A gigante não adormeceu, mas o foco da garra apresentada em campo, durante mais de uma década e meia de profissionalismo no futebol feminino, é outro. Aline Pellegrino, a Aline, capitã da geração de mulheres que conquistou a medalha de prata nas Olimpíadas de 2004, foi vice-campeã do mundo e levantou o troféu dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007, “desistiu” do mundo da bola.
Aos 31 anos, a zagueira abandou o futebol e passou a investir no ramo imobiliário. Corretora, a ainda jovem, que é formada em Educação Física, entende que atingiu o limite de seu desempenho como atleta, e os oito anos a serviço do país em diversos torneios oficiais não tiveram a devida retribuição.
“Talento e recurso humano o Brasil sempre teve e vai ter. Costumo me deparar com meninas de 13, 14 anos, com grande potencial técnico. Mas isso não quer dizer que elas vão vingar como futebolistas profissionais, seguindo um padrão de treinamento”, avalia Aline, que foi coordenadora técnica do Vitória de Santo Antão antes de migrar para outra esfera de trabalho.
“Todo esse ‘bom material’, jovem e talentoso, vai ser colocado em um funil. Tenta-se fazer uma renovação desde 2005 da seleção feminina principal, e os resultados não são bons”, completa a ex-defensora.
Aline admite nunca ter sido a mais talentosa das jogadoras de sua época, mas acredita que outras qualidades, como comprometimento, liderança e espírito de grupo a fizeram permanecer por bastante tempo na elite, com a oportunidade de conviver com treinadores como Zé Duarte, Marcello Frigerio e René Simões.
“É difícil para o brasileiro, que se acha o melhor do mundo neste esporte, realizar um intercâmbio e aprender algo novo. Entramos num ciclo vicioso: você cria atletas, treinadores, preparadores físicos, diretores, etc., que sempre reproduzem algo por reproduzir. E a tendência de formar novos profissionais com uma visão mais moderna é baixa”, compreende Aline.
Nesta entrevista à Universidade do Futebol, a atleta que teve uma experiência no futebol russo lamenta a falta de uma filosofia e uma metodologia claras de treinamento em sua terra natal, o desleixo do sistema acerca do futebol feminino e alimenta um fio de esperança com o Bom Senso F.C:
“Vejo que é uma ideia que eu tentei trazer à tona ao futebol feminino há alguns anos. Desejo boa sorte. No Brasil é complicado colocar a mão na “caixa de abelha”. Apenas espero que se tenha ‘bom senso’ de lembrar das mulheres. Eu, particularmente, não tenho mais como lutar por isso”.
Universidade do Futebol – Você iniciou sua carreira aos 15 anos. O quanto o futebol de rua, o futsal e o futebol de areia contribuíram para a sua formação profissional?
Aline Pellegrino – Tudo isso fez parte da minha história de criança. Sempre fui muito ativa, gostei de correr, brincar. Minha relação com as brincadeiras de rua foi o diferencial para eu me tornar atleta. Costumo dizer que poderia ter praticado qualquer outro esporte.
Fui formada na parte da questão motora, da coordenação, do conseguir executar bem os movimentos, muito por causa de jogar bola na rua, no asfalto, na grama, em todos os lugares.
Antes de me formar aos 15 anos, o meu repertório já era vasto e certamente a experiência de rua foi decisiva para eu me tornar atleta profissional.
“Minha relação com as brincadeiras de rua foi o diferencial para eu me tornar atleta”, diz Aline, capitão da seleção brasileira de futebol feminino
Universidade do Futebol – Que tipos de barreiras existem ainda no futebol feminino para chegarmos a um patamar minimamente ideal?
Aline Pellegrino – Talento e recurso humano o Brasil sempre teve e vai ter. Costumo me deparar com meninas de 13, 14 anos, com grande potencial técnico. Mas isso não quer dizer que elas vão vingar como futebolistas profissionais, seguindo um padrão de treinamento.
Eu mesma nunca fui a mais talentosa de todas, mas tinha outras qualidades que fizeram com que eu permanecesse em grupos de seleção brasileira.
Quando você pega esse talento e bota para fazer um treino, o que era a coisa mais legal do mundo, se torna algo chato. Aconteceu comigo quando fiz a transição ao time do São Paulo em 1997, com o professor Zé Duarte. Todas as meninas da seleção brasileira estavam ali.
Eu tive de passar a seguir coisas com as quais não estava acostumada. Nunca havia sido preparada para aquele ambiente. E é um problema que temos. Todo esse “bom material”, jovem e talentoso, vai ser colocado em um funil.
Tenta-se fazer uma renovação desde 2005 da seleção feminina principal, e os resultados não são bons.
https://www.youtube.com/watch?v=XtnNnKhHpgw
Websérie “Esporte como Direito” – Episódio#04 Questão do Gênero no Futebol
Websérie “Esporte como Direito” – Episódio#04 Questão do Gênero no Futebol
Universidade do Futebol – Você acredita que a formação de novos jogadores e jogadoras está condicionada à melhora na formação de bons treinadores?
Aline Pellegrino – Eu acredito que sim. Futebol no Brasil ainda é repetição, reproduzir aquilo que alguém fez por algum motivo lá atrás, e ainda não quebramos esse paradigma.
E é difícil para o brasileiro, que se acha o melhor do mundo neste esporte, realizar um intercâmbio e aprender algo novo.
Entramos num ciclo vicioso: você cria atletas, treinadores, preparadores físicos, diretores, etc., que sempre reproduzem algo por reproduzir. Mais do que 50% do que acontece está dentro daquele modo tradicional. E a tendência de formar novos profissionais com uma visão mais moderna é baixa.
Morei fora do país, tive bons treinadores aqui, mas não é o suficiente. Os times sofrem porque não têm “um cara” ou “uma cara” para resolver. Por isso que é preciso pensar coletivamente, ter uma filosofia e uma metodologia claras de treinamento.
No exemplo do futebol masculino, tinha um Neymar na seleção brasileira para ser decisivo na Copa das Confederações. Mas as coisas nem sempre funcionam desta maneira.
Universidade do Futebol – Você disse que não era a mais talentosa da sua geração. Que valores você conseguiu agregar à sua formação para superar essa “limitação técnica”?
Aline Pellegrino – Eu ser a melhor entre os meninos, a melhor da rua, me motivou a ir procurar uma equipe profissional. Mas na transição, vi que não era a melhor entre todas as que estavam ali.
Cheguei nos treinamentos, aos 15 anos, e coloquei na minha cabeça que mesmo sendo a última nas atividades, me doaria ao máximo. Se era para fazer 10 repetições, fazia as 10, e não nove e meia. Se era para dar um pique até o cone, ia até o fim, e não parava no meio do caminho. Esse espírito certamente foi positivo para eu chegar tão longe.
“Na transição, vi que não era a melhor entre todas as que estavam ali”, revela Aline, que sempre buscou se doar ao máximo
Universidade do Futebol – Destaque as características do melhor treinador com o qual você trabalhou e indique quais são, para você, as valências que um grande profissional de futebol moderno precisa ter para alcançar o sucesso.
Aline Pellegrino – Eu tive vários treinadores. Claro que nunca se vai se ter o modelo ideal. Mesmo o Guardiola deve ter pontos em que ele não seja bom.
No meu caso, sem dúvida alguma, o que mais me agregou características positivas foi o René Simões. O Marcelo Ruggeri, hoje no XV de Piracicaba, foi outro que teve uma participação importante.
O bom gestor de um grupo, hoje, deve ter a capacidade de leitura do perfil dos seus atletas para, aí sim, definir um Modelo de Jogo e aplicar suas ideias. Dentro disso, ele deve fazer com que os jogadores compreendam o que deve ser feito, e não simplesmente reproduzido.
Nós, em campo, não precisamos efetivamente saber o que é uma transição defensiva de maneira conceitual. O bom treinador é aquele que de alguma maneira consegue fazer com o que o atleta entenda aquilo que ele, atleta, já faz bem.
Universidade do Futebol – O que é um atleta de futebol inteligente?
Aline Pellegrino – Eu acho que o atleta inteligente é aquele que escuta muito, fala pouco e tem ciência de suas dificuldades. Aquele que procura fazer o que o comandante está instruindo. Aquele que não necessariamente sabe fazer o gol, mas que tem uma leitura aprimorada de todas as situações do jogo, que consegue pensar na frente e antever o cenário.
Universidade do Futebol – Como você avaliava o seu desempenho depois dos jogos?
Aline Pellegrino – Isso foi algo que quando comecei partiu do meu pai, com 13, 14 anos. Nesta idade, eu sempre achava que era o outro que errava. Tive esses dificuldades no início da carreira, e a partir do momento que passei a ter uma auto-crítica maior, evoluí. Não ficava procurando defeitos no campo, na chuteira, jogando a responsabilidade ao outro.
Em contrapartida, acabava me cobrando além do que eu deveria, o que, acredito, acabou me prejudicando um pouco.
Universidade do Futebol – Esse aspecto de liderança, uma marca sua, era algo inato ou que foi construído ao longo do tempo com o auxílio dos profissionais que trabalharam com você?
Aline Pellegrino – Acho que é algo natural. Muitos têm, e muitas vezes não têm espaço e acabam sendo minados. A Carol Arruda, no Vitória, sempre foi uma grande líder, mas quando trabalhei com ela, percebi que estava adormecida essa característica. Muitos lideres não florescem por conta de uma série de fatores, mas acho que é algo inato.
Claro que a forma como o meio te proporciona pode potencializar ou retardar esse processo. Em determinados momentos, preferi me manter calada e mais observadora. Feliz é aquele que tem a leitura para não se expor nem a mais nem a menos do que o necessário.
No elenco das Sereias da Vila, Aline ergueu as taças do bicampeonato da Copa Libertadores e da Copa do Brasil, entre outros títulos.
Universidade do Futebol – Conte um pouco mais sobre o seu processo de aposentadoria dos gramados. Foi algo pensado, teve suporte familiar, profissional?
Aline Pellegrino – Eu quero parar de jogar desde os 15 anos, quando comecei. Não há patrocínio, apoio, então foi algo normal. Sempre fui muito auto-crítica. Apesar de falar muito, observava bastante. E percebi que ia me expor muito mais a partir do ano passado se eu seguisse atuando.
Era o momento em que a modalidade em vez de estar evoluindo – e posso estar errada –, mas apesar das conquistas, como modalidade, dentro do Brasil, dentro do Estado, o futebol feminino regrediu. Pra que me expor?
Não valorizamos muito os nossos atletas, e o exemplo dos meninos no futebol está aí. Imagina no feminino. Se eu mesma não valorizar tudo o que eu conquistei, quem vai?
Queria terminar, por tudo que eu fiz, de um jeito positivo. Quando voltei da Rússia, das Olimpíadas, me deparei com meninas de 19 anos “roubando” nos treinos. Não realizando todas as sessões, em vez de três séries de dez, não conseguiam fazer duas de cinco. E eu não tinha a vontade mais de cobrá-las, etc.
Amadureci a ideia de parar de jogar. Atuei na Copa do Brasil neste ano, mas por outros motivos, e há oito meses parei de jogar de um modo bom, natural, sem dramas.
Eu me formei em 2004 em Educação Física, antes de começar a ir para a seleção, mas não pretendo seguir nesta área.
Logo que me aposentei, fui convidada para ser coordenadora técnica do Vitória de Santo Antão, e aquilo com que eu me deparava na reta final de carreira como atleta, novamente vi do lado de fora.
O futebol feminino é um ciclo vicioso, um beco sem saída, você entra por uma porta e sai pela mesma. Abri os olhos, compreendi que tinha feito a minha parte, e decidi seguir outro rumo.
Não quero mais trabalhar com o futebol e virei corretora de móveis. Dou aula de futebol em uma escolinha, mas algo bem light, longe do alto rendimento, para atender o pedido de um amigo que segue na luta em prol da modalidade. Assumi essas aulas matutinas, mas com um envolvimento bem menor.
Universidade do Futebol – Recentemente, alguns jogadores do futebol masculino lançaram o Bom Senso F.C., um movimento que reivindica algumas mudanças na estrutura da modalidade. O que você pensa sobre isso?
Aline Pellegrino – Vejo que é uma ideia que eu tentei trazer à tona ao futebol feminino há alguns anos. Desejo boa sorte. Eles têm voz para isso, estão fazendo barulho, sei que no Brasil é complicado colocar a mão na “caixa de abelha”, há um sistema difícil de ingressar, mas torço. Apenas espero que se tenha “bom senso” de lembrar das mulheres. Eu, particularmente, não tenho mais como lutar por isso.
Sempre achei que Aline Pellegrino poderia e deveria dar contribuição maior ao futebol. E ela assim o fez e faz. Depois de fazê-lo como atleta, agora como gestora.
Aline esteve presente conosco em Fortaleza em 2009, num grande evento que aqui fizemos, o I Seminário da modalidade realizado no Estado do Ceará, no Teatro da Faculdade Marista, com 300 lugares, dos quais 176 ocupados no primeiro dia.
Ela deixou uma mensagem excepcional para as meninas – além do exemplo de presteza e simpatia – de que sonho e realidade podem e devem conviver harmonicamente como ideal a ser perseguido, através de uma combinação de ambos. Evidentemente que isso passa pelo estímulo à preparação das meninas não só para a obtenção do sonho quando possível, bem como para as suas preparações para a realidade fora do futebol.
Aline, como nós, dá contribuição ao futebol feminino como gestora, exercendo de há pouco cargo congênere ao que desempenhamos há alguns anos na Federação Cearense de Futebol, ela na Paulista. Torço muito pelo sucesso dela, já que conhecimento e competência não lhe faltam.
Teríamos até algumas ideias a trocar, visto que o futebol feminino no Estado do Ceará tem dado passos largos rumo a novos e melhores tempos.
Saudações,
Benê Lima.