Há aproximadamente um mês, pesquisa encomendada pela Fifa indicou o impacto do futebol sobre torcedores de diversos países. Um dos pontos relatados era que o mercado norte-americano ainda não tinha sido completamente conquistado pela modalidade, mas está em intenso progresso. A venda de bilhetes para a Copa do Mundo de 2010 explicita essa linha ascendente.
Os fãs norte-americanos ficam atrás apenas dos próprios anfitriões dentre aqueles que mais compraram ingressos para os jogos do Mundial na África do Sul – por volta de 120.000 ingressos comprados até abril. Já os donos da casa compraram 925.437 entradas. Também se destacam os britânicos (67.654), alemães (32.269), australianos (29.657) e canadenses (16.001).
Outro levantamento científico com 500 cidadãos representativos cuja idade variava entre 16 e 55 anos mostrou que 28% das pessoas estadunidense adotam o hábito de assistir a duelos futebolísticos pela televisão - levantamento idêntico datado de 2008 estabeleceu que somente 15% dos entrevistados tinham essa cultura.
Dentro dessa realidade construída, um profissional brasileiro acompanha in loco o avanço dos tradicionais amantes de beisebol, basquete e futebol americano. Helio D’Anna, ou simplesmente “Coach L”, por conta de uma dificuldade de pronúncia dos habitantes locais, atua há quase duas décadas à frente de escolas americanas.
Formado em Educação Física pela Unicamp, Helio já dava os primeiros passos em sua carreira como técnico antes mesmo de completar o ensino superior. Treinou algumas equipes do Brasil, além da própria Escola Americana de Campinas, responsável por sua ida aos Estados Unidos. Hoje comanda as equipes masculina e feminina da Lincoln Memorial University.
“São atletas fortíssimos e muito rápidos, de alta estatura e grande mobilidade. Talvez devido à interação do sistema educacional e desportivo, o jogador americano tende a ser um estudante do futebol, muito inteligente e que busca jogar o jogo como se estivesse em uma partida de xadrez”, comentou o brasileiro, em entrevista concedida via e-mail à Universidade do Futebol.
“Coach L”, cujo currículo também apresenta instrução em clínicas e estágios, tais como São Paulo Club, Clemson University Soccer Camp, Post-to-Post Soccer, Brazilian Soccer Academy, BRUSA, Brazilian Soccer Training Center e Cincinnati-Brazil Soccer, faz parte do programa de desenvolvimento olímpico no Estado de Kentucky, onde reside.
Dentre outras abordagens, Helio fala sobre a qualidade do nível universitário e profissional na América do Norte, a relevância da convenção anual de técnicos, que ocorre naquele país, a razão pela qual a modalidade é tão forte entre as mulheres e as chances da seleção dos EUA na Copa-10.
Universidade do Futebol - Helio, fale um pouco sobre sua formação acadêmica e o início de sua trajetória no futebol.
Helio D’Anna - Tenho diploma de Educação Física pela Universidade de Campinas (Unicamp) e mestrado pelo Union College, nos Estados Unidos. Comecei a trabalhar com futebol já antes de me formar na faculdade, por intermédio da Escola Americana de Campinas.
Foi lá que tive oportunidade de interagir com o modelo americano de competição, vinculado ao sistema educacional. Daí, fui contratado pelo Union College e agora estou no Lincoln Memorial University.
Ao todo, minha trajetória desde a escola americana soma 22 anos.
Universidade do Futebol - Como é a formação do treinador de futebol nos Estados Unidos e de onde surgiu o convite para atuar no país?
Helio D’Anna - Tenho a licença nacional da NSCAA (National Soccer Coaches Association of America). Como eu trabalhava dentro do sistema americano na escola americana de Campinas, fui recomendado ao Union College por um dos administradores dessa instituição de ensino, que tinha raízes junto ao Union College.
À esquerda, de azul, Helio posa ao lado das equipes masculina e feminina da Lincoln Memorial University
Universidade do Futebol - De que maneira você avalia a evolução da modalidade nos Estados Unidos e que importância têm os treinadores estrangeiros nesse processo de profissionalização?
Em primeiro lugar, há um número muito grande de garotos e garotas jogando futebol aqui nos Estados Unidos. Pouca gente sabe, mas há mais participação no futebol do que nos outros esportes quando se trata de jovens. Portanto, a base está bem representada.
O nível universitário é muito bom, e o nível profissional tem boa qualidade – eu o comparo a países como o Japão e a Austrália, nos quais o profissional cresce a cada ano.
A influência estrangeira tem sido muito importante, tanto em relação a jogadores, quanto a técnicos. Apesar de a maioria ser de origem européia, há bons profissionais sul-americanos, incluindo brasileiros, principalmente no nível universitário.
Universidade do Futebol - É possível se dizer que já há uma “escola estadunidense de futebol”, assim como há um modelo de jogo tipicamente inglês, italiano, brasileiro e argentino, por exemplo? Ou acredita que a globalização estabeleceu parâmetros e aproximou esses estilos?
Helio D’Anna - Há, sim, uma escola própria dos Estados Unidos, apesar de ser uma mistura das tradições latina e européia. Mas a “marca” americana envolve qualidade atlética altíssima, força, defesa, e objetividade.
Contamos com uma geração nova de jogadores muito técnicos também, mas a cara do futebol americano está representada por um jogo de transição e toques rápidos, e de movimentação constante.
Universidade do Futebol - Em sua opinião, qual é o perfil atual do jogador de futebol nos Estados Unidos?
Helio D’Anna - São atletas fortíssimos e muito rápidos, de alta estatura e grande mobilidade. Talvez devido à interação do sistema educacional e desportivo, o jogador americano tende a ser um estudante do futebol, muito inteligente e que busca jogar o jogo como se estivesse em uma partida de xadrez.
Universidade do Futebol - Anualmente ocorre a convenção de técnicos de futebol nos Estados Unidos, da qual você sempre participa. Qual a relevância de um evento desse porte ser realizado em território norte-americano?
Helio D’Anna - A convenção é a culminação do calendário anual. O evento possui uma importância muito grande, pois a partir dela e dos esforços da NSCAA há um padrão de trabalho em todas as categorias e uma divulgação de ideias e produtos que ajudam o crescimento do futebol de uma maneira homogênea em um país tão grande.
Além disso, a convenção cria uma atmosfera de classe (ou até família), o que favorece a valorização da profissão de técnico e do “produto” futebol como marketing.
Universidade do Futebol - O início da caminhada do futebol feminino nos EUA se deu mais devido a fatores culturais, econômicos ou políticos? Comente sobre a explosão de oportunidades para as mulheres, desde a iniciação até a prática de alto nível.
Helio D’Anna - O grande “empurrão” veio de uma lei federal chamada de Title IX nos anos 1970. Essa lei obrigou a todas as instituições a oferecerem as mesmas oportunidades a mulheres que fossem oferecidas aos homens. Quem não seguisse essa norma, corria o risco de sanções e perda de verbas federais. Com isso, muito dinheiro foi injetado no futebol feminino.
Outro fator importante foi cultural: o movimento de emancipação feminina foi bem incorporado e, com isso, as meninas não sofrem abusos ou preconceitos por participarem do futebol. Muito pelo contrário: o futebol feminino é muito charmoso e atrai apoio por ser um mercado especifico.
São várias as companhias que têm chuteiras, uniformes e materiais específicos para mulheres, por exemplo.
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Universidade do Futebol - Os Estados Unidos têm uma tradição secular de organização desportiva e tratamento profissional de suas ligas. De maneira geral, como é estruturado o futebol nos Estados Unidos? Há uma diferenciação muito grande entre a categoria profissional masculina e feminina?
Helio D’Anna - A cultura do desporto profissional americano é bastante consistente e segue uma filosofia de marketing: empresa privada voltada ao lucro, e ligas independentes, com gestação central e direitos iguais aos clubes.
Há também uma característica de estabilidade, já que não há acesso ou descenso, e há limites de salários para as agremiações. Isso é verdadeiro não só ao futebol, mas a todos os esportes.
A diferença entre masculino e feminino está basicamente relacionada à “receita”. Por gerar menos lucro e ter menor assédio público, o desporto feminino profissional tem uma dependência de manutenção que vem das leis federais e da ajuda do lado masculino. Apesar de estar crescendo, o desporto profissional feminino em geral continua a ter uma conotação de segunda classe quando comparado ao masculino.
Universidade do Futebol - As crianças e adolescentes praticantes do futebol nos EUA pretendem, de forma geral, se tornar jogadores ou jogadoras profissionais?
Helio D’Anna - Pela liga profissional de futebol ser bem menor que a de outros esportes, o adolescente não sonha tanto em ser profissional quanto se vê no Brasil. No entanto, sem dúvida alguma, esses jovens incorporam o futebol para o resto da vida.
Como há milhares de jovens jogando no momento, a tendência é de essa pirâmide aumentar e desenvolver uma cultura maior de “sonhadores”, aproximando-se mais da realidade brasileira.
Mas como o futebol de formação é vinculado ao sistema educacional, mesmo esses aspirantes sabem que precisam de um diploma para terem uma carreira em alguma área após a vida de jogador profissional.
Universidade do Futebol - Qual é o papel dos pais na prática esportiva e, particularmente, do futebol nos EUA? Que diferenças existem em relação ao Brasil?
Helio D’Anna - Uma diferença que vejo é em relação à importância da prática desportiva na formação do indivíduo. Por conta disso, o pai americano larga tudo para acompanhar o filho ou a filha nas competições. Aliás, o pai é o segundo técnico dos filhos e muitos buscam obter licenças e estudam o futebol para poderem dar mais apoio.
Francamente, a grande distinção está no fato de que a prática do futebol pelas crianças é cara. Todos os clubes e escolas cobram taxas e há uniformes a serem comprados, viagens, etc. Como o poderio econômico na média é alto, o pai é um investidor na jornada do adolescente para que um dia ele ganhe uma bolsa para estudar e jogar em uma universidade.
Como as universidades são caras, o pai vê essa jornada como um investimento a ser recuperado lá à frente.
Universidade do Futebol - Como você vê o “espírito de competição” dos jovens norte-americanos? Eles praticam esporte para ganhar ou apenas praticam como um meio de educação, lazer e/ou saúde?
Helio D’Anna - A cultura americana em geral é muito competitiva e até agressiva. Esporte lazer está restrito a atividades não competitivas. Uma vez vestindo uma camisa de futebol, tanto pai, quanto técnico, além dos atletas, todos querem competir e ganhar.
Muitas vezes, aliás, chegando a um patamar nem um pouco saudável.
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Universidade do Futebol - E o mercado de trabalho para profissionais do futebol brasileiro que queiram trabalhar nos EUA? Quais são os principais desafios e dificuldades a serem superados?
Helio D’Anna - Um desafio está na barreira da língua. Eu tenho certeza de que à medida que o domínio do inglês aumente na formação de profissionais de futebol no Brasil, nós veremos mais e mais brasileiros trabalhando aqui.
Outra barreira é a da imigração trabalhista. O visto de trabalho é complicado, principalmente para quem não tem formação acadêmica dentro dos Estados Unidos. Mas essas são as únicas barreiras importantes, já que o respeito ao futebol é muito grande, e o desejo de se ter profissionais brasileiros aqui é maior ainda.
Universidade do Futebol - Qual o perfil do torcedor de futebol nos EUA e como o habitante local vê as chances da seleção norte-americana na Copa do Mundo de 2010?
Helio D’Anna - Quem se apaixonou pelo futebol é tão apaixonado quanto um fã do Brasil. O problema é que há ainda um “gap” entre esses milhares de jovens crescendo e jogando a modalidade e a geração que cresceu jogando beisebol, basquete e futebol americano. Mas isso está mudando e a tendência é crescer mesmo.
A expectativa é reservada, apesar do sucesso na Copa das Confederações. O torcedor está desconfiado no momento, pois os amistosos e até a jornada de classificação não têm sido muito gloriosos.
Tudo vai depender do jogo contra a Inglaterra: se os Estados Unidos conseguirem um bom resultado e embalarem, vão dar trabalho. Há bons valores jogando na Europa com condições de fazerem um bom Mundial na África do Sul.
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Benê Lima