Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

domingo, março 03, 2013

Em busca de novos paradigmas disciplinares

Uma tentativa de achar novos paradigmas disciplinares para contribuir para as análises, debate e busca de consensos sobre a conceituação da Educação Física
Marcelo Ducart*
 

"A identidade de Educação Física. De um lado, se apresenta de múltiplas formas nas práticas de ensino e pesquisa, escondida ou revelada na heterogeneidade das doutrinas que querem para orientá-las, na diversidade das tarefas que nos ocupam nas escolas, clubes, academias, hospitais, colônias de férias, na ambiguidade das imagens e atributos que os outros nos devolvem e solicitam, nas fissuras do campo de trabalho que se deslizam médicos, treinadores, ex-atletas." (Crisorio, 2003)

1. Identidade disciplinar: algo a mais para saber quem somos

Ninguém sabe aonde vai se não sabe de onde vem. Neste breve exercício de reflexão acadêmica, pretende-se problematizar a questão da identidade da Educação Física, aprofundando-se especialmente na questão terminológica de seu próprio nome e escopo, a partir de certas perspectivas teóricas.

"A questão da identidade é algo que caracteriza em suas relações peculiares e gerais uma área acadêmica, uma instituição, um sistema social ou, ainda, uma prática social que se coloca no centro dos esforços intelectuais" (Bracht, 2003).

Seja coletivo ou individual, se fortalece a diferença e pressupõe um processo de recapitulação e reinterpretação constante (Guiddens, 1997). Em outras palavras, a questão da identidade é forjada necessariamente na abertura do diferente e aos diferentes. É precisamente quando as fronteiras são alargadas e se diversificam o que o próprio se faz mais claro. Esta ideia de identidade, por suposto, não se corresponde com a busca de alguma essência universal, uma pedra fundamental da natureza epistemológica pré-existente da história.

A partir de uma reflexão teórica como esta, tenta-se esclarecer não somente aquelas concepções ou lugares comuns desde os quais se descreve e se pensa a Educação Física, senão também aprofundá-los criticamente. Pensar o que produzimos e o que se produz na Educação Física (programas, projetos, textos, competências de distintos tipos, etc.), é uma forma legítima de teorizar (construir teoria) com fortes implicações na práxis disciplinar.

Nenhuma definição de Educação Física pode desconhecer que a identidade é um processo enriquecedor, complexo, que muda muito, e um produto da própria formação e afirmação cotidiana, que se deve interiorizar desde todos os ângulos através das próprias vivências. Frente à caracterização tradicional da identidade como algo acabado desde o início, invariavelmente, homogêneo e permanente, devemos também tomar consciência que ela ao mesmo tempo vai se modificando e podendo até desaparecer, por ser um processo dinâmico e inacabado, que flui constantemente.

Desaparecem algumas características e se produz a suposição de outros e todo ele como parte da história disciplinar normal. Neste sentido, a Educação Física é o resultado bem-sucedido ou conflitante de nossas estratégias de adaptação e transformação profissional e pedagógica, em um ambiente cultural marcado permanentemente pelas tensões e conflitos de poder. Uma maré de relações intersubjetivas desde as quais se vive, se pensa, se sonha, se teme e se oculta a realidade de mover-se humano como construção social.

2. Dos relatos de uma crise interminável à crise dos relatos

O saber quem somos não é algo simplista nem um simples slogan que beneficia, a priori, nosso status acadêmico e profissional. É o resultado de problematizar nossa vida institucional e nossas práticas cotidianas. Ou seja, é a consequência de aceitar pôr em crise nosso estatuto epistemológico. Neste sentido, que a identidade da Educação Física tenha entrado em crise não é nenhuma novidade e muito menos algo negativo.

Ao contrário, digo outra coisa, seria ao menos suspeito e inconsistente o que "talvez estejam necessitando seja rever nossa relação com a noção e aquilo que percebemos como crises" (Bracht, 2003:44). Além disso, a mesma ideia de crise entrou por dizer de algum modo, a força da repetição, em sua própria crise a perder a sua capacidade de causar algum alarme, como algo que deveria ser evitado.

Voltando um pouco o olhar sobre o próprio espaço disciplinar, tudo parece indicar que não é somente a Educação Física que está em crise. Vemos já faz muitos anos a uma profunda crise de identidade planetária, sobre o ser humano, nas instituições, na ciência, cultura e produções tecnológicas. Muitos pensam, inclusive, que é a crise mais profunda que se passou na história.

O marco do atual e acelerado processo de mudança permanente e estrutural que se produz a partir do século XX, o tema da discussão das identidades regionais no meio das crises de globalização resulta, essencialmente, para a defesa da independência e autonomia. O tema da identidade de uma disciplina, como é o da Educação Física, constitui, essencialmente, um processo social muito complexo de comunicação e luta cultural e acadêmica.

O termo identidade indica, sem dúvida, um conceito relacional. Seja em sua instância individual ou coletiva, nota-se a capacidade que se tem para integrar a autopercepção e imagem que se tem do mundo com seus atos. Pressupõe também se ter um conhecimento claro e preciso das próprias capacidades e pontos fortes, atitudes, objetivos, normas e valores.

Ter plena consciência de saber quem somos e estar confortável com isso; o conhecer que é o que queremos e lutar para obtê-lo, dentro das regras que nos ditam nossas próprias normas e valores.

Sabendo que o conhecimento e a reflexão teórica são, antes de tudo, formas de ação com consequências nas práxis humanas e, por isso mesmo, sobre a visão que temos sobre nossa identidade prática (Fensterseifer, 2001). Busca-se, deste modo, escutar os saberes que correspondem com as “tarefas” que identificam a disciplina.

Como nós vemos os docentes em Educação Física? Quem se sente autorizado a reconstruir a história oficial do que somos ao pensar? Diante destas interrogações, é bom indagar sobre os limites / contorno do campo disciplinar, sobre quais problemáticas e temáticas foram e são privilegiadas e reconhecidas como próprias e específicas e, por que não, quais têm sido silenciadas e esquecidas no percurso da história recente.

No trajeto histórico da teorização da Educação Física, os limites da identidade da disciplina têm sido, em determinados momentos, misturados e, por que não, confusos. Embora esta descrição não se possa generalizar nem no tempo nem nos variados cenários sobre os quais se desenvolveram.

Contudo, a imagem de "crise" tem estado muito presente na produção acadêmica e nas representações de numerosos graduados a partir fundamentalmente dos finais do século XX. A dita problemática remite e se reduz muitas vezes a partir da confusão que gera o mesmo conceito de Educação Física.

O que queremos expressar realmente quando dizemos Educação Física? Existe alguma forma de educação que não inclua o físico? O que se pretende adicionar ao conceito Física?

Há de observar ainda que o nome da nossa disciplina como "Educação Física" tem sido muito questionado há muito tempo e que parece encarnar uma espécie de contradição semântica e epistemológica em sua própria denominação tradicional. Manuel Sérgio (2008) vai mais longe ainda. Entende que a expressão é resultado de um defeito do racionalismo europeu. Ao propor a criação de uma nova Ciência da Motricidade Humana (CMH), o faz desde a intenção de superação do eurocentrismo como uma forma de colonialismo do saber dualista tradicional.

Voltando à declaração inicial, coincidimos que a expressão Educação Física não é a mais acertada em função do que se deseja transmitir como conceito ou ideia, nem muitas vezes, com as práticas concretas. A dita denominação que se utiliza por osmose (a nível geral, bibliográfico, acadêmico e no âmbito legal) não reflete adequadamente o modo ou acabamento, nem a ação educativa que se propõe, nem a estrutura desta disciplina científica e pedagógica.

Ao dizer Educação Física, o corpo identificado caprichosamente com o físico, parece focalizar-se como o eixo central da intervenção, como o objetivo da educação. Se nossas ações atingiram apenas a isso, nossa postura educativa seria evidentemente reducionista e explicitamente dualista.

A concepção antropológica, por outro lado, tem sido muito criticada e debatida no próprio campo. Como se poderia falar de homem-unidade e de educação integral se somente se pensa no corpo?

Sem dúvida, aqui aparece com maior ênfase, o repensar de certa ambiguidade no estatuto antropológico do corpo: somos corpo enquanto temos corpo. Contudo e, apesar de tantos indícios contra a imprecisão da própria expressão com a qual nos identificamos profissionalmente, as causas das crises não parecem ter direta relação com a dita problemática, mas, com outras causas históricas e políticas (Crisorio e Bracht, 2003), a saber:

a) a dificuldade e/ou exclusão da disciplina na agenda paradigmática da ciência moderna.

b) a defasagem, transição ou ruptura entre representações tradicionais (sub-universo simbólico moderno) e outras narrativas emergentes marcadas por novas lógicas, metáforas e modelos cognitivos.

c) a pluralidade e dispersão de visões e práticas que geram uma tensão excessiva sobre o lugar ou importância que ocupa o movimento humano nas definições acadêmicas e no estatuto antropológico do corpo.

d) a diferenciação interna a partir do aparecimento de diferentes visões sociais que provocam uma perda de hegemonia do caráter pedagógico (des-pedagogização).

e) a alienação da disciplina à lógica das ciências naturais, em especial, as biomédicas, com as quais se mantém uma relação de submissão e dependência.

3. Diversidade de campos históricos

A complexidade para circunscrever os limites epistemológicos da disciplina, além de tudo o que foi expressado anteriormente, talvez também tenha relação com as características singulares de nosso objeto. Talvez seja isso a causa da ambiguidade vinculada com a Educação Física.

Tal como tem sido historicamente, nossa disciplina se faz intermediária de uma inflexão, no ponto médio das chamadas ciências naturais e das ciências humanas e sociais, participando de ambas, mas sem senti-las como especificamente próprias. Ou melhor ainda, sem haver podido encontrar ao longo da sua história, perspectivas de integração entre ambas as correntes. Aprofundando o abismo entre o positivismo e as perspectivas românticas do campo.

Alguns se sentem mais próximos às ciências biomédicas e outros, por outro lado, creem somente nas bondades das Ciências Humanas e Sociais. Um divórcio que dá conta de muitas das disputas do campo. Porém, esta ruptura se faz mais problemática quando pensamos na identidade da Educação Física a partir dos processos de formação de novos profissionais. É ali, no coração da formação dos Institutos e Centros de Educação Superior, onde o problema prático explode ou se oculta atrás de um emaranhado de autojustificativas.

E a razão é que a maioria dos planos de estudo vigentes é, em geral, resultado de uma série de justaposições e extensões há muito tempo Parlebás, nas quais, embora com a melhor boa vontade de seus gestores, trata-se de colocar, em uma mesma oferta educativa, coisas que são muito diferentes em sua constituição.

Certamente, para que um plano de estudo de respostas acabadas e significativas a estudantes, docentes e sociedade em geral, tem de ser produto de um largo trabalho de reflexão contínua e de debate dentro e fora de próprio campo. Deve ser fruto do consenso sobre um projeto de trabalho unificado que assuma a complexidade dos diferentes pontos de vista de seus atores.

O que deve prevalecer é a força dos argumentos e não o argumento da força, nem da lei nem das pressões do mercado. Assim como no mundo cotidiano, o primeiro passo é, em ocasiões, o mais difícil antes de resolver um problema, é o reconhecimento de que esse problema existe. Porque se dizemos que formamos profissionais para o sistema educativo não formal (não escolar) e não temos sido capazes de inovar e reorientar nossos assuntos, quadros conceituais, desenhos metodológicos e estratégias de ensino-aprendizagem, além das lógicas escolares, seguramente não estaremos dando resposta nem a um nem ao outro perfil de pós-graduação.

Apesar disso, o uso extensivo e intensivo da expressão "Educação Física" na história da disciplina, há cristalizado uma identidade de consistência singularmente complexa. Portanto, seria incorreto dizer que nossa disciplina não possa ter identidade própria. Ela tem ganhado um espaço perante a sociedade e, particularmente, no próprio âmbito educativo, o que tem gerado a maioria das tentativas para corrigir, melhorar ou trocar o nome por outros que sejam mais apropriados, mas, que não tem conseguido todo o êxito que as expectativas iniciais pressupunham ou, melhor ainda, não tem conseguido o consenso necessário para impor-se sobre os demais.

Por tal motivo e, embora haja o risco de cair em uma postura demasiadamente simplista, poderia se pensar a Educação Física como uma prática e uma disciplina conformada historicamente de maneira heterogênea e multireferencial, com um objeto de estudo e de práticas vinculados com o "mover-se humano". Neste sentido, podem-se diferenciar ou categorizar historicamente ao menos três grandes campos de atuação entre a dispersão das práticas cotidianas:

a) Em primeiro lugar, aparece claramente delimitado e legitimado desde o campo das práticas escolares dentro do sistema educacional;

b) Intimamente ligada com o campo anterior, emerge outro campo relacionado com as práticas situadas de produção e de legitimação teórica e científico-acadêmica sobre o movimento corporal;

c) E por último, emerge o campo vinculado com práticas que intervêm a favor da promoção da cultura física ou corporal.

Sem dúvidas que existe uma variada e complexa combinação destas três formas de ação na Educação Física. Alguns profissionais enfatizam ou se especializam em alguns campos, defendendo a sua importância e priorização sobre os demais.

Constituindo um espaço de debate constante no qual se interrelacionam e tensionam simultaneamente, conformando-se em verdadeiros contornos de disputa entre os profissionais da área.

Baseado no pensamento iniciado por Aiseinstein (2007), acreditamos ser necessário aprofundar brevemente nos campos citados com o propósito de seu melhor esclarecimento.

3.1. A Educação Física como uma disciplina escolar

Na Educação Física tem-se encontrado, desde o seu início histórico recente como disciplina escolar dentro do currículo, uma fonte de legitimação social e acadêmica. Neste sentido, sua biografia dentro do campo escolar formal, enraizada a partir do surgimento da escola moderna no contexto de nascimento do capitalismo ocidental até os dias atuais.

Em geral, neste campo, não se aceita confundi-la nem com a ginástica nem com o esporte, embora se aproveite deles em suas práticas pedagógicas. A Educação Física como disciplina no currículo é o produto de uma particular articulação entre a concepção que a identifica com a cultura física e aquela outra que limita os conhecimentos científicos que circulam em uma sociedade.

A Educação Física como espaço pedagógico na escola moderna surge e toma conta, necessariamente, ocupando um importante lugar de equilíbrio psicossomático frente a um surgimento de uma cultura intelectual marcada pela nova racionalidade instrumental e técnica (Cagigal, 1979).

Existe como uma linha matriz ou propósito nodal da Educação Física, embora seja muitas vezes, e tão somente, um plano das intencionalidades, que tem sido tradicionalmente vinculado a um educar pelo movimento corporal. Ao dizer isso, recuperamos, em primeiro lugar, a tarefa pedagógica de educar, na qual o movimento corporal é secundário. Educar é a meta e o movimento corporal é o meio para se chegar a esta meta.

Por outro lado, a Educação Física trata de educar pelo movimento, então, vai procurar melhorar e aprofundar a capacidade motriz do estudante, aperfeiçoando suas estruturas de movimento através de experiências motrizes, no sentido sinestésico, a localização tempo-espacial, no sentido do ritmo corporal, a coordenação senso-motriz, a aquisição de habilidades técnico-táticas motrizes, o equilíbrio postural, entre outras intencionalidades significativas.

3.2. A Educação Física como campo de estudo científico

0201201315511071086606- mod.jpgComo campo de estudo científico, a Educação Física tem encontrado a oportunidade, a possibilidade e a necessidade de legitimar-se lentamente a partir de suas práticas e espaços de atuação social, em uma vinculação mais estreita com o calendário científico e acadêmico.

Neste âmbito, introduzem-se decididamente na lógica, os requisitos, os tempos e espaços singulares que plantam as agências de pesquisa e centros acadêmicos. Tenta assim uma ressignificação constante dos espaços de produção, socialização e validação de saberes tanto autônomos como heterônomos.

Aqui se considera a Educação Física, mais que tudo, como uma disciplina cientifica ou como uma ciência em construção, na qual e desde a qual, se tenta debater sobre os conhecimentos teórico-práticos que formam parte do acervo profissional e docente do campo.

Como disciplina científica, em geral, a Educação Física sempre teve muitos custos para transcender de seus próprios espaços de atuação. E isto se deve talvez, segundo a visão de Fensterseifer (2001), à tentação de querer consumir ou preferir uma teoria que não tenha sido produzida em casa e que provém de outros campos com reconhecimento científico.

Estes dados podem ser confrontados com a escassa transcendência acadêmica que tenham as principais investigações produzidas desde a área da Educação Física em comparação com outras surgidas em outros espaços acadêmicos, mas difundida em nossa.

3.3. A Educação Física como cultura física ou corporal

A cultura corporal é um conceito que começou a ser utilizado a partir do século XIX. O campo da cultura física ou corporal gerou, ao longo da história da Educação Física, especialistas que assumiram o desenvolvimento das habilidades e qualidades motoras. Muito antes de a Educação Física ganhar status acadêmico próprio, já existiam pessoas fortemente vinculadas e identificadas socialmente com as práticas corporais. Basta rever a história disciplinar desde a Grécia antiga para se dar conta disso.

Na atualidade, este campo é o mais heterogêneo e disperso. Pode ir desde o treinamento físico personalizado e/ou grupal, atividades circenses, ginásticas, malabares, às práticas em salas de musculação ou de estética, clubes esportivos e/ou recreativos, associações de bairros, sindicatos, organizações sociais ou outros centos especializados encarregados de trabalhar e fomentar diversas manifestações corporais.

Sem dúvida, as práticas motrizes que se promovem e se resgatam são diferentes segundo seu contexto social, sua origem étnica e religiosa, sua localização geográfica e histórica e de gênero. Um feito suficiente para recriar a dificuldade que supõe a formação de novos profissionais orientados para trabalhar nestes ambientes.

4. Em busca de definições

Não obstante e, apesar das dificuldades afirmadas anteriormente sobre as fronteiras da disciplina, gostaria de ensaiar alguma definição que opere mais que tudo que foi tentado de esclarecimento prospectivamente. Iniciamos a aposta a partir de uma citação breve de Bracht (1999), na qual e, em modo simplificado, se poderia considerar a Educação Física como:

"Uma prática que tem tematizado a intenção pedagógica das manifestações da cultura corporal e do movimento."

Esta definição nos parece apropriada para aprofundar e problematizar alguns aspectos de nossa identidade, embora haja o risco de reduzir a complexidade da mesma.

4.1. Uma prática...

A identificação do campo disciplinar como uma prática faz-se explícito o horizonte sociológico e filosófico desde a qual se tenta legitimá-la. Ao dizer prática, não estamos negando que careça de produção teórica. A prática não deve ser vista como um componente isolado, mas, para uma melhor compreensão, requer a relação com a teoria. Comumente, temos entendido a prática como o concreto, o particular e contextualizado. Ou seja, tudo o que não é teoria, nem abstrato, nem universal.

Mas, se queremos que os processos pedagógicos dêem conta verdadeiramente das necessidades educativas e ao mesmo tempo colocar-se à prova dos conhecimentos teóricos da disciplina, devemos compreender esta relação como um quadro complexo e complementar. A teoria não é algo que se aplique mecanicamente à prática como uma simples transferência, mas que está presente nesta, de modo que, sem ela, a prática não seria tal senão uma simples conduta fortuita, convertendo-se não em uma relação causal, mas sim interativa.

Na medida em que, como prática, a Educação Física tem sido configurada como uma instituição com direito próprio, dentro do contexto de atuação sociopolítica. Com o qual, seria lícito e pertinente identificá-la também como uma disciplina, já que forma parte do currículo do sistema educativo e das prerrogativas profissionais e legais vigentes.

A especificidade prática do saber escolar recortada pela Educação Física participa também de uma ambiguidade ou, ao menos, uma dimensão complexa: por um lado é um saber que se traduz como "saber fazer ou realizar corporal" e, por outro e ao mesmo tempo, um saber discursivo sobre esse realizar corporal.

Não se pretende, contudo, que a Educação Física se focalize prioritariamente sobre a dimensão prática ou técnica do movimento, nem se converta em mais um discurso racionalizante sobre o mover-se humano, mas sim em uma ação pedagógica.

4.2. Uma prática que tem tematizado a intenção pedagógica...

A intenção pedagógica nos vincula necessariamente com a causalidade constitutiva da subjetividade motriz. Equivale a dizer que a dita prática pode ser concebida como uma pedagogia das condutas motrizes. Neste sentido, está comprometida com a transformação temática da experiência em si, como condição necessária que se dá em todo processo educativo sistemático e organizado.

Tematiza as experiências vinculadas com o mover-se humano, porque as converte em objeto de suas práticas e discursos. Certamente, aqui tenderíamos que diferenciar o educativo com o escolar, apesar de que o sistema educativo tente usurpar, às vezes, sua exclusividade. O pedagógico não se restringe somente ao escolar, mas inclui toda uma série de ações no sentido antes expressado.

Os dispositivos pedagógicos com e desde os quais levamos a cabo nossa tarefa educativa, nunca são neutras, aproblemáticas ou um simples espaço de possibilidades para o desenvolvimento ou a melhora do autoconhecimento, a autoestima, a autonomia, etc, mas que assumem um caráter de constituição ética e política. Uma vez que eles, consciente ou inconscientemente, procuram construir ou modificar a subjetividade.

Ou seja, os modos em que as pessoas dispõem de seu corpo, se movem, se observam, se descrevem, se narram, se julgam, ou se controlam a si mesmas. Porque como diz Antelo (2010), para que exista educação, tem de haver uma espécie de vontade de influenciar, provocar, impactar ao outro. Uma intencionalidade que claramente pode encarnar o desejo de domesticá-lo, amansá-lo, inibi-lo, liberá-lo ou transformá-lo em um sujeito crítico e comprometido com a realidade social.

4.3. Uma prática que tem tematizado a intenção pedagógica das manifestações da cultura corporal e do movimento

Vale dizer que, para cumprir com este propósito, assume certas configurações do movimento cultural e socialmente significadas como são os denominados meios ou agentes tradicionais da Educação Física:

a) os jogos motores;

b) os esportes;

c) as ginásticas;

d) as atividades na natureza e ao ar livre;

e) as atividades atléticas e aquáticas

f) as danças ou bailes tradicionais;

g) a expressão corporal.

Este entendimento está longe de ser unânime, já que convive com outros relatos que estendem a definição a todas as manifestações da cultura corporal. Em tal sentido, como prática ou disciplina pedagógica, a Educação Física está comprometida com a construção e suposição da disponibilidade corporal, síntese transformada de disposição pessoal para ação a partir da interação com o meio natural e social, o que se vincula por sua vez com uma dimensão significativa na construção da identidade pessoal e social.

Desde este campo, recupera-se e prioriza a dimensão educativa e educável do corpo e do movimento humano. A dita dimensão alcança a interação dos indivíduos com ações motoras socialmente construídas e organizadas culturalmente.

O desenvolvimento sistemático de uma verdadeira pedagogia do movimento humano supõe ao mesmo tempo uma transformação qualitativa da motricidade e se associa com a disponibilidade adquirida do movimento. Contudo, entendemos que não exista um modelo utópico de desenvolvimento da motricidade humana, como se fora uma receita taxonômica aplicável universalmente.

A ideia de um desenvolvimento harmônico e equilibrado gera sempre uma série de contradições e problemas que vão sempre além do meramente técnico ou metodológico.

5. Ressignificando oportunidades. Uma definição com final aberto

Os tempos atuais nos demandam urgentemente um compromisso e participação do cenário social e acadêmico como nunca antes havíamos tido. Nossa capacidade para escutar e escutarmos, para interrogar as demandas, necessidades e expectativas, para dar respostas além das urgências dos tempos do sistema educativo, é crucial para nossa subsistência e reconhecimento social. A possibilidade de poder pensarmos criticamente além dos meros convencionalismos e dos rituais estereotipados de atuação profissional e acadêmico é o nosso maior desafio.

A legitimação de nossas práticas situadas deve estar comprometida com a superação das rachaduras existentes entre certos discursos pretendidamente teóricos e outros procedimentos supostamente práticos. Para expor como alguns modelos teóricos sincréticos operam nas representações sobre o campo, os quais estão longe de constituir-se em teorias iniciais de acesso à realidade como bem expressa Lino Castellani Filho, operam ao contrário como pontos de partida e de chegada da reflexão crítica.

Por sua vez, os desafios que aparentam a alienação corporal são produtos do sedentarismo tecnológico e suas consequências não somente sobre a saúde pública, mas também sobre o empobrecimento da capacidade de ação e da relação humana, que compromete de maneira significativa nosso campo de saberes e de práticas motrizes.

A tarefa da recuperação da riqueza corporal e motriz implica ao mesmo tempo uma aposta pelo equilíbrio psíquico e social e, por isso, com o melhoramento da qualidade de vida e a transcendência de certos condicionamentos e formas de sujeição.

Sempre o pano de fundo que deve guiar e acompanhar o projeto de uma pedagogia do movimento humano não pode esquecer-se da complexidade da totalidade da existência humana.

E primeiro lugar, a Educação Física deve pensar como educação. A partir das diferentes configurações do movimento, denominadas tradicionalmente como agentes ou meios da Educação Física, deve-se tender à melhora das estratégias desde as quais as pessoas se comunicam, expressam e relacionam, conhecem e se conhecem, aprendem a fazer e ser.

Corpo e movimento são componentes essenciais na aquisição do saber do mundo, da sociedade, de si mesmo e da própria capacidade de ação e resolução de problemas.

Temos necessidade do campo disciplinar de reinventar a disciplina além de seus condicionamentos históricos, de suas divergências e dispersões, de seus erros e dispositivos de invisibilidade científica.

Para ele assumir o risco de problematizar nossas práticas e supostos teóricos é o começo do caminho superador. Em muitos encontros e reuniões de trabalho, podemos dar testemunho como nossos relatos da Educação Física vão tencionando os espaços de encontro e de bifurcação, de identificação ou de diferenciação ideológica.

A provocação confortável e auto-assumida da indefinição do nosso campo nos tira a fortuna de poder recuperar com humildade o registro de uma verdadeira intencionalidade histórica e política de construção de identidade, muitas vezes, silenciadas ou ocultas, a partir da auto-entrega que aliena nossa tradição.

Tanto que, para concluir este trabalho, plantamos algumas perguntas que questionam prospectivamente os marcos referenciais e convencionais desde os quais tentamos rotular nossa identidade profissional. Vejam:

- De quais conhecimentos podemos dar conta na Educação Física realmente? Que questões geram respostas? Que novas funções sociais nos estão solicitando nesta nova etapa histórica?

- Que experiências de verdade são possíveis construir a partir do mover-se humano como forma de conhecimento do mundo?

- Seria útil e bom esperar uma transformação da identidade da Educação Física como nova mecenas curricular das práticas corporais que salvaguarde os modos legitimados e institucionais de tratar socialmente com o corpo ou, em todo caso, ensaiar uma pedagogia do movimento humano como espaço permanente de produção ideológica sobre o que se articulam as redes do saber e do poder?

 

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* Professor de Educação Física (UNRC) Ano 1999; especialização (Licenciatura argentina) em Educação Física (UNRC) Ano: 2001; professor de Filosofia (Instituto JBP, Río Cuarto) Ano: 1999; mestre em Educação e Universidade – MEU (UNRC) Ano: 2005; instrutor e treinador nacional de atletismo (Inst. Nacional do Deporte) Ano: 1994-95.

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