“Desvendar os absurdos que condicionam nossos pensamentos e nos acompanham disfarçados de tópicos, idéias preconcebidas, falsos paradigmas e demais formas de pensamentos não é tarefa fácil”.
(MATEO, J.; VALLE, J.)
No Brasil, sabe-se que para adentrar no mundo futebolístico, em alguns momentos, os jovens necessitam passar por certas exigências, certos dogmas criados, que os afastam da realidade específica do desporto. Designadamente, na seleção de talentos nos últimos tempos, tem-se notado uma exacerbação da dimensão física. Essa tendência confirma que ainda em nosso país esse quesito está em primeiro plano.
Quando se trata de seleção de um possível talento no futebol, de acordo com alguns escritores especializados, podem-se observar dois métodos básicos: o natural e o científico.
A seleção natural é uma abordagem mais simples, o meio comum de desenvolvimento do sujeito em um desporto, como a prática informal nas escolas, jogos nas ruas e praças, entre outros. Esse tipo de seleção é típico dos famosos “olheiros” que os clubes contratam para observar as ditas “peladas” de campo de várzea e analisar, com seu “olhar clínico”, os potenciais futuros craques.
O método parte do princípio de que poucos jogos observados são suficientes para inferir se determinado sujeito pode ou não se tornar um jogador profissional, principalmente se o jovem em questão tiver os requisitos necessários para a prática do futebol moderno, como força, potência, resistência, estatura, entre outros.
Dessa forma, torna-se claro que os critérios que os “olheiros” utilizam mostram-se insuficientes para a escolha de talentos. Sem bases científicas sólidas, os mesmos fundamentam-se por avaliações subjetivas, por idéias preconizadas, e acabam infelizmente afirmando que essa tendência de análise prioritariamente física nada mais é do que uma adaptação das avaliações ao futebol contemporâneo.
O segundo meio é a seleção científica, no qual os responsáveis escolhem jovens com algumas habilidades naturais através de testes, para posteriormente passarem por períodos (semanas, meses) de treinamentos para ser analisados e julgados com mais detalhes e mais critérios. Mas também neste modelo de avaliação os atletas terão que ter obrigatoriamente os apreciados requisitos físicos para serem inseridos no laboratório do futebol.
De acordo com alguns pesquisadores, ao contrário dos demais desportos, em que se opta pelos atletas mais altos, como no basquetebol, ou como no atletismo, em que se opta pelos mais rápidos ou resistentes, todos podem potencialmente jogar futebol. Na modalidade mais popular do mundo participam os altos e os baixos, os rápidos e os menos rápidos, desde que pensem e tenham talento (habilidade e competência). Esse contexto resulta, entre outros aspectos, da possibilidade que o futebol oferece, por exemplo, de um sujeito ser potente sem possuir as características de um velocista de 100 metros.
Portanto, torna-se claro que as características inerentes ao futebol se diferem dos demais desportos, principalmente os individuais. Deve-se entender que o futebol, sendo um jogo desportivo coletivo, de invasão e oposição, tem a dimensão tática assumida como o suporte para o rendimento. Os demais aspectos, como os técnicos, psicológicos e físicos surgem em consequência do comportamento tático.
Na visão do famoso e estudioso técnico português José Mourinho, existe uma interdependência que é impossível de se fragmentar das variáveis táticas, técnicas, fisiológicas, psicológicas, sociais, geográficas, históricas, e inúmeras outras que devem ser consideradas com a mesma importância.
Nesse contexto, fica explicito que essa questão também deveria ser encarada no processo de captação de talentos, mas infelizmente o futebol brasileiro foi contaminado por ideias cerradas e absolutas, onde todas as suas esferas refletem os mesmos conceitos. Ou seja, nas “peneiras” inicia-se o processo de avaliação de atletas erroneamente, seguindo do processo de formação e por fim da profissionalização. Essas ideias redutoras confirmam o que se vê atualmente: atletas estultos que não entendem o jogo, que executam situações sem raciocinar, e continuam não entendendo o jogo após se aposentarem. Então, se tudo começa tortuoso desde as “peneiras”, será que o restante será correto?
Dessa forma, fica evidente que a questão paradigmática das “peneiras” necessita de uma revisão conceitual. Muitos talentos são desperdiçados, “jogados no lixo”, por não se adequarem a esse estereótipo, que se tornou por muito tempo no Brasil uma espécie de lei.
A partir disso, questiona-se se o futebol é um esporte que requer primeiramente uma preparação física ideal, porque o critério de seleções de talentos na sua maioria ainda é, infelizmente, baseando apenas na estrutura e desenvolvimento físico precoce. Sendo assim, há a necessidade do conhecimento de que esse erro conceitual elimina precocemente jovens com capacidades de que o esporte precisa, como inteligência físico-cinestésica, percepção e leitura do jogo, dentre outros aspectos que são de fundamental importância para a seleção de um possível talento.
Nesse entendimento, o futebolista jovem deve ser observado nas ditas “peneiras” por padrões que estejam realmente de acordo com as características do jogo naquela determinada faixa etária. Por exemplo, a categoria sub-14 exige padrões comportamentais táticos, técnicos, psicológicos e, consequentemente, físicos, diferentes da categoria sub-16; ou seja, cada categoria terá sua individualidade, sua complexidade e determinado desempenho, contrariando essa padronização imprudente da dimensão física que acaba acontecendo de maneira genérica.
Assim, o aparecimento de talentos para o futebol deve ser entendido como um processo complexo, desenvolvido dentro de sua própria especificidade. Nesta visão, o futebol sendo um desporto transdimensional, torna-se impossível identificar somente uma variável que represente completamente o conceito de êxito no desporto. Evidente que essa ideia satisfaz poucos, já que a construção de um instrumento de avaliação nesses parâmetros, que seja sólido e judicioso, requer enorme criatividade e um grande conhecimento sobre o jogo e o humano-atleta nas diversas faixas-etárias. Afinal, é bem mais cômodo selecionar jovens altos, fortes, velozes, resistentes, futuros mini-homens, mini-atletas e mini-robôs.
Portanto, não se pode classificar nas “peneiras” jovens prioritariamente por questões de ordem física, sendo que as capacidades físicas são componentes integrantes de um todo deste desporto primeiramente tático.
O futebol é muito mais que um desporto linear mecânico. É uma convergência de fatores que interagem a todo instante. E, como menciona o filósofo e criador das Ciências da Motricidade Humana, Manuel Sérgio, poucos enxergam o jogo como um todo, como um fenômeno complexo, como sendo uma “floresta”. O que é visto é apenas uma “árvore” no meio de muitas outras.
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Benê Lima