Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, maio 25, 2011

Reflexões sobre o jeito de ser do brasileiro: em campo e fora dele

Estamos mergulhados em uma cultura de exclusão: da responsabilidade pessoal, do indivíduo, da cidadania, do auto-respeito, inclusive, que desmoraliza a todos nós quando nos escondemos de nós mesmos
Andrea Sebben

Faz alguns anos li um livro que muito me impressionou e tinha ligação direta com meu trabalho – chamava-se “Brasileiros Pocotó”. O livro, de Luciano Pires, era uma coletânea de artigos sobre a mediocridade que assola o Brasil em seus diferentes momentos.

O que isso tem a ver com o que faço? Sou psicóloga culturalista, cinco anos praticamente fora do Brasil, vivendo nas melhores universidades européias, ajudo hoje executivos expatriados - ou seja, estrangeiros que chegam ao Brasil ou brasileiros que vão ao exterior por tempo determinado, jogadores de futebol trasladados ao exterior e jovens que vão de intercâmbio. Muitas das empresas que atendemos (HSBC, EMBRAER, Nissan, Vivo, Nestlé, Banco do Brasil, Bosch) acreditam que nada é mais importante do que a pessoa entender de fato os povos que irão recebê-las. E eu falei entender, não conhecer.

Anderson, no Manchester

Muita gente acha que basta olhar a etiqueta, a gastronomia, a religião e falar bem um idioma - de preferência o inglês, não necessariamente o idioma dos nativos (o que por si só já justificaria uma grande gafe), que está apto para entrar no cenário global. Não está. Primeiro passo talvez seja mesmo conhecer o país, mas o mais difícil vem depois: compreender.

“Alguém aí pode me explicar o Brasil?”, dirá um estrangeiro desesperado mergulhado em seus dez primeiros minutos no caos que é o Aeroporto de Guarulhos, onde nós mesmos não nos entendemos. Me explicar, por favor, por que acontecem tantas barbaridades? Alguém pode explicar a um estrangeiro nossa facilidade intrínseca de colocar a responsabilidade no outro e, portanto, nunca responsabilizar-se por nada nem por ninguém? Vocês acham que estou exagerando?

Quantas vezes na sua vida você já esteve envolvido em infindáveis telefonemas para os 0800 de telefonia móvel, de internet, de redes de televisão, de clínicas médicas, de órgãos do governo e ouviu: “Senhor, me desculpe, mas não podemos fazer nada?”. Ou ainda: “Desculpe, senhor, políticas da empresa (quer dizer, não podemos fazer nada novamente.)”. Ou quem sabe o: “Senhor, mil desculpas, o sistema não permite (idem ibidem)”... Isso quando a ligação não cai depois de quarenta e dois minutos...

Ah, Brasil... Meu papel, como psicóloga culturalista, é explicar, aprofundar na complexidade do pensamento de cada povo – por que pensa dessa maneira, por que decide de outra, por que comunica numa outra esfera ainda. Mas fazer isso no papel de brasileira para mim é, às vezes, motivo de vergonha.

Robinho, no Milan

Alguns povos lidam com seu ambiente de uma forma irresponsável, ou seja, por ele não tenho gerência alguma. Talvez seja uma questão de sorte, talvez de azar, talvez seja tudo culpa do governo mesmo, ou de Deus (que quis assim). Mas e eu? Ah, eu? Eu não conto nada... Afinal, de que adianta reclamar? Vai mudar? Não vai mesmo... E assim entramos (todos) no infindável ciclo Pocotó que meu colega tanto comenta.

Ao ausentar-me da responsabilidade, naturalmente o segundo passo é procurar o culpado: e assim o fazemos com Deus, com o trânsito, com a filha doente, com o governo, com o fornecedor, com o cliente ou com um ente querido de que muito gostamos de evocar: “a gente”.

Sempre brinco com meus clientes: “a gente quem? Tu e teu guia espiritual? Tu e teu amigo imaginário? Quem é a gente?”.

Como todos sabem, a língua portuguesa nos autoriza a ter seis pronomes pessoais e o brasileiro, com sua infinita criatividade, criou um sétimo: a gente.

“A gente” é uma excelente expressão para eximir-se da responsabilidade. Ela não apenas ilude o interlocutor dando a ideia de que "estou incluído nisso", mas ainda melhor ela pulveriza o sujeito, esconde ele, mascara num grupo secreto. Será "a gente" um grupo religioso sectarista ortodoxo que trabalha num porão escuro às expensas do pobre brasileiro que queria responsabilizar-se, mas "a gente" proíbe?

Quem disse para fazer isso? A gente.

Quem não quis mandar o e-mail? A gente.

Quem se esqueceu do documento? A gente.

Quem decidiu ir embora mais cedo? A gente.

E como explicar para o estrangeiro o pronome "a gente"?

Sempre digo que “a gente” pode de fato ser um grupo, mas frequentemente é a própria pessoa que está falando. Mas, então, por que não usa o "eu"? Ah... porque "eu" não vou me expor dessa maneira. Será que "a gente" se dá conta disso?

A responsabilidade, portanto não é lá uma grande virtude em solo brasileiro. É confundida com exposição, com maturidade, com autoridade. Sabe lá (Deus) o que vão fazer se eu me pronunciar? Melhor mesmo é seguir escondidinho aqui.

E num país coletivista, onde o indivíduo vale tão pouco mesmo, acrescentado o fato de que somos jovens, imaturos, um grande adolescente em conflitos de crescimento, por que preocuparmo-nos com a responsabilidade? Ah, isso o tempo resolve...

E sem percebermos, cria-se a cultura da corrupção e da negligência. Corrompem-se as normas da boa conduta, da honestidade, da integridade, do olho no olho, do ser escutado e respeitado como cidadão e do que sei que posso contar com você. A propósito, alguém aí se sente realmente amparado a fim de poder contar com alguém nessas situações?

Vamos ao futebol.

Kaká, no Real

Como disse anteriormente, trabalho nas melhores empresas multinacionais deste país, fazendo o treinamento intercultural de presidentes, vice-presidentes, diretores e uma infinidade de pessoas altamente qualificadas que estarão se mudando para o exterior em breve a fim de cumprir suas missões profissionais. Em um público bem diferente deste, faço a mesma coisa com adolescentes entre 14 e 20 e poucos anos que vão para o exterior estudar. E no meio do caminho, tenho um público muito especial, que é a fusão de ambos: o jogador de futebol.

Este, similar ao executivo, irá para o exterior com uma sobrecarga de tarefas e responsabilidades que, todos sabemos, é tão grande quanto, ou senão maior, da que o profissional brasileiro da empresa americana que acaba de assumir a presidência na Coréia do Sul. Ou seja, só desafios pela frente, de toda ordem.

Na mesma linha, salários altíssimos e pressões ainda mais para fazer o gol de placa que todos esperam. Concordam? Soma-se a isso o fato de que assim como o executivo, o jogador poderá levar junto sua esposa e seus filhos – um capítulo ainda mais complexo da novela migratória, que, neste caso, começa a assumir contornos diferentes do esperado.

Quando comecei a ofertar nosso trabalho junto aos jogadores e suas famílias – todos eles então sobrecarregados de esperança e pouco municiados em ferramentas sócio-cognitivas (até pela pouca idade ou pela absoluta falta de experiência com culturas estrangeiras) – o resultado natural da oferta, em meu ponto de vista e daqueles com quem conversava, era de que todos os envolvidos, fossem eles os clubes ou os empresários, se deleitariam com a possibilidade de mais qualificação e suporte num momento tão importante de suas vidas. Correto?

Infelizmente não. Começam os telefonemas para os clubes brasileiros, cuja telefonista nos passa para a assistente social, que por sua vez nunca está presente e menos ainda retorna nossas chamadas. A cada tentativa, a resposta: “Não sei, senhora, quando ela vai estar. Quer deixar recado?”. E na ciência de que o recado não seria eficiente, pergunta-se: “E como posso fazer para encontrá-la, então?”. A resposta é sempre fatídica: “A gente não tem como prever...”.

Previsões à parte, algumas poucas vezes os telefonemas são atendidos, e não mais que meia dúzia de vezes somos jogadas entre a assistente social e a psicóloga, cujas respostas harmoniosas são: “A gente já faz isso que você está oferecendo”. “Mas a gente quem? Você ou a psicóloga?”, pergunto. “Nós duas...”. E partíamos dali com a certeza de que nem uma, nem a outra, haviam entendido sequer o que fazíamos.

E finalmente, os empresários, também sócios ativos da “Sociedade Secreta A Gente”, cujas respostas são: “A gente até queria que o jogador fizesse este tipo de trabalho, mas ele não quis...”. “E podemos falar com ele?”. “Olha, isso a gente não pode fazer... É complicado falar com ele”.

“Quando podemos encontrar com Sr. Fulano?”. “Ah, isso é bem difícil... a gente nunca sabe por onde ele anda...”. E talvez uns sete ou dez meses de telefonemas tentado encontrá-lo para que as respostas sejam: “Acho muito importante esse trabalho, mas sabe como é o futebol, né? A gente quer profissionalizar, quer mudar as coisas... mas é difícil. Um dia a gente chega lá...”.

E termino minha reflexão me perguntando com uma desesperada curiosidade: quem é o futebol? Quem faz esse grupo secreto, inatingível, cujos objetivos todos são truncados pela “gente”?

Quem se responsabiliza pela mudança? Pelo bem estar do jogador? Pela competência intercultural dele, de sua família? Pela sua qualificação como profissional e como ser humano que o Treinamento Intercultural propõe?

"Não sei, senhora, não sou eu quem cuida disso", ouvimos. “Quem cuida, então (uma vez que eu estava falando com todos os envolvidos no tema)?”. “Não sei, senhora”. “Mas quem se responsabiliza?”. “Também não sei, senhora”.

Bem, eu também não sei.

Mas sei que estamos mergulhados numa cultura de exclusão: a exclusão da responsabilidade pessoal, a exclusão do indivíduo, a exclusão da cidadania, a exclusão do auto-respeito, inclusive, que desmoraliza a todos nós quando nos escondemos de nós mesmos. Hoje “a gente” se misturou uns aos outros, a palavra do indivíduo pouco vale, o pensamento individual foi banido, a responsabilidade mais ainda, e tudo, tudo, pulverizamos entre "a gente" mesmo. Que talvez um dia acabe decidindo por dar mais atenção à competência intercultural de nossos jogadores.

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Benê Lima