Alcides Scaglia
Esta semana, em decorrência das aulas do bacharelado em Educação Física na universidade, estava conversando com os alunos sobre a formação do treinador de futebol, e a partir dos textos que estávamos estudando sobre pedagogia do esporte, ficava evidente que sua formação para a especialização (categorias de base) e também o profissional devem passar pelas escolinhas de futebol (a iniciação).
A passagem pelas escolinhas, evidentemente, refere-se à aplicação dos pressupostos básicos das novas tendências em pedagogia e pedagogia do esporte, as quais se opõem frontalmente à reprodução do ambiente e das peculiaridades do futebol profissional nas categorias de base e, principalmente nas escolinhas de iniciação.
Desse modo, a necessidade de adequação e desenvolvimento de uma metodologia que seja adequada à iniciação para grupos muito heterogêneos, em que todos têm o direito de aprender e o professor o dever de ensinar a todos, aliada a uma didática coerente e impregnada por intervenções pedagógicas que motivem a todos no processo, permitem que o professor adquira uma experiência ímpar que o qualifica a se candidatar com mais segurança e muita eficiência ao cargo de treinador.
É interessante e desafiante pensar contra a corrente, pois estas reflexões vão de encontro (contra) ao que assistimos. Porém, o paradigma está mudando e quando este se altera todos voltam à estaca zero. Ou seja, é um recomeço que John Baker, um estudioso sobre paradigmas na década de 80, diz que um passado glorioso de nada vale se o paradigma muda.
Desde o início do século XX que a ciência em suas várias áreas do conhecimento vem mostrando e provando esta mudança. Em algumas áreas, o que a ciência previa já é realidade para até para o senso comum.
Ou seja, quando se inicia a mudança, não tem mais volta, é só questão de tempo. Porém é preciso entender que tempo não significa semanas, meses ou poucos anos. Estou falando de tempo histórico.
Contudo, apesar de que falar sobre mudanças paradigmáticas muito me interessa (como pode ser lida em quatro anteriores crônicas pedagógicas especificamente dedicadas a esta temática), quero voltar ao tema principal deste texto e os seus desdobramentos.
Assim sendo, a aula e o debate com os alunos me levaram a relatar uma experiência interessante que passei ao logo de minha formação como professor de Educação Física.
Relatei-lhes as experiências desenvolvidas na Escola de Esportes do Clube Grêmio Recreativo em Rio Claro-SP, que iniciou suas atividades no dia 27 de agosto de 1994, quando eu e o professor Adriano de Souza (hoje um dos mais competentes treinadores adjuntos da primeira divisão do voleibol universitário nos Estados Unidos), ainda alunos de graduação, sob a tutela do professor João Batista Freire e o apoio do professor Jocimar Daolio, depois de apresentarmos um projeto para o presidente e diretoria do clube, iniciamos as atividades da Escola de Esportes.
Abaixo destacarei um excerto do livro Pedagogia do Esporte (editora Papirus), organizado pela professora Vilma Nista Picollo, que possibilitou-nos no ano de 1999 registrarmos esta experiência em dois dos capítulos do livro.
“O Clube Grêmio Recreativo dos Empregados da Cia. Paulista de Estrada de Ferro, localizado em Rio Claro-SP, cidade do interior do estado de São Paulo, abriu suas portas para que pudéssemos aplicar uma nova proposta de trabalho com a iniciação no futebol, que vinha sendo desenvolvida na FEF-UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. João Batista Freire. Iniciamos a escola desenvolvendo o trabalho com o futebol para cerca de 100 alunos. Atualmente, o trabalho se estendeu para o voleibol e o basquetebol, mantendo os mesmos princípios e cuidados pedagógicos, ampliando o atendimento para mais de 300 alunos.
Mas, antes de nos aprofundarmos nos métodos desenvolvidos é preciso observar alguns princípios pedagógicos que regem todo o trabalho.
Dividimos os princípios em três conjuntos:
O primeiro conjunto de princípios está ligado aos atributos que regem um processo de ensino aprendizagem coerente e adequado, ou seja, o futebol entendido em seu processo e não como um produto; um trabalho que não tenha como finalidade a descoberta de talentos; a não cobrança de resultados e a não preocupação com a formação de equipes invencíveis, como fator relevante e avaliador do trabalho desenvolvido. Gerar uma organização para que o aluno pegue mais vezes na bola, ou seja, tenha muito contato com a bola durante a aula, buscando, evitar as grandes filas de espera da vez de jogar; possibilitar oportunidades diferenciadas para que eles saibam se auto-organizar; estimular a construção de regras estabelecidas por eles mesmos, ou seja, os alunos serem regidos por suas regras, elaboradas à medida das necessidades durante a aula.
O segundo conjunto de princípios procura se ater na determinação das características relevantes específicas de uma metodologia de trabalho. Portanto, preocupa-se com:
- a organização das turmas, de maneira adequada à faixa etária e nível de desenvolvimento; a divisão das turmas, de forma a possibilitar um desenvolvimento harmônico e global das crianças, atentando-se sempre aos seus aspectos cognitivos, afetivos (sociais), sensitivos e motores; aumentar gradativamente as situações propostas aos alunos, ou seja, brincadeiras oferecidas às crianças devem ser alteradas em função do nível de dificuldade; possibilitar que as crianças pensem sua própria ação, pois, pensá-las proporciona a assimilação e desenvolve o seu conhecimento crítico; não realizar atividades, que se resumem na prática pela prática, com explicações é possível situar o aluno no contexto em que a atividade é executada. O aluno, inserido neste processo, compreende o seu fazer, atuando como um agente criador e transformador de seu conhecimento.
Já o terceiro conjunto de princípios determina a importância de se considerar como bagagem a cultura motora que a criança já traz consigo. Um dos instrumentos adotados para aprendizagem mais significativa no futebol é a utilização desta cultura infantil. Para isso, procura-se sempre resgatá-la, adaptando brincadeiras infantis, adequando-as aos componentes do futebol. Possibilitar uma certa liberdade de expressão no transcorrer do processo de ensino-aprendizagem do futebol.
Outras preocupações pedagógicas, que geram diferentes procedimentos metodológicos, são assumidas no tocante as medidas dos campos, redução do tamanho dos gols, peso das bolas, número de jogadores durante os jogos, competições especiais, regras adaptadas...
Portanto, procuramos criar situações onde adequamos os jogos à realidade possível dos alunos. Estas situações se concretizam, por exemplo, na diminuição do tamanho do campo, ficando bola e alunos mais próximos em menor espaço; diminui-se o números de jogadores para que durante o jogo estes possam entrar em contato mais vezes com a bola; o gol é reduzido a um tamanho proporcional ao das crianças; o peso da bola dever ser menor nos iniciantes e ganhar peso conforme os alunos adquirem idade; as competições não se preocupam com o resultado em si, mas sim com a motivação dos alunos, sendo, portanto, campeonatos especiais que visam oferecer oportunidade à todos os alunos de participarem.
Estas competições podem assumir um ar de gincana, onde além do jogo principal, que assume determinado número de pontos, outras atividades, já realizadas em aulas, podem ser utilizadas para acrescentar pontos à disputa. Com isto, mais alunos podem participar do contexto competição, sem a sua ‘sobrecarga negativa’.
Não podemos deixar de destacar a importância de uma boa relação professor-aluno para o desenvolvimento de todos estes princípios, pois o educador deve proporcionar ao aluno o aprendizado de um conhecimento que, segundo Georges Snyders no livro ‘Alunos Felizes’, traduz-se na busca da alegria. Para que esta relação proporcione alegria é necessário que seja vivida com gravidade e profundidade, ou seja, com amor e dedicação, pois o professor não se encontra à parte, sentado em sua nuvem; ele revive os sentimentos e as aspirações dos alunos como se fossem as dele”.
Depois desse trecho do livro fica evidente que ser professor exige muito mais do que conhecimentos específicos de futebol (por exemplo, ter sido praticante): é preciso saber de pedagogia, compreender conscientemente de sua metodologia e apurar sua didática para que, com a aplicação do método, atinjam-se os objetivos específicos e gerais refletindo os princípios e as teorias pedagógicas que sustentam todo o processo.
Portanto, adquirindo estes conhecimentos pedagógicos, que aperfeiçoam a competência e ampliam as habilidades do professor, a transição de professor para treinador acaba se alterando basicamente no que diz respeito aos objetivos distintos que se determinado para atingir. Logo, o quanto antes alunos dos cursos de Educação Física que almejam ser treinadores de futebol (ou mesmo qualquer outra modalidade), deveriam aproveitar o tempo de formação teórica e, na própria universidade, colocá-las em práticas, criando laboratórios de estudos aplicados supervisionados pelos docentes.
O tempo urge, não dá para esperar as mudanças paradigmáticas ocorrem por completo, é preciso provocá-las.
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Benê Lima