituras dão conta de que nas civilizações pré-colombianas havia um jogo chamado Tlachtli, que era jogado com os quadris e que a bola deveria passar por um aro que ficava no alto de uma parede (uma variação do nosso gol). O jogo, neste caso – ao contrário do esporte hoje – envolvia importantes questões mitológicas para o povo que o praticava. Apenas homens especiais poderiam jogar (e assistir) e o time que perdia era todo sacrificado. Fazia parte do ritual. Há outras leituras ainda que dão conta de que estes jogos com bola teriam tido início em uma cruel tradição de chutar as cabeças dos inimigos vencidos em batalhas. A bola seria, mais adiante, uma representação dessas cabeças. Em outras leituras, a bola seria um elemento mágico, que representaria o poder do sol, tanto que em algumas práticas, a bola, antes do início do jogo é lançada para o ar, para ser irradiada pelo poder do deus sol. No Soule, jogo medieval da Europa na região onde é a França hoje, dois grupos se enfrentavam numa luta aberta onde um objeto específico (equivalente à nossa bola) deveria ser introduzido no templo da cidade adversária, como forma de dominação. Essas são apenas algumas das versões de práticas ritualísticas similares, na prática, ao nosso futebol moderno.

O que eu retiro deste estudo é a compreensão de que o futebol moderno transformou-se na representação simbólica de uma luta concreta. Então, se concordarmos que há no ser humano um impulso bélico do qual ele não consegue fugir, mas deve tentar controlar, talvez seja o futebol o espaço onde se possa viver a rivalidade entre homens, entre coletivos de diversas naturezas (times, seleções) através de uma guerra simbólica. E isso a gente vê no futebol, o vocabulário, as estratégias, estes elementos são muitas vezes herdados da tradição militar. Colocar a bola do jogo na rede do inimigo é conquistar seu espaço ritual, é vencê-lo. No entanto, hoje, quando nos envolvemos com o jogo, quer seja o torcedor ou o jogador, este envolvimento não tem mais a mesma proporção ritualística de outrora e isso é claro, pois estamos em outros tempos e o futebol, como toda atividade cultural dialoga com o seu tempo.

Para os autores citados, o esporte representa a industrialização do jogo, típica da industrialização do mundo que acontece a partir do Século XIX. Não é à toa que os esportes se organizam, em sua maioria, neste mesmo período. Outra característica que diferencia o jogo do esporte seria a dimensão coletiva e individual de um e de outro, respectivamente, outro traço típico da era moderna, quando a existência individual torna-se maior que a experiência coletiva.

As artes também vivem esta transformação, já a partir do Renascimento quando as obras deixam de ser para todos e passam a ser de propriedade privada. É a autonomia da tela em relação às pinturas nas paredes e tetos das igrejas, por exemplo. Mas, eu, particularmente, defendo que, mesmo tornando-se um esporte, o futebol mantém características do jogo enquanto rito. Defendo, assim, que o futebol é o rito contemporâneo e só o pode ser a partir dos elementos próprios da contemporaneidade.

Universidade do Futebol – No terceiro capítulo, a temática se centra nos aspectos artísticos e nos elementos cênicos da modalidade, propriamente. Por que você assinala que o futebol é esporte e não arte?

Adriana Silva Amorim – Na modernidade o mundo foi dividido em gavetinhas e tudo o que se faz deve estar numa gaveta com uma etiquetinha que o identifique. Eu tento problematizar o fato de o futebol estar na gavetinha dos esportes e não na gavetinha das artes e o subcapítulo a que você se refere é todo no sentido de perguntar por que esta atividade foi parar nesta gaveta e não na outra.

Claro que a imagem da gaveta também poderia ser dinamitada, e espero que seja um dia, e uma experiência possa ser compreendida de diversos pontos de vista. É neste momento que eu faço a comparação com o teatro.

O futebol tem suas origens em ritos sagrados, como o teatro. O futebol é feito num lugar específico para se ver, como o teatro. O futebol tem seus elementos próprios de constituição como o teatro. O futebol é efêmero e eterno ao mesmo tempo, enquanto cena, exatamente como o teatro. O futebol é uma representação da vida real, colocando em cena importantes elementos da experiência humana, como o teatro. O futebol requer uma apropriação do modo de fazer, sobretudo do ponto de vista corporal, como o teatro. Por que, então, o futebol não é arte?

Não quero dizer que o futebol é teatro. Eu sei que não é, não quer e nem precisa ser. Para mim o futebol é arte enquanto futebol mesmo. E eu nem estou falando de “futebol arte”, isso pra mim é outra coisa, estou falando do futebol em si. O levantamento dos elementos que eu faço é num sentido de aproximar estas duas experiências espetaculares, jamais de dizer que são a mesma coisa. A minha defesa é a de que o futebol é o grande espetáculo do povo brasileiro e esta tem sido a minha obsessão no doutorado.

Eu acho que há uma hierarquia e uma tirania em termos históricos quando definimos através de critérios muito suspeitos o que é arte e o que não é arte. Então, esta parte da pesquisa tenta de alguma forma questionar a forma, e sobretudo os autores destes limites.

Por que uma atividade popular, que leva milhões de pessoas a um espaço coletivo de representação subjetiva da vida, que transforma comportamentos, que envolve milhões de pessoas, não pode ser considerada uma atividade estética? Quem define o que é arte? Estudar o futebol não sendo uma pessoa do futebol, mas uma artista e pesquisadora da área de artes é uma prova de que me interessa mais no futebol essa subversão que ele provoca, colocando em xeque os modos com que temos operado quando falamos de cultura e arte.



 

Universidade do Futebol – Qual é a relação que você traça entre materialidade e imaterialidade dos elementos cênicos, bem como a relação de espaço e tempo, o figurino, a maquiagem e os adereços no futebol?

Adriana Silva Amorim – Neste capítulo eu falo de elementos do futebol que se assemelham a elementos do teatro. Assim, eu falo de elementos materiais (a roupa, o apito, as bandeiras dos torcedores, entre outros) e elementos imateriais (as representações, os sentidos dados aos signos concretos) do ponto de vista da construção da experiência cênica. No teatro estudamos o espaço e o tempo como elementos próprios desta arte. Um quadro existe concretamente, no espaço. A gente pode pegá-lo, tocá-lo, vê-lo. Ele existe concretamente, materialmente. A música, a dança, o teatro, existem na relação entre o tempo e o espaço. São artes que não se configuram fora deste eixo. Assim como o futebol. Tanto no teatro como no futebol existem o tempo e o espaço da vida concreta e os da vida subjetiva, o espaço e o tempo do jogo.

Tá ficando complicado, o leitor vai parar de ler a entrevista (risos). Mas, observe, na vida real o que temos é o campo, o gramado, as cadeiras da arquibancada. Responda-me torcedor: é só isso mesmo? Claro que não. Aquilo, do ponto de vista da subjetividade é um campo de guerra, aqueles jogadores são soldados, são heróis. Aqueles jogadores somos nós mesmos, lutando contra o inimigo. E o tempo? Alguém pode me convencer de que aqueles três minutos de acréscimo do último jogo do campeonato são apenas três minutos? Para quem está com a vantagem, parecem três horas, para quem corre atrás do resultado, parecem três segundos. Então, o futebol, como o teatro, insisto, tem um tempo e um espaço próprios que apesar de se estruturarem sobre um tempo e espaço reais, nos transporta para uma experiência de transcendência e eu tenho certeza que o torcedor sabe do que estou falando.

Sobre os demais elementos, figurinos, adereços, eles também têm uma função significante, como em toda experiência artística. Os figurinos (eu adoro a parte da dissertação onde eu falo das camisas dos times) são um elemento de encontro entre o time e a torcida. Só o torcedor sabe a importância da camisa de seu time. Com ela, mais do que se vestir, o torcedor diz ao mundo a que grupo ele pertence. Ele, como uma criança faz com seu super-herói favorito, se sente o próprio jogador em campo.

Os marmanjos escolhem o jogador com quem querem se identificar, escolhendo o número atrás da camisa. Eu acho isso uma libertação. E aí tem outras considerações que eu faço, como por exemplo o fato de que enquanto obra de arte, o futebol é feito não apenas pelos jogadores, mas também pelo torcedor, pois o futebol é arte não apenas dentro do campo, mas todo ele, envolvendo os torcedores em toda sua dimensão abstrata e concreta, do dia-a-dia. Da hora em que ele levanta e assiste ao jornal da manhã pra ver as notícias do esporte até a hora em que ele grita gol, dentro do estádio. A obra de arte do futebol é contínua, não se acaba.

Outro elemento importante e que eu particularmente quero estudar mais profundamente é a simbologia dos movimentos corporais do árbitro. O teatro japonês e o teatro indiano são construídos em cima de códigos corporais que o público tem que entender para poder ler a obra. Igual ao código dos árbitros. O braço pra cima, o braço pra frente, a bandeira que sobe, o tempo do apito, tudo isso tem um significado. O espectador tem que conhecê-lo para poder entendê-lo e o espectador especializado do futebol sabe isso tudo. Como insistir que isso não é uma criação artística?

E para concluir esta resposta, não posso de falar dela, o elemento material e imaterial soberano: a bola. Quando uma pessoa se pergunta por que vinte e dois homens ficam como bobos correndo atrás de uma bola, ela revela que não entende mesmo o significado daquilo ali. E além de não entender conscientemente, também nunca viveu essa experiência, porque talvez a maioria dos torcedores nunca tenha parado para pensar nisso racionalmente e nem precisa para poder viver na pele o que é brigar por essa bola. Quando insistem na pergunta e ensaiam uma reposta engraçadinha do tipo “por que não dão uma bola pra cada, não é mais simples?”, eu digo que a questão não é a bola material, mas a bola simbólica.

Não, não pode dar uma bola pra cada, porque a bola não é particular, ela é coletiva, é a bola de todos que está em jogo. A bola é a grande imagem, a grande metáfora de tudo o que está em jogo, no futebol e na vida. Eu tenho certeza que o torcedor me entende.

"O futebol, como o teatro, insisto, tem um tempo e um espaço próprios que apesar de se estruturarem sobre um tempo e espaço reais", sinaliza Adriana

Universidade do Futebol – Como último ponto de desenvolvimento do capítulo, você discorre sobre os “agentes criadores” do jogo: árbitros, equipe técnica e jornalistas. Quais as funções de cada um deles no processo de criação deste espetáculo?

Adriana Silva Amorim – A curiosidade do futebol enquanto obra de arte é sua múltipla autoria, como no teatro, no cinema e em muitas outras linguagens. Quem é o autor de uma peça de teatro? Em diferentes momentos diz-se que é um agente específico. Durante muito tempo se disse que a obra era do dramaturgo. Contemporaneamente dizemos que o autor é o diretor. Mas, independente de quem a assina, ela é feita a muitas mãos. O autor do texto, o diretor, o ator, o iluminador, entre outros agentes criadores e também, ouso dizer, o crítico que comenta, indica ou condena, o jornalista que divulga, também são criadores do que vai ser a história daquele espetáculo. O futebol é bem complexo nesse ponto.

Atualmente estou tratando disso no doutorado, na configuração do que é o futebol do ponto de vista artístico e trato de diferentes dimensões, como por exemplo a partida em si, as criações em torno da partida (programas, sites, revistas, bate papos de padaria) tudo o que se cria a partir disso que chamo na minha tese de espetáculo gerador. A toda reverberação que parte do espetáculo gerador chamo de entorno criativo e o futebol enquanto experiência total, unindo espetáculo gerador e entorno criativo, a isso eu chamo de Espetáculo Absoluto. Isso não estava na dissertação, está sendo trabalhado na tese. Nestas três dimensões criativas, há infinitos agentes criadores.

Sobre estes eu já trato na dissertação, como você pôde ver. Pense bem, não é só o jogador que faz o futebol. É o juiz, que ao mesmo tempo em que assiste ao jogo, interfere nele, ajudando a construí-lo. O torcedor que grita gol, que ajuda o time, que inferniza a vida do rival, também faz o jogo. O jornalista que comenta o jogo, o narrador, o radialista, o cinegrafista que transmite imagens do jogo para quem não está lá, todas essas figuras são criadoras. Por isso o futebol tem essas proporções colossais. Tudo nele é grandioso e por isso eu insisto que ele ainda é coletivo. Agora, o grande criador do futebol enquanto arte, para mim, é o torcedor. Por vários motivos e eu sei que não darei conta deles todos aqui (espero dar conta na tese).

Primeiro, eu imagino o que é para um jogador entrar em campo e ver a torcida montada nas arquibancadas. É uma festa sem par. Camisas, bandeiras, fogos de artifício, faixas, instrumentos musicais, hinos, gritos de guerra. Toda essa parte do show é criada pelo torcedor. Do ponto de vista da dramaturgia, da história vivida em cena, o torcedor é o grande protagonista. É ele quem enlouquece, chora, vibra, enfarta, abraça estranhos, xinga o juiz, bate no torcedor adversário. Tudo em diálogo com o que seu parceiro de cena, o jogador, faz durante o jogo. É um lindo espetáculo. Eu me arrepio só de falar.

Para a dramaturga, do ponto de vista da sua área de atuação e da história vivida em cena, o torcedor é o grande protagonista

Universidade do Futebol – No quarto capítulo, são elencados os elementos dramatúrgicos das partidas de futebol. O que você poderia destacar?

Adriana Silva Amorim – Alguns conceitos deste capítulo estão sendo retrabalhados na tese. Como eu falei há pouco, os elementos dramatúrgicos estão ligados a um sentido que se pode extrair daquela experiência. O termo drama vem do grego drontas que quer dizer ação, por isso o teatro é sempre ação, não é uma história contada, como no épico, nem uma reflexão poética como na lírica. O drama é uma experiência vivida através da ação. A dramaturgia é como essa experiência se organiza, o que se vive nessa ação. Aí na tese eu defendo um conceito que chamo de dramaturgia da leitura.

Porque no teatro a dramaturgia ela é feita pelos criadores que propõem a obra, ela vem antes do espectador ver a obra. Ela acontece ali na frente dele, através do espetáculo, mas ela já está definida antes de se apresentar. Já no futebol acontece o contrário. O que se vai configurar como experiência ali está intimamente e cronologicamente ligado à partida em si e será definida pelo torcedor (a quem eu chamo aqui de leitor).

Para entender melhor: no último jogo da Copa de 1950, Brasil e Uruguai. Para o torcedor brasileiro aquilo foi uma tragédia. Então, o torcedor vai narrar (e viver) aquela cena como uma tragédia. O mesmo jogo, porém, pelos uruguaios será eternamente lembrado, narrado e vivido como uma grande vitória, como uma grande alegria. Assim, eu defendo que a dramaturgia do futebol não está apenas no jogo, mas está soberanamente no torcedor. É uma coisa meio Marcel Duchamp ao colocar um urinol (A fonte, 1917) no museu e insistir que a arte não está no objeto em si, mas na forma como nos relacionamos com ele. Então esse é o grande núcleo da ideia, mas eu falo também de outros elementos que são próprios da dramaturgia mas que nós vemos no futebol, como a peripécia que é quando uma coisa acontece e que não estávamos esperando, ou o anti-climax, que é um gol perdido, ou o clímax que é o gol em si. Podemos falar também da curva dramática, que é quando o conflito está se resolvendo e as coisas passam por uma grande mudança.

No clássico BA-VI do Campeonato Estadual deste ano, por exemplo, tivemos várias curvas dramáticas, pois o Bahia precisava do empate, estava ganhando, o Vitória virou, o Bahia empatou de novo, o Vitória ficou na frente de novo, o Bahia empatou de novo, um vira-vira que deixou a nação tricolor (eu, inclusive) tonta de tanta curva dramática. Eu estava acompanhando por SMS de um amigo, porque eu não tinha condições emocionais de ver a partida. Enfim, são elementos do universo da dramaturgia que estão visivelmente presentes no futebol.
 


 

Universidade do Futebol – Além disso, quais seriam os processos de identificação da catarse no futebol e de que maneira se integram as performances criadoras de jogador e torcedor dentro deste ambiente?

Adriana Silva Amorim – Eu comecei a falar de identificação e catarse no mestrado, mas estou me aprofundando mesmo é agora no doutorado. Para Aristóteles (agora o leitor abandona de vez a entrevista!), os grandes poemas dramáticos, as tragédias, tocavam o espectador através de dois processos principais que resumem a construção da figura do herói trágico: o processo de idealização e identificação. Assim, este herói deve ser maior do que eu, deve viver experiências mais profundas e radicais do que eu, porque senão sua vida não me interessa, posto que eu já tenho a minha. Este é o processo de idealização.

Mas, para que este herói não se afaste muito de mim, da minha compreensão de mundo, ele precisa ter traços que se assemelham aos meus. Para eu me simpatizar com ele, torcer, sofrer com ele, eu preciso encontrar nele características minhas. Aqui é o processo de identificação.

Mais uma vez, apesar de parecer muito erudito tudo isso, com direito a Aristóteles e tudo mais, eu tenho certeza que o torcedor me entende. Ele sabe por que é vidrado em Pelé, Ronaldo, ou Neymar. Porque esses heróis representam um ‘eu’ melhorado. Eles são como eu, mas vivem experiências mais radicais e profundas que as minhas. Eu vivo com eles essas experiências, mas, simbolicamente, porque não estou na pele deles, não me machuco, não sou cobrada pelos jornalistas, e também não recebo os salários deles (risos) entre outras coisas. Eles se constituem heróis porque eu não sinto inveja deles, eu me sinto eles próprios. Isso não é lindo? E olha que estamos falando de homens, adultos, barbados. Identificar isso em mulheres que choram com a mocinha da novela é fácil, mas identificar isso em homens que se relacionam assim com jogadores de futebol é bem subversivo, não acha?

Sobre catarse, este conceito amplo e polêmico, posso dizer que seria a forma pela qual, mais uma vez segundo os estudiosos de Aristóteles (pois é difícil dizer o que o filósofo grego disse de fato, dadas a imperfeição dos documentos históricos e a qualidade duvidosa das traduções), então, a catarse seria a forma pela qual o espectador purgaria alguns sentimentos da vida real através da experiência da representação. Aqui mais uma polêmica. Quando as pessoas dizem que o futebol é o ópio do povo, elas sugerem que a energia que o torcedor gasta no estádio poderia ser utilizada em prol de uma mudança social radical. E alguns críticos de Aristóteles dizem isso da própria tragédia grega, que de alguma forma ela educava o povo para tornar-se passivo e entender seu lugar na sociedade. Mas, volto a repetir, minha pegada é estética e catarse aqui diz respeito, para mim, ao processo de transformação pessoal pelo qual o torcedor passa através de uma partida de futebol. É um transe.

Um gol é um processo de transformação do ‘eu’ particular no ‘eu’ coletivo e pra mim isso é muito político, mas, enfim eu jurei que não ia entrar nessa polêmica. As manifestações físicas e comportamentais do torcedor numa partida decisiva representam um momento de fronteira entre a vida real e cotidiana e a existência subjetiva (mas nem por isso menos real). Em tempos de tão poucas experiências ritualísticas, em tempos de racionalização profunda, eu acredito que o futebol se configure como importante manifestação simbólica do homem contemporâneo, porque através dele, como nos ritos religiosos antigos, o homem sai de si e experimenta outra existência que é fundamental porque ainda é coletiva e nós somos, eu não tenho dúvida, seres coletivos, apesar de vivermos e conduzirmos a sociedade e as relações de forma tão individualizada.

"Para eu me simpatizar com ele, torcer, sofrer com ele, eu preciso encontrar nele características minhas. Aqui é o processo de identificação", entende Adriana

 

Universidade do Futebol – O que você extrai de informação quando um técnico de futebol é chamado de “professor” por atletas ou imprensa, de forma geral?

Adriana Silva Amorim – Agora você tocou num assunto bem polêmico, porque eu, particularmente, como professora tenho sérias e contundentes críticas ao sistema de ensino formal. Então, vamos às minhas ‘pedradas’. Eu adoro ver os jogadores chamarem o técnico de professor. Acho lindo. Porque acho que tem uma relação ali que de fato se assemelha à relação que eu compreendo como uma experiência de ensino e aprendizagem. Eu particularmente sei muito pouco dessa relação na prática. Nunca assisti a um treinamento, nem a uma preleção, então não posso dizer com experiência como é essa relação. O que sei é a partir do que vejo na imprensa – e esse, meu amigo, não é o meio mais confiável de se obter informações precisas e verídicas. Mas, vamos lá.

Eu gosto de ver que o técnico de futebol, diferente do professor formal na sala de aula, conduz seu processo bem de perto, junto com os jogadores e com a equipe técnica. Essa coisa da equipe técnica, por exemplo, é o que nós sonhamos nas salas de aula e que chamamos de interdisciplinaridade. Pense bem, você tem em campo, ou no centro de treinamento, o técnico, o auxiliar, o preparador físico, o médico, enfim, uma equipe onde cada um domina um aspecto do desempenho do jogador e todos trabalhando em prol de um objetivo comum: o gol, que quer dizer justamente isso, objetivo, que é goal em inglês.

Outra coisa que eu gostaria de salientar em relação à questão entre futebol e educação é que eu acho muito arrogante e cafona criticar meninos pobres e favelados que deixam de estudar e vão se dedicar à sua carreira. Em primeiro lugar, eu acho que fizemos uma coisa horrível com a educação que foi restringi-la a um modelo único, oferecido por uma única instituição que é a escola. Todos nós, independente de onde a gente mora, do que a gente faz, todos nós temos que aprender a mesma coisa na infância, na juventude e só na vida adulta a gente pode escolher uma profissão, mas ainda assim ela deve ser aprendida na faculdade. Eu tenho verdadeira aversão pela hegemonia da escola. Acredito em outras formas de educação e acho que as pessoas precisam aprender coisas diferentes, porque vivem vidas diferentes.

É claro que o conhecimento acumulado pela humanidade deve estar à disposição de todos, mas ser a única e mais importante forma de aprendizagem. Eu acho um erro e acho que futuramente pagaremos o preço dessa escolha fatídica e equivocada, a meu ver. Então, se um menino vai ser jogador de futebol, ele deixa a escola formal, porque provavelmente é uma escola ruim com muitos problemas, onde ele não aprende muita coisa e vai se dedicar a um aprendizado que é específico de sua prática. Quando dizem que jogador de futebol não estuda, eu pergunto: e como eles conseguem fazer isso tudo? Você consegue correr conduzindo uma bola, dar um passe para o colega estando ambos em movimento, acertar o lugar do pé com que tem que tocar na bola, acertar a força que deve imprimir no chute, acertar o ângulo para fugir do goleiro? Você consegue fazer isso sem estudar?

Claro que o jogador de futebol não estuda isso na teoria, isso é para os físicos. Eles – e somente eles – estudam isso na prática. O “baba” que o moleque joga no campinho do seu bairro é sua escola, é sua aula. E isso é incrível. Eu não estou defendendo que os jogadores não devam estudar, que devam ser analfabetos, não é isso. Só estou tentando mostrar que há diferentes formas de conhecimento e não vamos avançar enquanto julgarmos que esta forma a que estamos escravizados hoje seja a única ou a melhor de todas.

Acho que é possível um jogador de futebol se alfabetizar em todos os sentidos, lingüístico, político, estético, e também poder dedicar-se ao aprendizado de sua profissão e ter essa educação reconhecida como relevante. Então, voltando ao técnico professor, vejo que é uma forma de educação que dá certo, que funciona, que se estrutura na avaliação constante do aprendizado e dos resultados práticos dessa aprendizagem, nas relações afetivas que o grupo estabelece e, sobretudo porque é uma educação que se realiza no corpo. O jogador de futebol sabe o seu ofício na concretude do seu corpo. Ronaldo, quando se aposentou, falou uma coisa linda, apesar de cruel. Ele disse que sua cabeça sabia a jogada certa, mas o corpo não respondia. Ronaldo pra mim é o símbolo contemporâneo de inteligência, porque foi um grande jogador e é uma grande figura pública, como Pelé é até hoje. E ambos dedicaram-se a aprender sobre seu ofício. É nessa educação que eu acredito, uma educação que faça sentido e que transforme o dia-a-dia a pessoa envolvida.


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Universidade do Futebol – No blog “Futebol de Artista”, de sua autoria, você revela um encantamento com a coreografia não pensada pelo cérebro, mas sim idealizada, concebida, conduzida e performatizada pelo corpo dos jogadores de futebol. Quais são as especificidades de movimento de cada posição? O goleiro é diferente do zagueiro, que é diferente do atacante, por exemplo?

Adriana Silva Amorim – Esse é um estudo que estou devendo a mim mesma. Até comprei um livro para poder ler sob essa perspectiva. O livro se chama O Corpo Poético de Jacques Lecoq, mas confesso que ainda não tive tempo de entrar neste assunto. No blog eu falo que vou fazer este estudo, mas não cumpri a promessa. Chama muito a minha atenção e a de muitos outros estudiosos, o balé que se constrói dentro de um campo de futebol e um balé que é fruto da experiência imediata, o jogador não pensa no movimento que ele vai fazer, ele faz de acordo com a necessidade da jogada.

Para o corpo responder de forma correta, o jogador treina incansavelmente durante toda a semana. Tem um diretor de teatro polonês, Jerzy Grotowski (1933 – 1999) que trabalhava com um processo que ele mesmo chamava de exaustão. Dois elementos básicos do seu processo devem ser citados aqui. Ele realizava um treinamento físico intenso até o ator ficar exausto, porque só a partir da exaustão é que o ator se livrava da racionalidade da criação e passava a criar a partir da experiência corporal, que é riquíssima. Ele tentava tirar o cérebro não da jogada, mas do comando. Outra característica do seu método era fazer tantas vezes um movimento de uma determinada cena de modo que quando estive no palco, o ator não precisasse nem pensar em fazer aquilo, o corpo faria aquilo porque conhece aquela cena e não porque a cabeça está mandando fazer.

Diga pra mim, honestamente, se não é um pouco disso que acontece com o jogador numa partida? Ele pensa no que vai fazer, apenas racionalmente? Não, ele pensa e faz ao mesmo tempo, porque seu corpo também pensa com ele, não existe (não dá tempo existir) uma hegemonia do cérebro sobre o corpo. Seu corpo é criador. Seu corpo é, portanto, poético.

Eu posso citar aqui dois projetos que também levam essa questão do corpo no futebol em consideração, mas não vou saber dar os créditos direito porque ainda não pesquisei. Eu vi uma vez e não vou lembrar mesmo o nome, um vídeo onde havia cenas de futebol editadas e na edição o editor tirou a bola e colocou uma música. É lindo, porque a gente vê os jogadores naquela coreografia e lê as imagens com outro sentido. Outra experiência desta natureza é um projeto, não sei bem, foi uma amiga que me falou, que fala do futebol e que se chama Futebol: O Balé da classe Operária. Não tive ainda acesso a esse projeto, mas achei o título interessantíssimo. Então, mais uma vez, eu acho que esteticamente o futebol nos oferece uma infinidade de experiências, que o torcedor vive, mas que a gente que estuda cultura e arte está deixando de perceber.

A gente fica cobrando do povo brasileiro coisas que talvez não façam sentido nenhum pra nossa cultura e deixa de registrar o que estamos fazendo de fato, as coisas que nos representam, que nos traduzem, nos constituem como indivíduos e como sociedade. Mas, vamos voltar ao corpo dos jogadores.

O goleiro apresenta uma coreografia que eu diria que trabalha em cima de linhas mestras, na diagonal, horizontal e às vezes na vertical, mas quase sempre numa mesma dimensão, que seria, grosso modo, a frente do gol. Lembra, mais ou menos o desenho de Leonardo Da Vinci, o Homem Vitruviano (1490), só pra gente ter uma imagem.

Tem um grande mestre da dança, Rudolf Laban (1879 – 1958) que estuda esse tipo de movimento na criação cênica. Eu vejo que o meio de campo tem um movimento de arranque, sempre pra frente (onde quer que seja a frente, o campo de defesa ou o de ataque). O movimento do atacante estaria mais relacionado ao tiro do chute, à força e à estratégia deste chute. E todos os jogadores sempre poderão fazer as maravilhas coreográficas associadas ao drible.

O drible é a mais bela coreografia do futebol e Garrincha nossa maior estrela, sem dúvida. Agora, claro que isso tudo é especulação de uma pesquisadora de artes cênicas, nada mais do que isso. Então, perdoem se eu estiver viajando demais...

Futebol de Artista: o corpo coreográfico nas partidas de futebol

 

Universidade do Futebol – Em seu doutorado, você comentou que está aprofundando os estudos sobre a tese de que o futebol é para nossa civilização, o que a tragédia era para o povo ateniense. O que já poderia ser antecipado sobre esta reflexão?

Adriana Silva Amorim – Esse é o maior desafio da minha tese. Apesar de parecer uma tarefa árida e tortuosa, o doutorado pode ser menos penoso, se a gente se abrir para ele em outros campos da nossa vida. E assim tem sido pra mim. Estou o tempo todo atenta às coisas que me acontecem no dia-a-dia e que podem ter a ver com a pesquisa. Então aconteceu de eu passar no concurso público de uma universidade e pegar justamente a cadeira de Dramaturgia e Teatro Grego. Assim, além do que eu já havia estudado na graduação, mestrado e doutorado e também na minha vida profissional, eu dediquei-me mais intensamente a estes assuntos. E qual não foi a minha surpresa ao ler coisas sobre a tragédia grega que eram muito similares ao nosso futebol. Já me explico.

A tragédia era para o povo grego um evento colossal. Todo mundo já deve ter visto que os estádios de futebol são completamente construídos com base no modelo dos teatros gregos. Aí já temos uma semelhança. Eu sei que vocês devem imaginar a tragédia grega como aqueles textos intermináveis, com diálogos impossíveis de serem compreendidos, em rima, com aquelas mulheres gritando “ai, ai, ai de mim!”. Mas isso é o que ficou de registro literário das tragédias, ou seja, é apenas uma parte da história.

A tragédia se constituiu muito mais em cena do que no texto. Hoje temos acesso aos textos porque a cena teatral é efêmera, não deixa muitos rastros. Fotos e imagens daquela época, nem pensar. Apenas escritos, escritos e mais escritos e ainda assim com muitas perdas ao longo da história. Quando estudamos a tragédia grega mais aprofundadamente, vamos descobrindo que ela começa, olha que curioso, de uma grande festa. Dá pra acreditar? O próprio termo vem do grego tragoedia (O canto do bode), pois nas grandes dionisíacas, que eram festas em homenagem ao deus vinho Dioniso (ou Baco na tradição romana) eram entoados cantos festivos. O porquê de ser um bode tem uma história muito longa que eu não vou entrar aqui, mas o fato é que o termo vem desse canto. Aí, mais uma semelhança com o futebol: a tragédia nasce de um rito sagrado, coletivo, em celebração a um deus, como alguns jogos com bola que eu já citei aqui. E a tragédia representa para o povo grego a personificação dos mitos e, sobretudo dos deuses e heróis daquela mitologia.

Então, quando um espectador via os personagens da tragédia em cena, para eles aqueles personagens estavam de fato diante deles e se a gente fizer um esforço imaginativo, estavam mesmo, pois quando um ator representa um personagem, ele não o imita, mas ele o evoca. Assim, personagens de grandes tradições mitológicas, que fazem parte da história real daquele povo, mas de quem eles nunca tinham visto a cara, se fazem presentes para eles. Prometeu, Édipo, Medéia são alguns exemplos. Estes personagens sempre existiram para o povo grego. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes apenas colocaram no palco essas histórias milenares.

E o que isso tem a ver com o futebol? Ter que assistir a essas peças era uma verdadeira apoteose. A plateia ia à loucura com o decurso da peça. Eu li registros que ‘grávidas abortavam’ (nunca esqueci essa expressão) na platéia, que as pessoas vomitavam, enfim, que se envolviam catarticamente com aquelas histórias e, sobretudo, com a cena que acontecia à sua frente. E, outro ponto importante, é que muitos estudiosos, os quais eu tenho seguido, defendem que o pensamento trágico foi o responsável pela constituição do povo grego. Aquele evento estético era parte tão fundamental daquele povo, que não se sabe dizer se o povo grego criou a tragédia ou se a tragédia criou o povo grego.

E aqui, já nos quarenta e cinco do segundo tempo, eu faço uma ponte com uma das suas primeiras perguntas que é sobre a constituição do futebol e do povo brasileiro e lá eu respondo algo bem parecido, que já não sabemos onde o povo criou o futebol brasileiro e onde o futebol nos criou. Essas são as linhas mestras do meu pensamento.

Há muito mais ideias a serem debatidas e o debate é parte fundamental da pesquisa porque eu não tenho respostas definidas, tenho algumas desconfianças e assistir ao futebol, vivê-lo e, sobretudo poder debater essas questões com pessoas do povo é a melhor parte dos meus estudos.

Sendo assim gostaria de convidar a todos para baterem um papo comigo lá no blog e levantar questões que talvez eu tenha deixado passar. Eu jamais darei conta de tudo o que o futebol oferece em termos gerais e mesmo em termos de experiência estética, mas acho que começar a pensar nisso e divulgar este pensamento pode ser uma ação importante pra gente refletir e estudar sobre o futebol de forma tão intensa (ou pelo menos quase) e tão criativa quanto a forma que gente o vive.

Eu amo o futebol e tenho muita alegria e orgulho em fazer dele meu objeto de pesquisa. Acho que estou dando uma grande contribuição para o meu país e para os estudos sobre teatro de uma forma geral.


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Benê Lima