Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, julho 03, 2013

Punição, educação e futebol

Ainda há os que defendem a implementação de manuais de conduta para disciplinar os jogadores
Alcides Scaglia
Divulgação
"Duas trilhas se separaram numa floresta, e eu - 
Eu escolhi a menos percorrida, 
E esta escolha fez toda a diferença."
 
(Robert Frost)
Em pleno século XXI, é comum no meio futebolístico ainda encontrarmos o velho discurso do controle pela punição. Ainda vejo a proliferação de manuais de condutas sendo redigidos e implementados como forma de disciplinar os jogadores, principalmente os jovens que vivem (ou sobrevivem) nos alojamentos.
Estes manuais de condutas reproduzem o discurso legalista imposto, muito comum nos regimes ditatoriais/militares. Contudo eles são confeccionados com a desculpa de que sem estas leis a ordem não reina e a indisciplina toma conta, impedindo o controle.
Controle está diretamente ligado ao poder. Só com poder se controla.
O poder pode ser adquirido pelo respeito. Temos muitos exemplos na história de líderes que controlam, ou melhor, guiam pessoas por intermédio do respeito adquirido, porém, ao mesmo tempo, temos exemplos de líderes que sem o respeito controlam (literalmente) pela punição.

Por exemplo, péssimos professores para conseguir o controle da classe se valem de instrumentos como a prova e a autonomia em relação à reprovação dos alunos.

Quantos alunos não são ameaçados por professores? Quantas provas sem sentido, apenas para que se descubra o valor do X (sem nunca saber o que representa o X), não são feitas, garantindo a manutenção do poder? Se um aluno colar será punido! Ou mesmo, se um aluno for pego tentando ajudar alguém, passando cola, também receberá o mesmo castigo.

A autoridade e a disciplina são obtidas por coerção e não pela conquista, sedução e respeito ao saber. O professor por não conseguir convencer os alunos sobre importância de aprender uma equação do 2º grau sofre com o descaso. Mas como precisa continuar a dar aula puni duplamente os alunos.

Dupla punição, pois a primeira é sobre o corpo que é obrigado a ficar imóvel, sentado, ordenadamente em fila, vigiado pelos gritos histéricos do professor. A segunda, mais atroz ainda, impossibilita que a imaginação rompa com as barreiras físicas impostas.

As crianças são desencorajadas de pensar por si próprias. Na verdade a escola consegue puni-las, impedindo-as de continuar a brincar de corpo e alma. Confinando-as em salas/celas, com direito a um professor/carcereiro e até recreio/banho de sol se se comportarem, obviamente.
Michel Foucault escreveu um instigante livro intitulado "Vigiar e Punir", que aborda exatamente esta temática, descrevendo a natureza política do poder de punir. Assim, por meio das palavras do professor José Fernandes da Silva, "esse poder se legitima por meio do surgimento e da proliferação de uma série de instituições que referendam o modelo do Panapticon. Diversas instituições arraigadas na modernidade seguem o modelo do Panapticon: a fábrica, a prisão, o hospital, a escola. Essas instituições literalmente seqüestram os indivíduos. A fábrica, as cidades operárias, a escola, o hospital, o quartel, as casas de repouso e os orfanatos vigiam, disciplinam e ordenam a vida do grupo dos indivíduos que lhes são subordinados. O indivíduo é fixado dentro do sistema de produção, construindo sua visão de mundo dentro das normas e saberes constituídos. Opera-se uma inclusão por exclusão".

Todavia, mesmo com as críticas reveladas pelos estudos de Foucault, ou então com as revolucionárias obras literárias como "Admirável mundo novo" de Aldus Huxley, "O senhor das moscas" de Willian Golding, "1984" e a "A revolução dos bichos" de George Orwell, "Walden II: uma sociedade do futuro" de Skinner, entre outras, ainda não modificaram substancialmente a sociedade, a ponto de ela rever seus conceitos e atitudes disciplinares na educação, por exemplo.

Se a educação ainda é uma punição para muito jovens, pois se configura sempre como uma educação para o futuro e não para o presente, isto se potencializa quando o assunto se desloca para o meio futebolístico.

Jovens que sonham em jogar futebol e moram no alojamento dos clubes, na sua maioria reproduzem o estereótipo de que futebol e estudo são como água e óleo. A minoria, infelizmente, mais dócil e mansa, resigna-se com a necessidade de ir à escola, pois esta se perfaz uma alternativa se o insucesso no futebol chegar antes do dinheiro sonhado e prometido.

Ou seja, para controlar estes dois grupos, os mansos desmotivados e os inquietos anárquicos, o modo mais fácil, obviamente, é o de reproduzir o discurso acima. O discurso do vigiar e punir. O manual de conduta que impõe a norma, servindo de instrumento coercitivo e salvação daqueles que não conquistaram o respeito dos jogadores.

Esta reflexão parece injusta, porém é deveras inquietante. Ao mesmo tempo em que também não se configura num xeque mate.

Do mesmo modo em que a crítica foi desenvolvida, alternativas e soluções foram sendo construídas, principalmente por teóricos que estudam a temática da moralidade e seus desdobramentos no meio educacional.

Há caminhos mais difíceis, pois se luta contra uma sociedade de controle, como retrata belos filmes clássicos: "Ao mestre com carinho", ou mesmo o premiado "Sociedade dos poetas mortos", "O sorriso de monalisa", "O clube do imperador", "Escritores da liberdade". Além de instigantes livros como "Quando eu voltar a ser criança" de Janus Korczak, "Poemas pedagógicos" de Makarenko, entre outros.

Mais do que estes filmes e livros, temos teóricos como Jean Piaget que procurou abordar o tema moralidade pelo viés da psicologia da aprendizagem, destacando em seu clássico livro "O juízo moral na criança", temas como os relativos às sanções.

Nesta obra, destinada ao entendimento de como se dá o desenvolvimento da moral nas crianças, Piaget destaca, entre outros pontos cruciais, as sanções por expiação e a por reciprocidade.

As sanções por expiação, segundo o professor Yves De La Taille, acontecem quando o castigo não mantém relação com o delito, por exemplo, privar de sobremesa quem mentiu.

Já as sanções por reciprocidade primam exatamente por estabelecer uma relação entre o castigo e as sua causa, desse modo uma criança que quebre um vaso não vai para o quarto ficar de castigo, mas sim deve se responsabilizar por limpar a sujeira e, ainda por cima, tentar reparar o erro consertando o vaso e/ou salvando a planta.

Sempre quando falo em sanção por reciprocidade, nunca me esqueço de uma história que vive nos anos em que trabalhei diretamente com educação, em uma escola regida pelos princípios de Celestian Freinet.

Um aluno no auge de sua adolescência, depois de ter sido reprovado e expulso de outras escolas mais tradicionais, acabou se matriculando em nossa escola. Mas logo nas primeiras aulas de Educação Física, quando eu abordava um tema na sala de aula, este aluno pegou pó de giz e, sem quase ninguém ver, começou a colocar pó de giz no aquário das crianças do infantil, que dividiam a sala conosco no período da tarde.

No outro dia a sala do infantil estava em luto, pois seus peixes que até tinham nome boiavam no aquário.

Não se precisou de muita investigação para descobrir quem fez tamanha atrocidade.

Mas o interessante foi o desfecho que demos ao caso. Se o adolescente estivesse numa escola tradicional seria sumariamente expulso pelo genocídio, porém sua sanção foi ter de passar uma semana como monitor da professora, exatamente na sala do infantil.

Não é difícil imaginar o que este adolescente passou ao ter que, na roda de conversa, se explicar. Responder perguntas de crianças do tipo: "Mas o que os peixes fizeram para você? Por que você fez isto com a Cléo?".

As crianças foram verdadeiras, e despejaram todas as perguntas necessárias, porém depois de expurgar suas respectivas indignações, começaram o processo de convivência com o adolescente assassino de peixes. E foi ai que se operou a aprendizagem, pois o adolescente começou a se sentiu responsável pelas crianças e estas passaram a gostar do seu jeito brincalhão.

Para encurtar a história, a sanção que deveria durar uma semana, transformou-se em um ano, e o ex-aluno problema foi seduzido pelo conhecimento, a ponto de estar pensando seriamente em fazer o curso de pedagogia.

Ser seduzido pela aprendizagem, este é um diferencial impar em nossa sociedade. Já, seduzir outros se configura em nosso maior compromisso social.

Conseguir fazer com que jovens - em especial jogadores de futebol em processo de formação que vivem em alojamentos -, compreendam que ir à escola para aprender conteúdos significativos possibilita que melhorem como jogadores dentro do campo de futebol, se perfaz no maior desafio interdisciplinar de um projeto qualquer que se arvore ser diferente.

Robert Frost, o grande poeta americano do século XX, diz em um de seus poemas: "Duas trilhas se separaram numa floresta. Eu escolhi a menos percorrida. E esta escolha fez toda a diferença".

A punição expiatória, o controle coercitivo, o poder mantido apenas pelo autoritarismo, os manuais de condutas... todos se configuram caminhos largos e muito explorados pela nossa sociedade. Tão explorados que podemos facilmente perceber suas consequências e prever seus acontecimentos.
Mas, as gestões participativas, os comitês disciplinares democráticos e representativos, as sanções por reciprocidade, os amantes da liberdade intelectual, os desejosos de uma educação emancipatória, libertária e revolucionária (quer seja no futebol, ou na sociedade como um todo), somente podem encontrar sucesso e se refestelar com os júbilos do prazer orgástico, se trilhar o caminho menos explorado. 

Ser inovador, quebrar paradigmas, principalmente no futebol e na educação, é tarefa homérica, talvez maior que os doze trabalhos de Hércules. Exige pessoas corajosas, destemidas e convictas em seus pensamentos. Ou seja, necessita de pessoas que queiram fazer história e não viver a história contada pelos controladores sociais.
Tags: pedagogia do treinamento , Filosofia , sociologia , educaçao física , Formaçao de atletas

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Benê Lima