O espaço em que Leandro Zago comandou pela primeira vez uma atividade em uma escola de futebol da Ponte Preta, em 2000, hoje é ocupado pelo centro de treinamentos da equipe profissional de Campinas (SP). Em quase duas décadas, porém, não foi apenas a estrutura do clube que mudou. Foi um período de consolidação para novas referências, novos conceitos e até novos organogramas na modalidade. Isso só não foi suficiente para derrubar alguns paradigmas.
“Se temos ainda poucos profissionais que se aprofundam nesse tipo de conhecimento, como implementar em um ambiente em que a maioria ainda pensa de maneira fragmentada e não cria relação entre os pequenos detalhes e o produto final? É ruptura de paradigma, e isso demanda tempo e necessidade, principalmente. Sinceramente, não vejo ainda uma necessidade real percebida pelo nosso futebol para essa ruptura. Vejo pessoas, em projetos isolados, buscando contribuir com o desenvolvimento da modalidade”, questionou Zago, hoje treinador do sub-20 da Ponte Preta, em entrevista à Universidade do Futebol.
Bacharelado em educação física pela Unicamp, o profissional tem MBA em gestão de pessoas e construiu carreira no futebol desde o período em que trabalhou na escola da equipe de Campinas. Passou por outros centros de formação e comanda equipes de base há pelo menos dez temporadas.
Zago voltou à Ponte Preta desde o início de 2016. Nesta entrevista, fala um pouco sobre o trabalho na equipe de Campinas e deslinda conceitos que compõem sua ideia de jogo. Também aborda os desafios para o futebol de base no Brasil e os caminhos para a formação de jogadores mais capacitados em diferentes dimensões.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Universidade do Futebol – Como você se mantém atualizado profissionalmente?
Leandro Zago – Em 2016 conseguimos realizar reuniões semanais para discutir artigos científicos com toda a área técnica do departamento de formação da Ponte Preta. Penso essa ser uma iniciativa riquíssima. Pessoalmente eu mantenho uma meta de leitura de livros anual que estabeleci e acompanho materiais produzidos na internet em países que são referência na formação de jogadores, como a Holanda, Alemanha e Itália, por exemplo. Sigo com grande regularidade os treinadores que admiro e me interesso por circunstâncias que podem gerar estudos de caso, como o Guardiola implementando sua filosofia de jogo na Alemanha e na Inglaterra ou o Antônio Conte construindo uma zona italiana na Inglaterra. Nesses casos meu aprofundamento é maior.
Universidade do Futebol – Como se dá a integração entre as equipes de base e o departamento de futebol profissional na Ponte Preta?
Leandro Zago – Houve uma evolução nos últimos dois anos, mas ainda é um processo em amadurecimento que vem sendo aprimorado.
Universidade do Futebol – Quais são os pilares da construção da sua ideia de jogo? Há um direcionamento do modelo pelo clube? O quanto isso é levado em conta no seu dia a dia?
Leandro Zago – Não há um modelo estabelecido pelo clube. Porém, a Ponte Preta tem conseguido nos últimos anos, como consequência de frequentar os melhores campeonatos do país e de ter uma identidade cultural histórica relacionada ao comportamento competitivo exigido pela torcida, sustentar uma forma de jogar característica que vem se apresentando com regularidade. Isso eu considero como algo positivo. A falta de conhecimento no Brasil tem criado mais processos engessados do que libertadores, que deveriam ser o real objetivo. Os pilares da ideia de jogo são nucleares e se manifestam fractalmente em absolutamente todas as sessões de treino. Segundo Leitão, em 2009, a lógica do jogo de futebol é chegar ao gol com o menor número de ações possíveis. Não cabe aqui discutir sobre a lógica do jogo, até porque quem domina a fundo esse tema é o Rodrigo Leitão, mas cabe reforçar que todos os exercícios de treino são construídos para que o atleta consiga cumprir cada vez melhor a lógica do jogo e que para isso eles (os exercícios) devem levar em conta todas as dimensões da performance humana no jogo de futebol (técnica, tática, física, mental/emocional, social, cultural, etc.).
Universidade do Futebol – Quais são as ferramentas de controle e avaliação utilizadas nas categorias de base para acompanhar a evolução do jovem jogador nos diversos aspectos de jogo? Elas têm sido eficazes?
Leandro Zago – Nós temos um analista de desempenho por categoria. Esse profissional faz scout de todos os jogos oficiais e de alguns treinamentos. Nós temos nesse scout uma parte relacionada ao desempenho individual e outra ligada ao desempenho coletivo. Temos índices numéricos e edição de vídeo para que os comportamentos desenvolvidos sejam discutidos com os atletas.
Universidade do Futebol – Para você, quais são os principais desafios a serem superados nas categorias de base no Brasil?
Leandro Zago – O primeiro ponto importante é que os clubes passem a ter um departamento de futebol. Ou seja, os departamentos de futebol profissional e de formação devem se tornar uma coisa só. A partir daí o futebol seria pensado como um processo integrado e setores como captação de talentos e visão sobre a construção de uma forma de jogar teriam total conexão desde a categoria mais jovem até a equipe principal. Com essa integração, a transição de jogadores com destaque na formação para a equipe principal respeitaria um processo organizado em que esse potencial talento tivesse continuidade em sua formação independente da equipe que integra, com profissionais especificamente dedicados a isso. Do ponto de vista da estrutura física, é fundamental que o ambiente proporcione que o treinamento, a alimentação e a recuperação sejam otimizadas ao máximo. Dentre todas as questões aí envolvidas, vou destacar a necessidade de campos de alta qualidade, com maior similaridade possível com aqueles dos melhores estádios do país. Se queremos formar jogadores para um futebol de altíssima velocidade de tomada de decisão e técnica (ação motora), eles precisam, desde muito jovens, exercitar-se em campos que permitam esse tipo de jogo para que adquiram padrões motores que ao longo do processo vão caminhando para isso, jogar em poucos toques sob pressão de tempo/espaço.
Universidade do Futebol – De forma geral, quais os principais obstáculos que você vê hoje em dia para implantar em clubes de futebol trabalhos que tenham uma visão sistêmica e interdisciplinar? Quais as vantagens que você vê na implantação de um trabalho com essas características?
Leandro Zago – A falta de conhecimento sobre o assunto. Afinal, “ninguém sente necessidade daquilo que desconhece”, frase do professor Vítor Frade. Se temos ainda poucos profissionais que se aprofundam nesse tipo de conhecimento, como implementar em um ambiente em que a maioria ainda pensa de maneira fragmentada e não cria relação entre os pequenos detalhes e o produto final? É ruptura de paradigma, e isso demanda tempo e necessidade, principalmente. Sinceramente, não vejo ainda uma necessidade real percebida pelo nosso futebol para essa ruptura. Vejo pessoas, em projetos isolados, buscando contribuir com o desenvolvimento da modalidade. Um trabalho estruturado de maneira sistêmica vai otimizar processos (minimizar o desperdício de energia com ações fora do contexto global), dar maior significado a todas as ações (pela relação entre cada micro decisão e o resultado final) e criar maior envolvimento/compromisso de todos os setores com a produtividade. Assim, cada elemento entenderia seu papel no nível macro do sistema.
Universidade do Futebol – Sabemos que a produção de informação no futebol atual é cada vez maior. Por outro lado, o tempo de treinamento e o espaço entre um jogo e outro são menores a cada temporada. Para você, quais métodos e estratégias podem ser utilizados para lidar com esse paradoxo?
Leandro Zago – Identificar desde o início quais são as informações fundamentais para seu trabalho. Concentrar naquelas que possam gerar intervenção positiva no treinamento e nos jogos e entender que elas variam de acordo com a estrutura conceitual. O papel do analista de desempenho é fundamental nesse processo, para gerar um filtro a partir do que foi definido como importante pela comissão técnica.
Universidade do Futebol – Em que medida a formação de uma equipe de futebol coesa, com uma inteligência de jogo bem desenvolvida e um padrão de jogo definido, depende do comando ou da liderança do treinador?
Leandro Zago – Uma equipe de futebol é produto de todo o ambiente que a envolve, como a estrutura física disponível para treinamentos, alimentação e recuperação, perfil dos atletas, mentalidade de vitória presente no clube, condição econômica, etc. Nesse cenário, o treinador é um elemento muito importante para entender todo o cenário, respeitar a identidade do clube e é claro, implementar o que pensa sobre futebol. Deve ser um potencializador de resultados, aumentando percentualmente o rendimento histórico do clube através da mobilização das pessoas ao seu redor para os objetivos da instituição. O treinador/líder conseguirá essa mobilização através do poder de convencimento que possui, pelas atitudes positivas, agregadoras e tecnicamente efetivas que fazem parte do seu comportamento habitual. A capacidade de emitir comandos naturalmente faz com que sua gestão proporcione menos desgaste pessoal e gaste menos energia. Um treinador que não tem esse perfil baseia seu trabalho em comandos permanentes, aumentando a chance de erros no processo, com informações desconectadas e maior desgaste nas relações pessoais. O comando deve ser uma competência do treinador, não seu único recurso de gestão.
Universidade do Futebol – Você percebe diferenças significativas entre o futebol brasileiro e europeu? Poderia elenca-las, de maneira geral?
Leandro Zago – Sim, e elas estão essencialmente ligadas às diferenças culturais e ao tipo de gestão. Ainda temos no futebol brasileiro predominantemente um mindset fixo, ou seja, muita crença no talento pessoal e pouco valor dado à capacidade de desenvolvimento e aprimoramento pessoal, tendo no esforço para atingir os objetivos um rival do talento. Afinal, dentro dessa lógica, quem se esforça não tem talento e quem tem talento não deve se esforçar para que não se diminua. Já há um grupo de profissionais que parte de um pressuposto diferente, um mindset de crescimento, que busca construir ambientes de desenvolvimento pessoal e técnico e valorizar comportamentos que levem a tal. A questão a partir daí é que, obviamente, esses profissionais trabalham em um sistema em que predomina a outra lógica e, portanto, o desgaste com o ambiente e consequentemente com os atletas acontece mais vezes e raramente é compreendido como parte (necessária) do processo de desenvolvimento dos atletas. E aí entra o problema de gestão com má formação pessoal e técnica, que por não dominar conhecimentos ligados a área de desenvolvimento humano não consegue entender e intervir de maneira adequada nos problemas que surgem, fortalecendo um ciclo que se alimenta dele mesmo e que todos criticam, mas tomam decisões confortáveis, momentâneas, porém ineficazes para a evolução do sistema futebol. O futebol europeu de alto nível atual é baseado em excelência técnica em velocidade elevada. Isso exige processo organizado e tempo, mentalidade adequada, compromisso com o clube, campos bons (desde a formação), por exemplo.
Universidade do Futebol – Na sua avaliação, o que é um jogador de futebol inteligente? E de que maneira os jovens podem ser estimulados a exercer o processo de autonomia e tomada de decisão nas atividades de treino e nos jogos oficiais?
Leandro Zago – Aquele que resolve de maneira efetiva (melhor ação com menos gasto de energia complexa possível) os problemas que o jogo propõe. Com um processo de treino e jogo que durante toda sua formação o exponha a esses problemas e que garanta que sua percepção esteja sempre voltada a solução criativa em níveis de permanente crescimento da elaboração dessas soluções.
Universidade do Futebol – Estamos diante de uma nova geração de treinadores que vem trazendo novos conceitos à construção do jogo. Por outro lado, muitas vezes vemos treinadores com potencial enfrentando dificuldades em sua trajetória profissional. Para você, a que se devem essas dificuldades e o que essa geração de treinadores pode aprender com a geração anterior?
Leandro Zago – Eu penso que os treinadores não devem ser divididos em geração nova e antiga ou tradicionais e modernos, mas em competentes para o cargo que assumem ou não preparados para ele (do ponto de vista complexo, considerando liderança, metodologia, gestão do ambiente, comunicação efetiva, etc.). A grande mudança se dará pela ação de fato, e não pelo discurso. Para se pensar em termos de complexidade, não basta ler um livro do Edgar Morin ou construir exercícios de treino que considerem as várias dimensões do rendimento. A complexidade é um paradigma e de nada adianta ler sobre ela e não praticar em cada ação profissional desde a hora que inicia seu dia até quando ele termina. Conheço ambientes de clubes que foram deteriorados pela “disputa ideológica” entre os “tradicionais” e os “modernos”. Onde está o entendimento sobre complexidade aí? Ou a qualidade dos relacionamentos não interfere nos resultados? Não consigo acreditar nisso e, como acredito que ela faça parte pela confiança que as pessoas têm de que todos estão fazendo o melhor possível, deve ser levada em conta sim e não colocada em segundo plano como resultado de disputas de crenças pessoais e metodológicas. Acredito que todos devem aprender permanentemente e olhar para as experiências utilizando o que possa ser útil em sua realidade, com ajustes, e eliminando circunstâncias com grande probabilidade de insucesso.
Revisão: Guilherme Costa
Universidade do Futebol
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Benê Lima