Ana Pérez, da Revista Quo
Capacidades como inteligência executiva, controle das emoções e habilidade mental são virtudes dos futebolistas. A ciência mostra que o esporte mais popular do Brasil (e do mundo) não é para 'tontos'
Há alguns meses, um fabricante de lubrificantes de automóvel levou Cristiano Ronaldo a um centro de alto rendimento em Madrid para detectar quais são as armas que o fazem tão especial.
Além de suas capacidades físicas evidentes, também analisaram suas habilidades mentais. Puseram-no um óculos de rastreamento porque pretendiam registrar aonde o atacante português fixa sua atenção quando joga.
O resultado foi impressionante. Seu olhar fazia movimentos precisos desde a bola à cintura do adversário, antecipando-se sempre ao movimento que o marcador iria fazer. Segundo a psicóloga do esporte Zoe Wimhurst, "se perguntarem a ele, não saberá dizer aonde estava olhando, porque tudo está em seu consciente. Ele sabe aonde recorrer à informação que necessita para obter os melhores resultados".
Muitas horas de treinamento e milhares de partidas jogadas o ensinaram, inconscientemente, como qualquer um de nós é capaz de chegar ao trabalho dirigindo sem pensar em qual marcha estamos colocando. Na década de 1970, o neurólogo Benjamin Libet revolucionou a neurociência ao revelar que nosso cérebro toma decisões antes que sejamos conscientes delas. "Trata-se de um mecanismo de supervivência que desenvolvemos depois de anos de competência por sobreviver e reproduzir-nos em um ambiente hostil", diz Manuel Martín-Loeches, neurocientífico do Instituto Carlos III de Madrid.
E o corpo?
Experts em ciências dos esportes, entre eles, o pesquisador do Instituto de Biomecânica de Valência, Luis Garcés, analisaram Cristiano Ronaldo por alguns meses para descobrir o que faz dele um jogador excepcional. Para fazer isso, ele foi submetido a testes de força corporal, capacidade mental e de controle motor.
Como características antroprométricas: "Ele tem as melhores condições que poderia ter um atleta para correr, saltar e chutar a bola". Um dos segredos do seu êxito é a diferença do volume entre a coxa e a panturrilha, que se traduz em uma grande hipertrofia de seus quadríceps em relação à panturrilha. "O ideal para um futebolista é ter uma boa musculatura ao redor da zona pélvica: abdômen, coxas e glúteos", assegura Garcés.
Depois de analisar seu chute livre e seu knuckleball, comprovaram o segredo do seu sucesso. Trata-se do efeito chicote que produz a força combinada de seu abdômen e coxa, que se incrementa com o menor peso relativo da panturrilha. E tudo isto, a uns 100 km/h.
A Nasa FC (alegoria)
O mundo do futebol há propiciado o desenvolvimento de tecnologias que depois têm sido generalizadas para os mortais comuns. Isso acontece em medicina com a artroscopia, que começou a ser utilizada em desportistas de elite e também em estudos biométricos que se fazem para criar chuteiras e roupas desportivas que evitam lesões em campos de futebol.
Também há tecnologias, como a holografia em 3D, para ver partidas à distância e para a detecção de gol, virão em um futuro próximo. Além disso, treinadores, como Rafa Benítez, tem tornado seus conhecimentos de estratégia em uma aplicação para todos os públicos.
Mais inteligentes
De fato, segundo o próprio Martín-Loeches, os jogadores de futebol profissional atual não são nada mais do que o maior exemplo do caçador e guerreiro com cérebro altamente preparado desde que se tornou no Homo sapiens moderno. "Uma partida de futebol atual é o equivalente a um campo de batalha primitivo ou de caça em grupo de um antílope da Savana, porque é normal que os jogadores demonstrem ter algumas capacidades físicas e mentais muito superiores para a atuação rápida e coordenada em um espaço amplo que contém amigos, inimigos e objetivos que precisam ser alcançados", aponta Martín-Loeches.
Isto é demonstrado em um estudo realizado por pesquisadores do Instituto Karolinska de Estocolmo e publicado na revista Plos One em abril, que conclui: "Os futebolistas profissionais têm mais capacidades cognitivas que a média da população. E estas [capacidades] são maiores quanto maior for a categoria em que o atleta jogar".
Seus autores estudaram as funções vinculadas com o pensamento e raciocínio abstrato de 83 jogadores de distintas categorias da liga sueca de futebol. Entre as coisas que foram analisadas, destacam-se a antecipação visual, o reconhecimento de padrões, o cálculo de probabilidades em uma situação, a criatividade e a tomada de decisões estratégicas. Em todas estas habilidades, os futebolistas obtiveram melhores resultados que o registrado pelos mortais, sobretudo se sobressaíram na função cerebral executiva, ou seja, aquela que implica em uma boa capacidade mental para solucionar problemas imediatos de forma criativa e levar a cabo várias tarefas de uma vez, assim como a memória precisa para recordar informação armazenada no passado e aplicá-la no presente.
De fato, segundo André Roca, pesquisador do Research Institute for Sport and Exercise Sciences da Universidade John Moores, em Liverpool: "Estas habilidades de inteligência de jogo são as que dão ao futebolista uma vantagem para adivinhar os movimentos do adversário e antecipar-se ao jogo. E também são a chave que diferencia um bom jogador de um craque. É o caso de Messi, por exemplo, que tem uma capacidade extraordinária para adivinhar qual é a melhor decisão, graças a sua grande capacidade para ler o jogo e concentrar-se somente na informação relevante".
No entanto, estas capacidades, são inatas ou são adquiridas com o decorrer do tempo? Para saber, Roca avaliou estas habilidades, as relativas à antecipação e à tomada de decisões em jogadores de futebol com diferentes níveis de treinamento durante sua infância e adolescência. O resultado?
"Nossa conclusão é que o treinamento intensivo, como é o dos jovens que jogam futebol na rua diariamente entre 6 e 12 anos, é a chave para desenvolver este tipo de inteligência para o jogo em um futuro", afirma Roca.
A biografia de alguns dos melhores jogadores do mundo, como o próprio Messi, Pelé e Cristiano Ronaldo, demonstra que isto é assim. Por outro lado, nos últimos tempos, os neurocientíficos têm concluído que muitas das decisões que tomamos de forma inconsciente são oriundas das emoções. "O sistema cerebral que as processa reage rapidamente ante os estímulos muito antes do que somos conscientes deles. A sensação emocional resultante nos colocaria imediatamente em posição para atuar: fugir ou atacar", finaliza Martín-Loeches.
Frequentemente, quando falamos de emoções, pensa-se que se trata de algo impulsivo que não requer conhecimentos nem lógica. Mas não é assim. As emoções também podem ser educadas e treinadas. E aqui é onde os psicólogos esportivos, cada vez com mais presença no futebol profissional, têm muito que contribuir.
Jogadores no divã
Patricia Ramírez, psicóloga desportiva do Betis (da Espanha), explica isso muito bem: "Nosso trabalho consiste em controlar as variáveis psicológicas que afetam o rendimento desportivo. A concentração, a atenção, a tomada de decisões, o estilo cognitivo, o manejo da sorte, a atribuição da responsabilidade, manejar a ansiedade competitiva, etc. Tudo isso pode incrementar ou diminuir a eficácia dentro de campo. Ter estas variáveis sob controle é tão importante quanto estar bem alimentado e fisicamente treinado".
No caso do Betis, sua intervenção foi especialmente apontada como um dos segredos da boa temporada que fizeram para conseguir de novo o acesso à Primeira Divisão. De fato, seu rosto tornou-se popular entre os aficionados por futebol porque os jogadores se dedicaram muito nesta temporada.
Uma das situações em que parece mais difícil manter a concentração é quando uma equipe tem pela frente uma partida decisiva, como o que teve a seleção espanhola na última Eurocopa. Para estes momentos, Ramírez recomenda que se aprenda a manejar a pressão: "Necessitamos saber controlar os níveis de ativação, tanto por excesso como por omissão. Cada jogador tem um nível de atividade em que é eficaz. Existem técnicas para incrementar a ativação (autoinstruções, dinâmicas de grupo, a mesma música em volume alto, visualização, etc) e outras que diminuem e controlam os níveis de ansiedade, como a respiração, o relaxamento e a maneira como falamos de nós mesmos".
Quanto ao eterno debate sobre a inteligência de um futebolista de elite, Ramírez aponta: "É pouco correto assegurar que os jogadores de futebol são pouco inteligentes porque não têm estudos acadêmicos. Há uma inteligência para as matemáticas e outra relacionada com o talento para o esporte. Os futebolistas a manifestam no modo como se antecipam ou como entendem as regras do jogo. Para jogar a certos níveis, há que se ter um talento sobrenatural, treiná-lo de forma profissional e ter a cabeça muito bem centrada para ser capaz de se atingir o máximo rendimento e entender o que o grupo e o treinador esperam de você".
Rafa Benítez, treinador com muitos títulos em sua carreira, incluindo a Liga dos Campeões com o Liverpool, assegura: “Para ser um jogador de elite há que contar com uma personalidade suficiente para desenvolver-se em situações diferentes, estressantes e muitas vezes difíceis de controlar. Quanto melhor se adaptar a todas essas circunstâncias, mais tempo pode permanecer em uma grande equipe de elite”.
Se perguntar a qualquer um de nós (eu verifiquei), quais são os jogadores mais inteligentes que conhecemos, asseguro que coincidiríamos em citar quem joga no meio de campo, como os Xavis (Alonso e Hernández) levariam o 'troféu'. Por que?
"Isto acontece porque eles são responsáveis por analisar o que se passa no jogo e encontrar soluções aos problemas em uma zona com muitos adversários e muito pouco espaço. Eles têm atletas da equipe rival a seu redor e que não sabem o que irá acontecer, qual será a sequência seguinte. Por isso, os bons são os que têm a capacidade de acertar a tomada de decisão rapidamente, de forma decidida, e isso, logicamente, não está ao alcance de qualquer futebolista. Por isso, alguns são considerados mais valiosos em tipos específicos de missões; embora todos sejam muito importantes, pois trata-se de um jogo coletivo", afirma Benítez.
Todos por um
Antes da final da Liga Europa, o jornal espanhol "Marca" entrevistou o jogador que havia sido uma das revelações do torneio, o brasileiro Diego Ribas, que afirmou: "Quando o resultado coletivo é bom, os jogadores têm um grande rendimento individual. E foi isso que aconteceu comigo".
Efetivamente, o futebol não é somente a soma de bons jogadores. É na equipe que se reside a inteligência definitiva, o coletivo. É justamente o treinador que se faz às vezes de um diretor de orquestra. Vicente del Bosque, na seleção espanhola, Josep Guardiola e suas últimas temporadas no Barcelona, José Mourinho e seus êxitos dentro e fora de Madrid e, a excelente temporada de Marcelo Bielsa no Athletic Bilbao, são alguns dos exemplos de técnicos com excelentes resultados e formas distintas de fazer as coisas.
De acordo com o neurocientífico Antonio Damasio, no documentário Futebol, inteligência coletiva: "Cada jogador deve ter uma ideia de como funciona o conjunto, e um bom treinador deverá saber transmitir esta ideia geral para que o jogador saiba aonde ele se encaixa, qual é a sua contribuição e que relação se tem com aqueles que interagem".
Para Damasio, encaixar o mecanismo geral é muito importante para poder compartilhar também as emoções coletivas das que, segundo este neurólogo, nasce a criatividade em uma equipe. É só observar a harmonia e a beleza do jogo da seleção da Espanha para saber o que é isto. Esperamos poder disfrutar muito tempo dela.
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Sinopse
"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."
CALOUROS DO AR FC
quinta-feira, dezembro 20, 2012
O cérebro do futebol
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Benê Lima