Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

segunda-feira, outubro 19, 2009

Mitos construídos II: o desenvolvimento da crônica esportiva brasileira
Um dos argumentos relacionados com a particularidade do surgimento é a migração de escritores e romancistas ao meio jornalístico que se formava
Felipe Rodrigues da Costa

No artigo anterior, debatemos sobre o título da seleção brasileiro na Copa do México e as perspectivas de construção identitária do futebol nacional a partir do papel da ciência nesse processo e como essa inserção é esquecida, ou seja, como a memória e os sujeitos funcionam para a manutenção do imaginário construído acerca do futebol-arte brasileiro.

Para esse momento, a discussão é a crônica esportiva, considerada um gênero brasileiro. O que temos na literatura é que crônica “[...] se enquadra como gênero literário de assunto livre, registro de pequenos fatos do cotidiano – que descreve acontecimentos do dia-a-dia, reflete sobre política, arte, etc. formada por meio de um sincretismo de gêneros” (COSTA, 2009, p. 19). Por sincretismo de gêneros, entende-se a influência em seu nascimento, nos folhetins franceses, situadas entre as notícias graves e pesadas do cotidiano, visando entreter os leitores ((LAURITO; BENDER, 1993,).

Nesses espaços de rodapés aparecem textos de ficção, nascendo os folhetins romance e de variedades. O folhetim romance, desenvolvido em capítulos, permitia que o leitor acompanhasse a história dia a dia, enquanto o folhetim variedades dava forma ao gênero crônica (COSTA et al., 2007). Assim, a construção híbrida do gênero crônica se faz de forma contundente com o advento do jornal, e encontrando-se em meio às notícias, o gênero se molda. “Logo, o gênero crônica passaria a figurar entre os escritores do Brasil, que desenvolveriam uma escrita peculiar, considerando que a imprensa especializada como conhecemos hoje ainda se desenvolvia” (COSTA, 2009, p. 21).

Chegando ao Brasil, o gênero foi trabalhado de forma tão específica que se reivindicou à crônica esportiva como um gênero nacional. A criação do gênero seria a transformação do que teria surgido nos folhetins franceses, de característica informativa, assumindo um caráter próprio que não teria se firmado em sua terra de origem: “[...] Em outros termos, estamos criando uma nova forma de crônica (ou dando erradamente esse rótulo a um gênero novo) que nunca medrou na França. Crônica é para nós hoje, na maioria dos casos, prosa poemática, humor lírico, fantasia, etc., afastando-se do sentido de história, de documentário que lhe emprestam os franceses (MOISÉS, 1982, p. 246).

O desenvolvimento do esporte fez a imprensa mudar o olhar e a maneira de trabalhar a formação profissional da área. A editoria de esportes era considerada um ofício para iniciantes, uma escola para os novos profissionais desse segmento. Com o desenvolvimento do esporte, mudou-se esse conceito e a especialização profissional reescreveu o perfil do jornalista esportivo: além de saber regras, deveria conhecer "[...] história, personagens, fatos, evolução nos tempos, implicação cultural e social" (COSTA, 2001, p. 31).

A caracterização de que o esporte seria, dentro dos jornais, uma editoria de acolhimento de profissionais com pouca experiência/conhecimento teria contribuído, também, para que a crônica esportiva fosse tratada como gênero menor. Para Trouche (2002, acesso em 2 jun. 2006) os anos de 1960 e 1970 “[...] representam indiscutivelmente o apogeu do futebol brasileiro em todos os sentidos e é neste contexto que a crônica esportiva conquista espaço definitivo nos principais órgãos de imprensa do país e, principalmente, se profissionaliza definitivamente, adquirindo contornos poéticos próprios, e redesenhando novas fronteiras para o universo do literário”.

Teria sido Mario Filho que, trazendo uma nova forma de escrever, um estilo mais simples, sepultou a escrita de fraque dos antigos cronistas esportivos? Seria ele a referência do nascimento da crônica esportiva, incorporando ao gênero, além da nova linguagem, respeitabilidade ao ofício da crônica? “Mario Filho inventou uma nova distância entre o futebol e o público. Graças a ele, o leitor tornou-se tão próximo, tão íntimo do fato. E, nas reportagens seguintes, iria enriquecer o vocabulário da crônica de uma gíria irresistível. E, então, o futebol invadiu o recinto sagrado da primeira página [...]. Tudo mudou, tudo: títulos, subtítulos, legendas, clichês [...]. O cronista esportivo começou a mudar até fisicamente. Por outro lado, seus ternos, gravatas e sapatos acompanharam a fulminante ascensão social e econômica. Sim, fomos profissionalizados por Mario Filho” (RODRIGUES, 1987, p. 137-138).

Nesse ponto, é relevante esclarecer algumas afirmações que surgiram no decorrer do desenvolvimento do jornalismo esportivo nacional e que perpetuam até hoje. A importância de Mario Filho para o cenário do jornalismo esportivo no Brasil é latente. Porém, afirmar a criação de um novo gênero não condiz com os indícios e com a escassa historiografia sobre a crônica esportiva no Brasil.

A inserção de um estilo mais solto, divertido, que estaria relacionado com a
identidade do brasileiro, para Gomes (2007, p. 140), constrói-se desde os tempos da Corte Portuguesa no país: “Luis Gonçalves dos Santos não era um jornalista de profissão, mas um cronista por vocação. Aos quarenta anos, versado em latim, grego e Filosofia, exercia a função de cônego da Igreja Católica. Embora ocupasse um cargo importante da hierarquia católica, tinha um apelido engraçado, Padre Perereca, devido à estatura baixa e franzina, e os olhos esbugalhados. É uma indicação de que, naquela época, a irreverência e o humor faziam parte da personalidade carioca e não poupava ninguém”.

Em Monteiro (1981, apud GOMES, 2007, p. 140), o autor busca, na promoção de dois personagens, um a barão e outro a visconde, mostrar que, diante da corrupção à qual estava mergulhado o País, ainda no contexto do período da Corte Portuguesa, entre 1808 e 1822, o povo respondia com humor:

Quem furta pouco é ladrão
Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde

Outro argumento relacionado com a particularidade do surgimento da crônica no Brasil é a migração de escritores e romancistas ao meio jornalístico que se formava. Essa característica encontramos também em outros lugares do mundo. Burke (2003, p. 34) indica que:

“[...] diversos pastores calvinistas também emigraram da França a essa altura, depois da revogação, em 1685, do edito real que permitia liberdade de culto aos protestantes. Ao descobrir que a oferta do clero calvinista superava a demanda por pastores e pregadores, alguns deles se voltaram para a profissão das letras e em particular para a imprensa periódica [...].

Esses ex-pastores figuram entre os primeiros ‘jornalistas’, termo que apenas começava a ser usado em francês, inglês e italiano por volta de 1700 para designar os que escreviam em revistas cultas ou literárias, por oposição aos gazetiers, de menor status, que relatavam as notícias em base diária ou semanal. A imprensa continuava assim a gerar novas profissões”.

A crônica esportiva como produto brasileiro não se confirma. Registros indicam que os ingleses e franceses já produziam informações sobre os Jogos Olímpicos de 1896 (MONTIN, 2000), e jornais esportivos especializados já se desenvolviam na Europa, inclusive servindo de inspiração para que Mario Filho criasse o Jornal dos Sports na década de 1930. O processo de mudança de expressões idiomáticas, do inglês para o português, não foi exclusividade do Brasil. Na Espanha, o mesmo processo ocorreu, quando em 1906 surge o diário Mundo Deportivo - escritores utilizavam-se do estilo próprio da época, de formato rebuscado e com a presença de muito anglicismo.

Assim, a crônica esportiva de forma especializada e como entretenimento precisa ser melhor debatida, sobretudo no que concerne ao surgimento e desenvolvimento desse gênero.

*Felipe Rodrigues da Costa é mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), área de concentração História Cultural da Educação Física e do Esporte. Além disso, é membro pesquisador do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física – PROTEORIA –UFES.

O artigo foi baseado no primeiro capítulo da dissertação de mestrado do autor.

Bibliografia

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

COSTA, Felipe Rodrigues da. Derrotas da seleção brasileira: futebol e identidade nas crônicas de Tostão. 2009. 111 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) _ Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

COSTA, Felipe Rodrigues da; FERREIRA NETO, Amarilio; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. Crônica esportiva brasileira: histórico, construção e cronista. Revista Pensar a Prática, Goiânia, v. 10, n. 1, p. 15 – 31, jan/jun. 2007.

COSTA, Andréia C. Barros. Bate-bola com a crônica: o futebol, o jornalismo e a literatura brasileira.2001, 80 f. Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social. Faculdade de Comunicação – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2001.

GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

LAURITO, Ilka; BENDER, Flora.
A crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

MOISÉS, Massaud. A criação literária. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1982.

MONTÍN, Joaquim M. Marin. La crónica deportiva: José A. Sánchez Araujo. Âmbitos, n. 5, p. 241-257, 2000.

TROUCHE, André Luiz Gonçalves. Será este, o país do futebol? Hispanista, v. 3, n. 10, jun./ago., 2002. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2006.

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RODRIGUES, Nelson. Mário Filho, o criador de multidões. In: MARON FILHO, Oscar; FERREIRA, Renato (Org.). Fla-Flu... e as multidões despertaram. Rio de Janeiro: Europa, 1987. p. 136 - 138.

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