Zé Maria é igual a muitos outros jogadores que atuaram profissionalmente no futebol brasileiro e que optaram por se tornar técnicos após a aposentadoria dos gramados.
Porém, o ex-lateral de clubes como Inter de Milão, Parma, Portuguesa e até da seleção brasileira, se diferencia da grande maioria dos seus colegas de profissão ao ser hoje, ao lado de Leonardo, atual dirigente do PSG, o único brasileiro a ter a carteirinha da Federazione Italiana Giuoco Calcio, a escola que forma treinadores na Itália.
A credencial, adquirida depois de estudar três níveis do programa oferecido pela entidade europeia, dá o direito de comandar qualquer time de 53 países da Europa e até assumir seleções nacionais.
"Para ser treinador, eu não poderia simplesmente parar de jogar bola e bater na porta de um clube. Seria até uma falta de respeito com os jogadores. Forçar uma barra com um dirigente ou com um presidente de um clube que você acha que só porque foi ídolo lá, eles terão que te dar uma oportunidade. Para ser treinador, eu tenho de saber como organizar um vestiário, como funciona um clube, tenho de ser mais um administrador do que qualquer coisa. E, lá na Itália, você tem a oportunidade de ter essa ruptura no modo de pensar como jogador para a maneira de ver o futebol como um técnico", aponta o ex-camisa 2, em entrevista exclusiva à Universidade do Futebol.
Após estudar disciplinas como psicologia esportiva, comunicação, medicina, metodologias, gestos técnicos, preparação física, gestão esportiva e até primeiros socorros, Zé Maria fez estágio na Inter de Milão, com José Mourinho, em 2010, e no Chelsea, com Carlo Ancelotti, no ano seguinte.
E, apesar de também citar Roberto Mancini, atualmente no Manchester City, como uma de suas referências na área do treinamento, o novato técnico admite ter ficado impressionado com a liderança do comandante do Real Madrid.
"Mourinho é um líder nato por onde passa. O que ele fez na Inter de Milão ninguém mais vai fazer. Atletas como o atacante Samuel Eto’o ou o meia Sneijder, jogadores de renome, abdicaram de jogar em suas posições preferidas para atuar conforme Mourinho queria. Isso me marcou muito. Na própria despedida dele, todos os jogadores da Inter choraram, como se tivessem perdido um parente querido. Então, no meu modo de ver, Mourinho é um grande gestor de grupo", analisa.
Antes de retornar ao Brasil com uma bagagem maior de conhecimento, o também ex-jogador do Peruggia atuou como técnico em duas equipes italianas, no Cittá Di Castello, da Série D, e no Catanzaro, da Série C na época.
E, apesar de ter como melhor resultado uma eliminação nos playoffs com a primeira equipe após uma terceira colocação na fase de classificação, Zé Maria pensa alto em relação aos objetivos na nova carreira.
"Da mesma maneira que pensava em sempre querer ser o melhor lateral direito do mundo, penso em ser o principal técnico do futebol mundial. Eu não me coloco limites", completa.
Nesta entrevista, ele ainda falou sobre liderança, Dunga, e como sua experiência como ex-atleta da modalidade pode contribuir para sua função de treinador. Confira:
Universidade do Futebol – Como se deu a sua transição de jogador para a área do treinamento? Quando percebeu que não atuaria mais em campo e estava pronto para fazer os cursos específicos na Itália e efetuar a "ruptura", como você mesmo citou certa vez em uma entrevista?
Zé Maria – O jogador de futebol tem de saber quando parar de jogar, acho que isso é o mais difícil. A gente vê até atletas que jogaram uma Copa do Mundo ou pela seleção brasileira que têm esse problema. Não sabem quando tem de parar. Isso é ruim. Você vê profissionais que tiveram um passado fantástico como jogador e, literalmente, passando vergonha por querer continuar atuando.
Quando eu comecei jogando, com 17 anos, eu vi de perto exemplos como o Cristovão Borges, que foi recentemente treinador do Vasco e parou com 34 ou 35 anos. Eu começando, logo pensei: 'se eu tiver bem como ele com esta idade eu também vou parar'. E eu parei exatamente com 35 anos. Não foi uma coisa programada publicamente, mas dentro de mim eu já estava decidido.
A carreira de jogador é muito puxada, as pessoas acham que é só treinar e jogar. O preço é muito alto, você deixa partes do seu corpo para trás. E eu não queria chegar aos 37 ou 38 anos com o ponta esquerdo me driblando com toda a facilidade do mundo. Isso para mim seria humilhante. Então, resolvi parar antes. Quando retornei à Portuguesa, eu senti isso.
Zé Maria foi lateral direito de clubes como Inter de Milão, Parma, Peruggia (foto), Portuguesa, entre outros, e até da seleção brasileira
Universidade do Futebol – E por que escolheu a área do treinamento para se especializar após a aposentadoria dos gramados? Por que não optou por ser um gestor esportivo, por exemplo, ou atuar até mesmo fora do futebol?
Zé Maria – Eu joguei como profissional durante 17 anos. No total da minha carreira, se incluir a fase no infantil, foram 25 anos. É muito tempo para você jogar isso para o alto e dizer que vai ser um procurador ou um diretor.
A adrenalina quando uma pessoa para de jogar continua; ela quer continuar dentro de campo, vendo treinamentos ou dando um chutinho de vez em quando. Não me vejo de terno e gravata na tribuna, vendo o jogo de longe.
Eu vou procurar transmitir e dividir aquilo que eu aprendi dentro de campo com essa molecada mais nova do que eu. Como atleta, alcancei todos os meus objetivos e quero mostrar que, seguindo uma linha, qualquer um pode chegar aonde eu cheguei.
Ex-jogador aponta Carlo Ancelotti (em cima) e José Mourinho (abaixo) como duas das suas principais referências na área do treinamento. Ele fez estágios com estes profissionais nas passagens por Chelsea e Inter de Milão, respectivamente
Universidade do Futebol – Agora, Zé Maria, como foi que surgiu essa sua necessidade de buscar um curso de especialização para atuar como treinador? No Brasil, por exemplo, ainda há uma cultura muito grande de o atleta recém-aposentado bater na porta de um clube no qual foi ídolo e iniciar este processo de transição de carreira sem passar por esta experiência...
Zé Maria – Então, se fosse assim, eu ia bater em muita porta, neh?!? Pois, joguei na Ponte Preta, Palmeiras, Flamengo, Vasco, Cruzeiro, Portuguesa, Sergipe, enfim, eu ia cansar de bater na porta. O que aconteceu foi o seguinte: eu sempre quis ser o melhor lateral do Brasil, ser o maior do mundo, batalhei muito e tive até uma rivalidade muito legal com o Cafu para chegar aos meus objetivos.
Para ser treinador, eu não poderia simplesmente parar de jogar bola e bater na porta de um clube. Seria até uma falta de respeito com os jogadores. Forçar uma barra com um dirigente ou com um presidente de um clube que você acha que só porque foi ídolo lá, eles terão que te dar uma oportunidade. Para ser treinador, eu tenho de saber como organizar um vestiário, como funciona um clube, tenho de ser mais um administrador do que qualquer coisa.
E, lá na Itália, eles oferecem esta possibilidade de cursos para jogadores que querem se tornar treinadores. Lá, você tem essa ruptura no modo de pensar como jogador para a maneira de ver o futebol como um técnico. Você estuda psicologia esportiva, comunicação, medicina, metodologias para você saber conversar com um preparador físico, pois você não precisa ser um especialista na preparação física, mas tem de saber o que ele está fazendo e qual o objetivo daquilo. No final, a responsabilidade é sempre do treinador.
Então, eu simplesmente parar de jogar e ir comandar um time apenas com a minha experiência de jogador não basta. Acho que o Brasil precisa evoluir nisso para poder competir de igual para igual na parte tática e, assim, se sobressair na parte técnica. Nós brasileiros ficamos devendo muito no aspecto tático.
Hoje, eu vejo a dificuldade que tem o jogador do Brasil quando vai jogar na Europa. Eu, como treinador, não posso saber tanto quanto o atleta, eu tenho de saber mais do que o jogador. Dar um treino que ele nunca viu na vida dele, por exemplo. O futebol atual é um jogo de xadrez, no qual você tem de saber onde colocar as suas peças para não sofrer com os adversários.
Na Itália, foca-se muito nisso. Os treinadores italianos estão fazendo colônias em vários países por causa desse enfoque tão grande na questão tática de uma partida.
"Lá [na Itália], você tem essa ruptura no modo de pensar como jogador para a maneira de ver o futebol como um técnico", sinaliza Zé Maria
Universidade do Futebol – O fato de haver na Europa, de uma forma geral, maior preocupação com a qualidade da formação dos treinadores – seja categoria de base ou profissional –, uma proximidade entre as os campos da Ciência e a prática em alguns centros, e o grande número de eventos que promovem discussão entre profissionais em diversos países do continente, o motivou a estudar na Itália e não no Brasil?
Zé Maria – O que me motivou realmente a estudar na Itália foi o fato de não encontrar nada parecido aqui no Brasil. O curso de treinador aqui no país, quando eu me formei, durava dois finais de semana; no sábado, era o dia inteiro, enquanto no domingo as aulas eram pela manhã. Acredito que, desta maneira, você não aprende nada.
Lá na Itália, temos três anos para aprender. Nós temos aulas de primeiros socorros, pois em alguns clubes pequenos, é o treinador a primeira pessoa a socorrer um menino que se sente mal.
Além disso, tenho de saber me comunicar com meu jogador, meu diretor, meu torcedor, minha imprensa, enfim, são vários aspectos. Preciso também saber de psicologia, pois tenho que entrar na cabeça de 25 jogadores de um elenco, por exemplo. São 25 empresas, pois cada um pensa diferente e eu preciso administrar todos eles. Mas, as pessoas não entendem isso. Por isso, você precisa ter uma especialização.
Ex-jogador revela que procurou o curso de treinador na Itália porque a plataforma de ensino do país durava apenas dois finais de semana: "desta maneira, você não aprende nada"
Universidade do Futebol – Explique um pouco mais detalhadamente, por favor, os módulos ministrados pela Federazione Italiana Giuoco Calcio.
Zé Maria – Nem todo mundo pode fazer todos os níveis da escola. Então, quanto mais diplomas o profissional tiver, melhor é. Porque o ingresso na Giuoco Calcio funciona por meio de uma pontuação. Esses pontos são por você ter jogado futebol, ou ter feito estágios de treinador ou ter algum diploma.
Quando você entra com o pedido de inscrição, há também um teste técnico, que exige o aluno saber passar e controlar a bola, fazer embaixadinha, enfim. Tudo isso para entrar no nível básico, que dura três meses, com aulas diariamente, e te permite treinar até equipes juniores.
Já na etapa intermediária, que também tem duração de 90 dias, aumenta a dificuldade de entrar na escola, porque você concorre com treinadores da Série D, ex-atletas, que têm preferência neste processo seletivo. Ao concluir este estágio, o profissional pode atuar em clubes da Série C e ser auxiliar das divisões A e B.
E a pontuação final deste segundo nível, como se fossem as suas notas em um boletim, é que credencia o aluno a ingressar no curso máster, que dá o direito de treinar qualquer time de 53 países da Europa e até seleções. Hoje, eu posso ser treinador de qualquer seleção do mundo com esta certificação.
Para este último nível, no entanto, é preciso estudar um ano. E as matérias são similares em todas as etapas. Então, você acaba vendo psicologia esportiva, comunicação, medicina, metodologias, gestos técnicos, preparação física, gestão esportiva, em todos os programas.
A diferença, pelo o que eu me lembre, são somente as disciplinas de Idiomas e Informática, que são oferecidos apenas para as fases finais do curso.
Gestor de campo brasileiro explica que nem todo mundo pode fazer todos os níveis da escola. O ingresso na Giuoco Calcio, por exemplo, funciona por meio de uma pontuação
Universidade do Futebol – Em que aspectos a experiência como jogador contribuiu para seu pontapé inicial na função de treinador?
Zé Maria – Acredito que o fato de ter sido um atleta da modalidade me dá um feeling melhor sobre o clima do vestiário, notar quando algum atleta ou parte do elenco está insatisfeito com alguma situação.
Às vezes, tem jogador que não fala, mas demonstra que alguma coisa está errada. E, pelo fato de ter jogado, talvez tenha uma percepção melhor para isso. A gente acaba tendo uma ideia do que o jogador gosta ou não. Mas, isso é muito sensível, vai de cada um. Não é uma coisa que você nota com tamanha facilidade.
Além disso, tem a questão de o treinador ser um exemplo para os seus comandados. Procuro mostrar que alcancei todos os meus objetivos porque sou assim e apontar o melhor caminho para cada um deles.
"Procuro mostrar que alcancei todos os meus objetivos porque sou assim e apontar o melhor caminho para cada um deles", resume Zé Maria
Universidade do Futebol – O Dunga, que atuou como jogador durante seis anos na Itália, assumiu a seleção brasileira após a Copa do Mundo de 2006 e coletou números expressivos logo em sua primeira experiência como treinador. Você acredita que o fato de ele não ter dado os primeiros passos como treinador em um clube brasileiro, cuja estrutura e "vícios" são conhecidos, possa ter conferido benefícios na compreensão dessa nova função?
Zé Maria – O Dunga é um grande parceiro meu e tem mostrado sua competência também como treinador. Acabou de vencer o primeiro turno do Campeonato Gaúcho.
Mas, treinar clube é totalmente diferente de treinar seleção. No clube, você conhece o jogador totalmente. Sabe até que dia ele brigou com a namorada, com a esposa, está brigado com algum parente, enfim, a ligação entre comandante e comandado é muito maior. Já na seleção, a apresentação do elenco é em um dia e se joga no outro. Então, esse elo demora mais para se formar.
Acredito que o Dunga, na seleção, se impôs pelo seu forte caráter e conseguiu ter o grupo na mão. Chegou às quartas de final de uma Copa do Mundo mesmo sem ter dirigido um clube. Há diversos exemplos de treinadores que já tinham uma experiência anterior com clubes e que, no Mundial, não passaram da primeira fase.
É difícil falar se ele se beneficiou na função por não ter dado os primeiros passos em um clube brasileiro. Comandar uma equipe nacional é bem mais complexo.
Zé Maria defende o compatriota Dunga e explicita as peculiaridades de se dirigir um clube em paralelo com uma seleção
Universidade do Futebol – Ao longo de sua trajetória como jogador você não se notabilizou, pelo menos publicamente, pelo perfil de liderança. Na sua avaliação, esse quesito é relevante para integrar uma comissão técnica de futebol? Como trabalhá-lo e desenvolvê-lo?
Zé Maria – Sim, é muito importante para um treinador. Mas, tem uma coisa: o líder não é aquele que grita mais ou fala mais alto. Já atuei em elencos que o atleta não falava nada em campo, mas, quando chegava ao vestiário, ele falava e todo mundo ouvia. Não falava nem muito nem pouco, mas o suficiente para ser um líder na equipe.
Então, independentemente da forma que ela se apresenta, a liderança é importante dentro do futebol, dentro de um time. Eu, talvez, não falava tanto publicamente. Porém, nos vestiários dos times que joguei eu também me impunha, também falava o que achava de errado, etc. E quando você se torna treinador, esse fator ganha ainda mais importância. Você precisa saber ser líder com seu time, com sua comissão técnica, com seus diretores, com a imprensa, enfim, saber se comunicar com todos esses públicos diferentes.
No curso lá na Itália, pude ver como isso é importante. Quando você é treinador, você fala com pessoas importantes, com presidentes de clubes, como o Massimo Moratti, da Inter de Milão, ou Andrea Agnelli, da Juventus, e você precisa saber se comunicar com convicção. E tentar conquistar todas essas pessoas, principalmente os atletas, por meio de exemplos. Você tem de ser um exemplo para eles. Não pode ser do tipo 'faça o que eu digo, não faça o que eu faço'.
Para o brasileiro, todo treinador precisa saber ser líder com time, comissão técnica, diretores e ter um relacionamento especial com a imprensa
Universidade do Futebol – Por que escolheu José Mourinho para realizar um estágio? Qual o diferencial do comandante português em termos de gestão de um grupo, metodologia e aplicação de treinamentos e na compreensão de um jogo de futebol?
Zé Maria – Ao lado Roberto Mancini e Carlo Ancelotti, José Mourinho é uma das minhas principais referências no treinamento desportivo. Eu já tinha aposentado, quando ele começou a ganhar tudo na Inter de Milão, um dos meus ex-clubes. E isso me instigou a ir à Itália ver o que ele fazia de diferente, quem era ele, enfim, tentar desvendar o que fazia Mourinho o vencedor que é.
E, sem dúvida, posso afirmar que o grande diferencial dele é a sua liderança. Mourinho é um líder nato por onde passa. O que ele fez na Inter de Milão ninguém mais vai fazer. Atletas como o atacante Samuel Eto’o ou o meia Sneijder, jogadores de renome, abdicaram de jogar em suas posições preferidas para atuar conforme Mourinho queria. Eles voltavam para marcar, acompanhavam lateral, etc. Tudo pelo treinador deles. E isso me marcou muito.
Na própria despedida do técnico português, todos os jogadores da Inter choraram, como se tivessem perdido um parente querido. Então, no meu modo de ver, Mourinho é um grande gestor de grupo.
Universidade do Futebol – Você tem um plano definido de carreira? Se sim, qual é?
Zé Maria – Da mesma maneira que pensava em sempre querer ser o melhor lateral direito do mundo, penso em ser o principal técnico do futebol mundial. Eu não me coloco limites. Quero ser o melhor treinador que poderei ser.
Comandar uma equipe da Séria A do futebol brasileiro, depois treinar um grande time da Europa, e assim por diante. Se não conseguir chegar a este patamar, vou tentar atingir o que for mais próximo disso. É assim que eu penso.
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Benê Lima