Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

domingo, setembro 13, 2009

A família dos jogos de bola com os pés: bases teóricas
Compreendê-las é parte intrínseca da conscientização sobre o processo organizacional sistêmico dos jogos
Alcides Scaglia

“Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar ao seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas.”
Carlos Drummond de Andrade

Ao propor a idéia da família dos jogos de bola com os pés, aproximo-me do conceito de ecossistema, buscando encontrar nesse o respaldo para minhas colocações, pois um ecossistema integra os seres vivos – organismos - e os ambientes em que vivem, com suas características peculiares, mais as inter-relações que acontecem intra e entre todos os elementos envolvidos no sistema, gerando constantes modificações e superações, em meio à busca constante do equilíbrio, decorrentes de um ambiente instável.

Numa perspectiva ecológica, o ecossistema inclui a totalidade de interações e relações entre os seres vivos e não vivos, em todos os níveis, especialmente a rede de estruturas que vão constituindo uma teia interligada e interdependente influenciada pelo ambiente como um todo.

Segundo Fritjof Capra, em seu livro clássico O ponto de mutação, “a grande maioria dos organismos estão não só inseridos em ecossistemas, mas são eles próprios ecossistemas complexos, contendo uma infinidade de organismos menores que possuem considerável autonomia e, no entanto, integram-se harmoniosamente no funcionamento do todo.”

Nos ecossistemas, acontece de um organismo - parte do todo - interferir no ambiente ao mesmo tempo em que tem suas ações cerceadas ou delineadas pelo próprio ambiente que modifica. Ou seja, em meio às inter-relações entre os organismos – partes - do sistema é desencadeado um potencial processo gerador (criador) de profícuas e necessárias mudanças no sistema como um todo, evidenciando as qualidades emergenciais.

Como sugere Edgar Morin, em “Inteligência e Complexidade”, emergência se refere ao produto gerado pela organização (das partes) no interior de um sistema (todo). Em suas palavras, “do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências.”

Assim, Edgar Morin, em sua obra O Método II, contribui com o estabelecimento do conceito de ecossistema, dizendo que “... as interações entre seres vivos, conjugando-se com as restrições e as possibilidades fornecidas pelo biótopo físico (e retroagindo sobre este), organizam precisamente o meio em sistema. Assim, o meio pára de representar uma unidade apenas territorial para tornar-se uma realidade organizadora – o ecossistema – que comporta a ordem geofísica e a desordem da ‘selva’.”

Ao me valer do conceito de ecossistema para justificar a metáfora da família quero destacar, além de suas características holomônicas (como num holograma, o todo está codificado em cada parte), suas respectivas capacidades auto-reprodutoras e auto-organizadoras, que, por sua vez, necessitam levar em consideração certo grau de dependência em relação ao ambiente.

Destarte, a eco-dimensão organizacional de um sistema considera que suas partes vivem o paradoxo da independência (autonomia) e da dependência (heteronomia), permeada por relativa liberdade. Essa dialógica relação levou Morin, ao pensar no ser vivo, à auto-eco-organização, em que nas palavras do autor: “... o ecossistema está no interior do ser vivo que está no interior de seu ecossistema; o ser vivo é ao mesmo tempo produto e produtor, meio e fim, operador e operado da organização viva. (...) É preciso, portanto, chegar a idéia complexa, contraria sunt complementa: duas proposições contrárias podem também ser complementares.”

Assim, a partir de sua tendência auto-afirmativa, um sistema sobrevive em decorrência de constantes processos de organização, engendrando reações em cadeia, ao passo que suas modificações internas acabam por exigir ajustes nos demais sistemas vizinhos e, por conseguinte, em todo o ecossistema, confirmando, novamente, sua tendência integrativa.

Dessa forma, é preciso re-dimensionar o conceito de autonomia, que acaba cerceado por certa dependência de outros fatores para se manter presente num ecossistema, evidenciando a complementaridade entre os vários contrários que se juntam.

O interessante é o fato de que dessa relação dialógica se produz emergências que nunca existiriam apenas nas partes. Sendo assim, a partir dos pensamentos complexos de Edgar Morin, o todo é maior que a soma das partes, todavia, também, esse todo é menor do que a soma das partes, “porque as partes podem ter qualidades inibidas pela organização do conjunto”.

Essas complexas relações que acabam por demonstrar as características integrativas e auto-afirmativas das partes de um sistema irão me auxiliar a pensar a organização das estruturas padrões da família dos jogos de bola com os pés.

A família dos jogos de bola com os pés reúne todos os jogos realizados com a bola nos pés, tanto os já existentes, quanto os que a cada segundo são criados.

E quando me refiro ao termo “jogo” para caracterizar tal família incluo nele todas as suas manifestações, quer as por mim classificadas como emancipadas – jogos/esportes com bola nos pés -, quer as que ainda conservam evidentes características de jogos/brincadeiras que usam os pés para impulsionar uma bola qualquer.

Em outras palavras, quero voltar a afirmar que o futebol, o futsal, o beach soccer, o futevôlei, o futebol irlandês, o futebol australiano, o rúgbi, o futebol americano, enfim, coabitam a mesma família, com a rebatida, o gol caixote, a pelada, o três dentro três fora, o 1 toque, o toquinho mineiro, o bobinho, o tira-tira, o cada um por si, o centro-avante, o lixa, o gol de cabeça, o gol dentro da área, os campeonatos de embaixadas, as disputas de pênalti a brinca, o canelobol...

A partir dessa visão ecológica, a família dos jogos de bola com os pés é análoga a todos os ecossistemas existentes. Ou seja, ela se mantém a partir de interações estabelecidas entre suas estruturas (em todos os níveis), e dessas com o meio ambiente físico e social, preestabelecendo uma coexistência, intermediada pela motricidade humana, entendida, a partir dos estudos de João Batista Freire, no denso livro De corpo e alma: o discurso da motricidade, como o movimento intencional humano, carregado de sentido e significado, que se expressa pelo jogo.

Mas meu objetivo não se refere ao fato de separar as partes do todo, nem encontrar no todo as partes, mas sim, como escrevi em textos anteriores, “conjugá-las, utilizando as idéias complexas relativas à dimensão organizacional dessa família, para entender as incertezas advindas do jogo, comungando com seu processo sistêmico organizacional em ambiente de jogo. Desse modo, ao reunir todos os jogos de bola com os pés numa mesma família, prescrevo a intenção de reuni-los e ao mesmo tempo distingui-los”.

Portanto, compreender as bases teóricas da “família dos jogos de bola com os pés” torna-se fundamental para entender como se dá o processo organizacional sistêmico dos jogos e, ao mesmo tempo, justificar a metodologia de ensino e treinamento do futebol pautada na pedagogia do jogo (inspirada na pedagogia da rua, concebida nos estudos do professor João Batista Freire).

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Benê Lima