Na reta final do último Campeonato Brasileiro, sentimos uma espécie de déjà vu. Parecia impossível alguns meses antes do término da competição, mas acabou se tornando uma realidade, ainda que desacreditada. Faltando cinco rodadas para o fim da competição, o São Paulo Futebol Clube tomou a liderança do líder Palmeiras, após dezenove rodadas em seu domínio. Dependendo somente de seus resultados, o clube tricolor poderia se tornar o único a conquistar quatro títulos nacionais consecutivos. O Flamengo faturou a taça, claro, mas o fato de a agremiação do Morumbi ter chegado à última rodada com chances de conquista chamou novamente a atenção.
Criado pelas elites paulistanas na década de 1930, o São Paulo tornou-se mais do que nunca o modelo de administração competente do futebol. Com o maior estádio particular do Brasil, a segunda maior torcida do estado de São Paulo e um pioneiro investimento em marketing, é um paradigma do futebol moderno.
O tricolor paulista revestiu-se de uma imagem austera e íntegra do futebol. Ele tenta se blindar das polêmicas de arbitragem e expõe a imagem de um clube financeiramente forte, cuja realidade configura-se um caso à parte no corrupto, incompetente e desorganizado futebol brasileiro.
O nome do SPFC passou a ser escrito no noticiário esportivo ao lado de "planejamento", "organização", "lucros" e "vitórias". Comumente é dito que as consequências mais concretas desta condição do clube tricolor são os diversos títulos expressivos e o crescimento de sua torcida.
Enfim, esse é o modelo de futebol que admiramos.
Admiramos?
O SPFC tornou-se um modelo de administração do futebol. Entretanto não se traduz como um modelo de futebol nas quatro linhas. Nem mesmo a eficiência garante a unanimidade, e o Brasil assistiu à hegemonia de um time de futebol pragmático, não performático.
Para a história, não há relação direta entre quantidade de títulos e torcedores. O torcedor se empolga com a competitividade, e sobretudo se encanta com a arte dos seus melhores jogadores. O São Paulo tem sido um clube que se destaca pelo elenco forte e equilibrado, com responsabilidades divididas. O brilho individual é quase ausente, com exceção da figura do goleiro cobrador de faltas que, ao contrário do que diz boa parte da crônica esportiva, é tão decisivo quanto outros goleiros de grandes clubes devem ser. Portanto, o torcedor são paulino tem um perfil diferente, pois está relacionado afetivamente ao clube por intermédio de outros códigos e símbolos.
A meu ver, este modelo de futebol do São Paulo, bem como sua nova torcida, somente existe enquanto contingência de uma dimensão maior. O modelo de futebol dos últimos 20 anos no Brasil corresponde ao processo de transformação administrativa por que passou o tricolor do Morumbi. E esta concepção de administração do futebol é resultado do seu próprio tempo.
Isso porque o estado brasileiro se apropriou de conceitos de administração privada para a administração pública. Termos como "gestão" e "gerência" foram difundidos na máquina pública, e se firmaram com a garantia de resultados positivos ao país. Assim se fez. Assim, o Estado "neoliberal" sufocou a inflação e fortaleceu as classes médias, e as privatizações passaram a ser compreendidas como a forma de tornar a máquina pública mais eficiente e menos onerosa. A nova ordem político-econômica do fim do século XX tornou-se paradigma da elite política e da imprensa brasileira
Ao mesmo tempo, o SPFC assimilou uma tendência empresarial do futebol. Os mesmos adjetivos são encontrados ao tratar tanto do modelo ideal de administração pública, quanto do da administração do futebol.
Ele tornou-se o signo deste modelo ideal de futebol, e não coincidentemente, prosperou por estes termos. A torcida do SPFC se popularizou e, apesar de relacionarmos esta realidade à conquista de títulos mais recentes, este processo é ainda mais amplo.
Torcer pelo São Paulo passou a ser conveniente.
Torcer pelo São Paulo é adquirir um poderoso capital simbólico que integra o torcedor a um grupo absolutamente vitorioso.
Ao falar dos imigrantes e emigrantes que chegaram à capital paulista no começo do século passado, escreveu um dos grandes historiadores do século XX, Nicolau Sevcenko, “na busca de novos traços de identidade e solidariedade coletiva, de novas bases emocionais de coesão que substituíssem as comunidades e os laços de parentesco que cada um deixou ao emigrar, essas pessoas se vêem atraídas, dragadas para a paixão futebolística que irmana estranhos, os faz comungar idéias, objetivos e sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo as mesmas cores”.
O futebol tem este poder de agregar indivíduos que busquem uma identidade própria. Com o São Paulo não tem sido diferente, a não ser pela sua especificidade deste momento. Torcer para o São Paulo é garantir a manutenção de um status quo das elites, ao mesmo tempo em que também é um meio de ascensão social.
Compreender o futebol é uma tarefa pouco apoiada, já que mais sentimos do que pensamos o futebol. Não tenho a pretensão de concluir que há uma atmosfera mental na sociedade brasileira que permita consolidar tais modelos.
Por outro lado, é inegável que a forma de se fazer futebol mudou, e o envolvimento das pessoas com seus clubes tem se atrelado cada vez mais aos discursos ideológicos perpetuados pelos veículos de comunicação, em detrimento dos ritos mais tradicionais entre as famílias.
Também não pretendo terminar meu texto como um nostálgico romântico do futebol que se recusa aceitar a nova realidade do jogo. Procuro me esforçar ao máximo a entender o futebol que vivemos, tanto em sua excelência são-paulina quanto em sua incompetência dos diversos grandes rebaixados.
Imagino que se a nossa política está tão afinada com o nosso futebol, se quisermos subverter e contestar a política de nosso país, talvez devamos começar subvertendo a nova ordem do futebol.
*Marco Lourenço é pesquisador de História Social do Futebol pela Universidade de São Paulo.
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Benê Lima