Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

terça-feira, fevereiro 05, 2008

O pós-moderno no futebol

A filosofia de José Mourinho

Alcides Scaglia
Cidade do Futebol

Filosofia e futebol. Água e óleo? Para muito que militam no e sobre o futebol, sim. Para todos os boleiros, com certeza.

Na Bíblia Sagrada está escrito que a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular.

Essas referências me servem como analogia para discorrer sobre outro imenso diferencial do técnico José Mourinho. Ele não rejeitou a filosofia! A filosofia, paradoxalmente, materializou-se nos treinamentos do técnico português.

Mourinho ouviu os conselhos e colocou em prática os ensinamentos de seu professor, o filósofo Manuel Sérgio. O pensador da motricidade humana sempre advertiu sobre o fato de que se alguém quiser conhecer mais sobre futebol deve tentar desvendar o humano, interpretar suas ações, desvelar a intencionalidade de seus atos.

A busca pela compreensão do humano abriu uma frincha às ciências humanas. Essa fissura permitiu à filosofia, à pedagogia, à psicologia adentrar ao hermético universo do futebol.

Hoje, por meio da pouca mas intensa luz que pela fresta se irradia e se expande cada vez com maior intensidade, antevejo a inevitável queda das barreiras físicas e metafísicas que impedem a superação do modelo atual de organização e gestão (em todos os níveis) do futebol.

Avento e não profetizo com Cassandra de Tróia, que Mourinho se equivale ao grande presente grego. O ex-técnico do Chelsea é como um cavalo de Tróia para os adoradores do futebol. Ou seja, as felicidades advindas de suas vitórias e conquistas encobrem o germe de lucidez, sapiência e transcendência que traz no interior de suas intencionais ações, provocando, inevitavelmente, a queda do império cartesiano, no qual o paradigma mecanicista legisla, julga e executa as ações no futebol.

Em uma das páginas do livro que busca explicar o porquê de suas tantas vitórias, Morinho revela o seu conhecimento sobre filosofia, mais precisamente sobre filosofia da ciência.

Ele explica de forma didática os problemas gerados pelo paradigma mecanicista no futebol e ainda vai ao cerne da questão criticando todos os técnicos que ainda insistem em se pautar por um modelo obsoleto.

No excerto da entrevista a um jornal português, Mourinho afirma:

“(...) parece-me quase óbvio que a maioria das seleções nesta fase final da Euro 2004 tem no treino analítico o epicentro da sua preparação. Sou (...) defensor de uma perspectiva totalmente antagônica do treino, com a integração [entenda-se interação] de todos os fatores [entenda-se dimensões], alicerçados na organização e preparação táctica. (...) Resumindo, fazendo com que o todo passasse a ser superior à soma das partes”.

O treino analítico a que Morinho se refere advém das propostas formuladas no século XVII por Descartes em seu clássico livro “Discurso do Método”. Esse livro reformou as idéias em seu tempo e ajudou significativamente a dar azo ao surgimento da ciência moderna e ao estabelecimento de uma forma de pensar e conceber o mundo a qual se convencionou denominar pensamento mecanicista, originando o paradigma cartesiano.

O pensamento mecanicista é analítico, linear, e procura explicar o homem comparando-o a uma máquina que funciona a partir da harmonia de suas engrenagens. Logo, essa forma de conceber o mundo busca compreender os objetos delimitando de modo pragmático suas fronteiras para em seguida decompô-lo em partes, simplificando assim a compreensão do todo e desmistificando (ou hoje poderíamos dizer desprezando) sua complexidade.

Ao colocar em prática esta ação reducionista, retira-se o objeto de estudo (o qual seria o alvo da investigação) de seu contexto, separando-o e o ordenando em partes menores para decifrá-las. Acreditava-se então, que a soma das partes decifradas seria maior que uma análise contextual do todo.

José Mourinho, ao falar dos treinos analíticos, está querendo dizer na verdade que todos os treinadores fazem a mesma coisa porque fragmentam o futebol em partes, como por exemplo, o técnico, a tática, a psicológica e a preparação física, explorando-as de forma desconexas em seus treinamento e ainda descontextualizadas perante às exigências e ocorrências circunstanciais do jogo (entendido com o todo).

Já o modo de conceber o treinamento em futebol do técnico português é diametralmente oposto, devido ao fato dele não ler o futebol com os desfocados óculos do paradigma cartesiano.

As premissas que sustentam a visão de mundo de Mourinho estão ancoradas no paradigma emergente, que vem para superar a metáfora mecanicista da máquina humana. A melhor metáfora para explicar o homem e o mundo passa a ser a do organismo vivo, que se encontra em constantes e sistêmicos processos adaptativos e de auto-organização, evidenciando que o todo seria maior que a soma de suas partes.

A ciência deve muito a Descartes, a Bacon, a Newton, entre outros fundadores do pensamento cartesiano... Mas as idéias advindas do racionalismo não são mais suficientes para explicar os novos fenômenos descobertos. Assim, sua superação é anunciada como irreversível por pungentes cientistas, que tecem estudos evidenciando o quão obsoleto é esse modelo de pensamento, além de apregoar o crítico momento revolucionário em que se encontra o pensamento científico.

A crise do pensamento científico se iniciou no começo do século XX, com os trabalhos de Einstein, relativizando o tempo e o espaço, e da física quântica de Heisenberg e Bohr, derrubando a leis de Newton no tocante à microfísica.

A necessidade de superação do pensamento racionalista/analítico já ultrapassou os limites da Física, adverte outro renomado português, o cientista social Boaventura de Souza Santos, progenitor, defensor e divulgador dos propósitos do novo paradigma, afirmando que esse está emergindo da crise do pensamento científico e se mostrará cada vez mais facilitador no processo de construção de conhecimentos prudentes para uma vida decente.

Desse modo, a visão global, sistêmica, holística, hologramática, ecológica, complexa, ou seja lá qual for o adjetivo a qualificar o pensamento de Mourinho, longe de se preocupar com as partes, ou mesmo estabelecer em que ponto começa o físico e acaba o psicológico, o tático e o técnico, preocupa-se com o processo organizacional do jogo (concebido como todo).

Um treinamento, ou melhor, saber treinar, só se mostrará válido e interessante quando possibilitar aos jogadores operacionalizarem as idéias que serão realmente utilizadas no jogo, permitindo assim que toda uma equipe possa, por intermédio de treinos contextualizados, aprender a ler o jogo, e encontrar nele as características que substituem o determinista pensamento analítico. Como, por exemplo, as destacadas por Boaventura de Souza Santos logo no primeiro tomo de sua mais importante obra, A Crítica da razão indolente: “Em vez de eternidade, temos a história; em vez de determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpretação, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem...”.

Portanto, talvez Mourinho, para o universo do futebol, guardadas as devidas proporções, possa se comparar a Epicuro, o filósofo grego do período Helênico, quando esse, no entendimento do contemporâneo filósofo francês Luc Ferry, incomodava a harmoniosa e perfeita concepção de cosmo dos estóicos, com suas alusões à desordem e ao caos. Ou seja, Mourinho, em consonância com teóricos, principalmente das ciências humanas, que estudam o jogo, concebe que esse tende ao caos, à desordem e à constante busca pela organização a partir das interações. Assim, não teria uma disposição à ordem como acreditam os técnicos que ainda insistem em utilizar uma metodologia tecnicista, sustentada pelo pensamento mecanicista, o qual apregoa e alicerça a máxima Ordem e Progresso.

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