A intenção do artigo que segue é promover o debate do futebol brasileiro visando esclarecer algumas questões que seguem turvas no imaginário popular.
A construção da identidade do futebol brasileiro, iniciada na década de 1930, elaborou alguns mitos que devem ser mais discutidos pelo meio do futebol. A construção do futebol-arte, como característica da identidade do jogador e da cultura brasileira, é um debate que sofreu, ao longo do tempo, um processo de construção forjado na memória da nação.
Com a organização dos Mundiais, as identidades futebolísticas se acentuaram, surgindo os estilos que diferem a forma de jogo entre os países. Cada qual à sua maneira, o futebol brasileiro detém a alcunha de futebol-arte, habilidoso, genial. A crônica esportiva europeia, quando da disputa da Copa do Mundo de 1938, impressionou-se com o futebol brasileiro por sua característica individual, o controle da bola, a cadência do jogo em um esporte de caráter coletivo. Na mesma Copa, a imprensa francesa assinala essa falta de coletividade do jogo brasileiro, e os italianos caracterizaram como atrasada e primitiva a concepção de jogo do selecionado nacional (DAMO, 2006).
Ao jogador brasileiro, cabe a caracterização por suas habilidades individuais, uma capacidade técnica inata, um dom. Algo que foi dado, sendo o treinamento, então, uma situação quase que desnecessária. Assim se constitui a identidade do futebol e do jogador brasileiro, e dessa forma deveria se perpetuar.
A Copa do Mundo de 1970 passa a ser um marca da memória futebolística nacional. Representa a característica de talento do jogador brasileiro, culminando no futebol-arte. Ora, se existe um futebol-arte, o futebol-força seria sua antítese: um futebol pragmático, de estilo coletivo, onde o atleta necessita de muitos treinos para almejar alguma conquista.
A conquista do tricampeonato pela seleção brasileira, exemplo de futebol-arte, é divulgada como resultado de toda a competência técnica do brasileiro. Nesse ponto, há considerações a serem feitas.
Tem-se no imaginário social que a conquista da Taça Jules Rimet de forma definitiva pelo Brasil se deu sem esforços, única e exclusivamente pelo talento “inato” do brasileiro para jogar futebol. Essa leitura romântica do futebol brasileiro sempre que necessária é divulgada pela mídia, mas começa a perder espaço com as pesquisas acadêmicas que buscam elucidar a construção da identidade futebolística brasileira.
A preparação para o Mundial do México de 1970 foi elaborada com um rigor científico sem precedentes no futebol nacional. Estudos realizados pelo professor Lamartine Pereira da Costa a fim de auxiliar a preparação dos atletas olímpicos que disputariam os Jogos em 1968, também no México, foram fundamentais na conquista do título mundial pelo futebol brasileiro. A importância do “Planejamento México”, a partir do método “altitude training”, deve ser reconsiderado pelos meios de comunicação.
Os esquecimentos da preparação científica que cercou o grupo de jogadores funcionam para a manutenção da identidade de futebol-arte. Todo o esforço, o treinamento e o trabalho feito pelo elenco, contrariam as características construídas do “produto” futebol canarinho.
Esses esquecimentos e as lembranças dão sentido ao símbolo coletivo de identidade, no qual “todo esse processo de construção das identidades encontra na memória social um de seus alicerces, pois ela cumpre a função de resgatar os feitos ou relembrar as perdas, reforçando os sentimentos de coesão e de unidade” (SALVADOR e SOARES, 2009, p. 2). Entretanto, as construções e os reforços de identidade, resgatadas pela memória, nem sempre se dão de forma harmônica. Essas tensões transformam a memória em um espaço contestado. Apontam Salvador e Soares (2009, P. 6) que “as diferentes versões sobre o passado entram em conflito, pois as relações de poder e seus interesses específicos se encontram implícitos na busca de uma legitimação de uma versão sobre o passado”.
Os sujeitos que participaram da construção do futebol-arte, principalmente, são os que trabalham na manutenção desse processo, enfatizando os critérios técnicos individuais, “esquecendo” o período de preparação física, os treinamentos e o papel da ciência no auxílio do desenvolvimento do potencial técnico do jogador brasileiro, e consequentemente, do futebol-arte brasileiro. Essas tensões existem entre os próprios sujeitos na busca de reconhecimento mais adequado de sua participação na campanha, como Tostão, que afirma como ele acredita que poderia e deveria ser visto nessa conquista. Considerado um jogador cerebral pela imprensa, indica em suas crônicas que gostaria de ser lembrado também como um jogador técnico e habilidoso, que contribuiu para a consolidação do estilo de jogo do futebol brasileiro (COSTA, 2009).
A memória como espaço contestado se transforma em palco de disputas, e a mídia se configura como local de destaque na construção de opiniões, juízos, valores, que acompanha e valoriza “[...] as demandas identitárias do presente” (SALVADOR e SOARES, 2009, p. 8).
Não relatar o trabalho, o treinamento e a dedicação despendida nas conquistas do futebol brasileiro, funciona para que se mantenha o caráter inato da técnica do jogador brasileiro. Afirmar a preparação física e o trabalho árduo é se distanciar do conceito identitário do futebol nacional, e aproximá-lo do futebol-força, que se baseia no trabalho para o desenvolvimento pleno de suas habilidades.
*Felipe Rodrigues da Costa é mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), área de concentração História Cultural da Educação Física e do Esporte. Membro pesquisador do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física – PROTEORIA – UFES.
**Estudos recentes como “Discursos de uma derrota: um estudo da produção discursiva sobre a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2006”; “Esboço sobre algumas implicações do futebol e da Copa do Mundo para o Brasil: identidade e ritos de autoridade”, publicados na Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Além do Ensaio “Mané Garrincha como Síntese da Identidade do Futebol Brasileiro”, publicado na Revista Movimento.
Bibliografia
BITENCOURT, Fernando Gonçalves. Esboço sobre algumas implicações do futebol e da Copa do Mundo para o Brasil: identidade e ritos de autoridade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 30, n.3, p. 173 – 189, maio. 2009.
COSTA, Felipe Rodrigues da. Derrotas da seleção brasileira: futebol e identidade nas crônicas de Tostão. 2009. 111 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) _ Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.
DAMO. Arlei Sander. A magia da seleção. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 28, n.1, p. 73 - 90, set. 2006.
FREITAS, Gustavo da Silva; RIGO, Luiz Carlos. Discursos de uma derrota: um estudo da produção discursiva sobre a eliminação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2006. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 30, n.3, p.111 – 125, maio. 2009.
SALVADOR, Marco Antonio Santoro; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves Soares. A memória da Copa de 70: esquecimentos e lembranças do futebol na construção da identidade nacional. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2009.
SOARES, Antonio Jorge Gonçalves. Mané Garrincha como Síntese da Identidade do Futebol Brasileiro. Revista Movimento, Porto Alegre, vol. 15, n. 1, p. 169 – 191, jan/mar. 2009.
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Benê Lima