Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, março 24, 2010

Pesquisa estabelece perfil do jogador brasileiro que vai para o exterior
Apesar de atuarem fora do país, os atletas permanecem ligados ao Brasil por meio de produtos brasileiros e meios de comunicação; o pouco estudo e o "caçulismo" também são características marcantes
Equipe Universidade do Futebol

Um estudo desenvolvido pela professora Carmen Rial, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entre 2003 e 2009, com cerca de 40 jogadores brasileiros de futebol que viviam ou haviam morado e atuado no exterior, traçou o perfil desses atletas.

A maioria dos jogadores de futebol brasileiros que vão trabalhar fora do país são caçulas. Raros são os primogênitos. Muitos tiveram irmãos mais velhos que também desejavam jogar futebol, mas precisaram abandonar esse projeto para contribuir com a economia da família. Menos frequente do que o “caçulismo”, mas também recorrente, é a origem em famílias com a ausência dos pais, vivendo com os avós maternos. Além disso, a pesquisa concluiu que são jovens com origem nas chamadas camadas sociais subalternas e a maioria “cruza fronteiras geográficas sem ingressar em países, pois suas fronteiras são os clubes”.

“Concentrei o levantamento na cidade de Sevilha, na Espanha, onde morei quatro meses, com intervalo de um ano, e em Eindhoven, na Holanda, onde estive em três oportunidades, com intervalo de dois anos. Também conversei com muitos familiares, amigos, empresários, técnicos e secretários, realizei entrevistas, assisti a treinos e jogos, visitei seus restaurantes preferidos e algumas de suas casas no Canadá (Toronto), Holanda (Almelo, Groningen, Alkmaar, Roterdã, Amsterdã), Japão (Tóquio), na Grécia (Atenas), na India (New Dehli), na Tailandia (Bangkok), no Marrocos (Marraqueche) e também no Brasil (Fortaleza, Salvador, Belém)”, explicou Carmen.

Também foram realizadas longas conversas telefônicas com jogadores e seus familiares na França (Lyon, Le Mans, Nancy, Lille), Mônaco e Bélgica (Charleroi). O objetivo do estudo foi “traçar um perfil desses emigrantes especiais, por meio do escrutínio de dimensões que marcam seus estilos de vida”, contou a pesquisadora.

Segundo o estudo, a concentração de caçulas entre os jogadores entrevistados mostra que, na repartição familiar das atividades, estes foram beneficiados com a possibilidade de realizar o projeto mais desejado entre os jovens de camadas subalternas no Brasil: o de se tornarem jogadores de futebol profissional. Para a pesquisadora, o “caçulismo” corrobora a ideia de que a carreira de jogador de futebol é um projeto familiar, no qual é necessário algum excedente econômico para propiciar a liberação de um integrante do trabalho remunerado.

De acordo com Carmen, jogar futebol no Brasil não é ocupação da parcela social considerada miserável, pois o esporte demanda um mínimo necessário para um jovem se profissionalizar (chuteiras, contatos com os clubes, passagens de ônibus, dispensa do trabalho). Também não é ocupação das camadas sociais dominantes, cujos projetos de continuação da reprodução social do capital prevêem que os herdeiros, preferencialmente os filhos homens, assumam a liderança dos negócios.

Sendo assim, o futebol é um projeto possível para uma larga faixa da população brasileira, a das camadas subalternas, que vai dos pobres até as camadas médias baixas (aproximadamente de 90% dos entrevistados). “Foi nesta faixa que encontrei a maioria dos meus interlocutores, com uma origem social de pais operários do ABC: trabalhadores rurais, serralheiros, carpinteiros, funileiros, vendedores ambulantes, empregadas domésticas, sacoleiras, marinheiros. As histórias que ouvi têm muitos pontos em comum, são histórias de vida de famílias que, como reconhecem, não passavam fome, mas passavam necessidade.”, disse a pesquisadora.


Outras informações do estudo:

- A maioria dos jogadores entrevistados tinha apenas o primário, cerca de 10% conseguiram terminar o secundário, um havia sido aprovado no exame vestibular (tendo abandonado a faculdade quando se mudou para o exterior) e apenas um formou-se em curso superior;

- Três entre suas esposas concluíram o terceiro grau, mas há uma tendência de que apresentem uma escolaridade maior do que a dos jogadores;

- Todos demonstraram estar conscientes de que a ascensão econômica em suas vidas só foi possível graças ao futebol – atribuem a uma prerrogativa divina o fato de terem ascendido, como se tivessem sido escolhidos: "Tudo o que sou, devo a Deus", "Deus quis assim", "Graças ao Senhor" são frases que pontuam suas falas;

- Praticamente todos os entrevistados empregaram o primeiro dinheiro que receberam para adquirir uma casa para a mãe, ou para fazer uma reforma, quando ela não deseja deixar a vizinhança onde morava, realizando um sonho e devolvendo um pouco do que dizem ter recebido;

- Os altos salários recebidos pelos jogadores na Europa e no Japão não se refletem em consumos “ostentatórios” de sua parte. De fato, seus hábitos de consumo aproximam-se mais aos de uma camada média alta do que de milionários que são;

- Os que estão em clubes-globais moram em casas espaçosas localizadas em bairros nobres, geralmente os que concentram grande número de jogadores de futebol, porém não há na decoração das casas nenhuma grande extravagância. Continuam a vestir-se como os jovens de sua idade (com tênis, jeans e camisetas, ainda que essas sejam de marcas caras), a comer em casa ou em restaurantes que sirvam uma comida próxima da brasileira, a terem como diversão as salas de bate-papo da Internet (onde se relacionam com familiares, amigos e outros jogadores de futebol), os CDs e DVDs de músicas brasileiras, a TV Globo Internacional, e os jogos eletrônicos.


O estudo ainda concluiu que, apesar de alguns jogadores brasileiros conseguirem a nacionalidade no país onde atuam, eles, geralmente, continuam sentindo-se e sendo percebido como estrangeiro. “Adquirir a nacionalidade do país de acolhida nem de longe significa adquirir sentimentos nacionalistas em relação a esse país ou uma identidade outra que a brasileira. A brasilidade permanece como única identidade de pertencimento étnico”, avaliou antropóloga.

A pesquisadora também concluiu que, mesmo a quilômetros de distância do Brasil, os atletas permanecem ligados ao país, seja pelos locais que frequentam, ou pelas músicas e filmes que gostam, ou pelos canais de TV que assistem. O estudo comprova que o círculo das mercadorias que consomem reafirma permanentemente a identidade nacional. “O local (Sevilha, Lille, Eindhoven, Le Mans, Marselha, Bruxelas, Alkmar, Tóquio, Toronto, Almelo...) parece contar pouco para esses sujeitos, pois ainda que possam adquirir imóveis, ter filhos, vivem permanentemente com a possibilidade de mudar-se para outro clube, em outra cidade, em outro país”, disse Carmen.

Na avaliação da pesquisadora, os jogadores entrevistados fornecem um exemplo empírico extremo do viver entre fronteiras. Apesar de sua presença física em outro país, continuam vivendo no Brasil, tanto no plano da imaginação quanto no econômico, pois no Brasil mantêm casas, sítios, carros, contas bancárias, investimentos múltiplos e sustentam familiares. “Nesse sentido, são transmigrantes”, classifica a antropóloga.

A Espanha, a França, a Holanda, a Coréia, o Japão ou qualquer outro lugar em que a sua mobilidade no sistema futebolístico os leve a "rodar", é apenas uma passagem, algo que se faz como um trabalho, com sacrifício, para receber a recompensa de prestigio profissional e financeira.

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