Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

domingo, setembro 13, 2009

O avesso da esperança
Cristiano Ronaldo e os sentidos da vida
José Antunes de Sousa
Madrid é conhecida por ser a cidade de La Movida, do frêmito noturno – é uma cidade excessiva. Talvez por lhe faltarem os favores naturais de Netuno, o bafejo da acariciante brisa provinda do oceano, as suas gentes como que quiseram vingar essa partida de mau gosto que a natureza lhes pregou de lhes dar apenas um riacho meio seco para iludirem a homérica nostalgia dos mares que todos transportamos.

Esse sequio que a geografia lhes impôs, não fosse provocar-lhes a secura da alma e sobretudo do sangue, foi, a partir dos anos oitenta do século passado, inundado por um infatigável e magnético clima de festa e de glamour que envolve o viver madrileno de um secreto sentimento transgressivo.

Porém, mesmo sabendo dessa tendência compensatória para o excesso, qualquer incauto transeunte acharia estranho tanto alvoroço e reboliço numa anódina segunda-feira de julho – não se conseguia romper com tanta gente no paseo La Castellana. Gente que, aos magotes, se dirige, afinal, para o local onde desaguam todos os seus sonhos de uma ínvia grandeza: o estádio Santiago Barnabéu.

Fato intrigante, porém: não era nem um jogo de futebol nem sequer um concerto da Madona o que ali iria ocorrer. Aí o estranho, justamente – nada de importante aparentemente ali ia acontecer. Toda aquela gente corria para nada, ou melhor, para ver apenas um homem. Não, porém, um homem qualquer, mas um jovem acabado de ser entronizado como o melhor futebolista do planeta e que o clube cuja principal função é suprir e catalisar o sonho de grandeza e de domínio dos castelhanos, o Real Madrid, acabara de comprar pela módica quantia de cerca de cem milhões de euros.

Desde logo, o que é caro é porque é raro, e o que é raro fascina e atrai. Mas qualquer coisa mais que isso havia ali. Porque aquele jovem, Cristiano Ronaldo de seu nome (uma homenagem que seu pai quis prestar a Ronald Reagan,) não é propriamente raro por ser o que melhor mexe na bola, mas por ser o que, além disso, mais mexe conosco. Por que? Por isso: é jovem, belo, qual Adónis, saudável, rico, imensamente rico e poderoso – tudo o que, bem vistas as coisas, todos nós ambicionamos ser.

Eis a expressão icônica de uma felicidade impossível. De resto, o presidente Florentino Peres acertou em cheio na receita para esta planetária encenação: sonho e ilusão!

Investimos o melhor de nós nos ícones da bola porque eles iludem a grandeza recalcada dos nossos atormentados sonhos – eles cingem-nos de um halo de uma virtual fortaleza que nos inventa na indômita impossibilidade de nós. E, já agora, uma coisa mais: esse ícone Ronaldo encarna o assombroso milagre do menino descalço da favela do Funchal que, num ápice, se transforma, com a magia de um Harry Potter, num dos jovens mais ricos e poderosos do mundo – e a que se acrescenta, quiçá por isso mesmo, essa inconfessa faceta, a da transgressão. Porque a quem tão poderoso é, tudo lhe é permitido.

Nesse sentido, resulta até algo gago e paradoxal o discurso oficial do Real Madrid ao expressar preocupação pelo que possa ser a vida mundana de Ronaldo, pois que é justamente à custa dessa sua tendência para o exibicionismo social que o clube explora comercialmente a sua universal popularidade, enquanto esplêndido produto de marketing. É, afinal, o tal ícone que, na sua dimensão esdrúxula, nos supre em tudo o que a nós, comuns mortais, nos é vedado. De resto, essa transgressividade quadra na perfeição com o teor igualmente transgressivo do padrão gestual do próprio futebol – joga-se com os pés, as extremidades menos aptas e mais distantes do cérebro, contrariando o clássico primado do poder expresso pelas mãos.

Essa faceta da transgressão, da hubris, é a que porventura melhor nos ajuda a compreender a diferença entre Cristiano Ronaldo e Káká, outro fantástico jogador, ex-número um mundial, mas que, ao contrário daquele seu agora colega de equipe, é bem comportado, certinho, discreto e que almeja até tornar-se pastor evangélico.

Ronaldo é sacerdote também, mas de uma religião light, uma religião na sua versão laica em que o estádio é a nova Ágora dos gregos ou a catedral dos cristãos da Idade Média.

Naquela tarde de 6 de julho, tudo no Barnabéu remetia para uma liturgia do gesto, do ritual que inebria os corações e extasia as mentes. Naquele mítico estádio a rebentar de gente que se fundia no magma vulcânico de uma emoção única, celebrava-se a liturgia do sonho e da ilusão: todos entregues à hipnótica exorcização do vazio. Todos imersos no arremedo litânico de uma religião, não a que promete a felicidade no além, mas a que garanta uma felicidade aqui e já!

Nesse sentido, o que verdadeiramente aconteceu em Santiago Barnabéu foi uma liturgia do fim, uma celebração apocalíptica, a revelação arremedada de um regresso definitivo do Messias Salvador que nos resgate, de uma vez por todas, deste “vale de lágrimas” - a vinda de Cristo-Rei (até nisso o Cristiano arremeda o verdadeiro salvador com as mesmas iniciais CR).

De resto, tudo a condizer: o toque das trombetas por anjos anunciadores e a aparição esperada do salvador, de branco vestido. Não tanto, porém, a aparição de um anjo enquanto símbolo da singeleza limpa do apenas ser, mas talvez mais propriamente, a irrupção do ansiado poder que surge do túnel, como que do coração da Terra, um poder que brota do seio da própria humanidade que assim se redime e diviniza.

Essa aparição, como aliás toda e qualquer aparição, espelha, com amargurada nitidez, o caráter efêmero, evanescente dos nossos entusiasmos – eles dissipam-se no vórtice do nosso vazio. Buscamos fora o que deixamos de acreditar poder encontrar dentro de nós. Por isso é que aquela gente se juntou toda só para ver aparecer um jovem, vestido de branco, qual mensageiro da felicidade na Terra, com tudo o que faz o prazer de nela se viver: saúde, beleza, dinheiro, mulheres – sucesso. E de passo, toda aquela anônima gente se fundiu na comunhão erótica do poder: a ilusória sensação de se ser do clube mais poderoso do mundo, que pode comprar os melhores e assim intimidar todos os concorrentes.

É aliás, dentro dessa lógica de afronta e desafio que se enquadra a resposta do Barcelona, histórico representante da contestação ao centralismo castelhano, com idêntica cerimônia na apresentação de Zlatan Ibrahimovic, porventura o ponta-de-lança mais entusiasmante do futebol mundial.

Nada de positivo, então, em tudo isso? Pelo contrário, se há busca de felicidade é porque é de felicidade o nosso destino – só procuramos o que está já em nós como razão de isso procurarmos. Exorcizamos o vazio porque demandamos a plenitude. Por detrás desse arremedo délfico do oráculo paroxístico de uma felicidade à medida sempre a mesma exercitação da esperança.

Mesmo que a contrario, o futebol serve o importante desígnio humano de mostrar que o homem se não realiza na torrente das emoções que gera, mas que, a partir da sua relativização, pode acrescentar mais humanidade à nossa convivência na Terra.

*José Antunes de Sousa é doutor e professor do Instituto Piaget, de Portugal

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por seu comentário.
Em breve ele será moderado.
Benê Lima