Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, junho 21, 2012

Bichos e sua equiparação à remuneração

Atleta profissional é classe com regras peculiares, não só em termos de remuneração, mas há envolvimento emocional, aviso prévio, contratos civis: não deve ser e não é tratado como trabalhador comum
Matheus Melo Cardoso / Universidade do Futebol

Desde os primórdios do futebol, a figura do “Bicho” é comum. Bicho, no jargão futebolês, é a quantia recebida pelos jogadores de uma equipe em consequência de seu bom desempenho ou resultado obtido em uma partida ou no decorrer de um campeonato, ou ainda, como destaca a doutrina da il. jurista Alice Monteiro de Barros, que em artigo publicado na Revista Consulex a respeito da denominada 'Lei Pelé', leciona, quanto ao tema, 'que a importância intitulada bicho, pela linguagem futebolística, é paga ao atleta, em geral, por ocasião das vitórias ou empates, possuindo natureza de prêmio individual, resultante de trabalho coletivo, pois visa não só compensar os atletas, mas também estimulá-los.' (Ano IV - N.º 38 - Fevereiro/2000 - p. 33).

Esse nome surgiu para que os sócios dos muito antigos clubes de futebol acobertassem essa prática. Em meados da década de 1910, jogadores de futebol não eram remunerados para exercer o tão sonhado ofício de nove entre 10 meninos da geração atual. Instigados pela rivalidade entre os clubes da época, sócios pagavam quantias em dinheiro para os jogadores em caso de vitória sobre os clubes rivais. Para que não fossem divulgados esses “prêmios”, estes os jogadores costumavam dizer que tinham ganhado no Jogo do Bicho, popular jogo de azar legalizado nessa época, tendo em vista que, geralmente humildes, após essa gratificação, os jogadores costumavam não esconder o dinheiro que recebiam.

Assim como o futebol evoluiu, o Bicho evoluiu junto. Agora, existem gratificações individuais que são acertadas no contrato do jogador de futebol e não mais apenas por eventos futuros e incertos. Por exemplo, pagamentos feitos por gols marcados, assistências feitas e número de partidas realizadas são comuns hoje em dia entre essa classe. Por estar descrito em contrato e ter fundamento no art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho, a “CLT”, além de ter regularidade e valor auferido, entre outras características, estas gratificações têm caráter remuneratório, acarretando esses valores a figurarem em todas as garantias trabalhistas.

Outro tipo de Bicho é o acertado com toda a equipe, antes ou até no próprio transcorrer de um campeonato. Por exemplo, o Bicho coletivo será pago um valor para cada vitória conquistada, ou empate, ou número de pontos marcados em determinado número de partidas. Esse tipo de Bicho também tem caráter remuneratório, tendo em vista que geralmente esses valores são pagos por mês, descritos nos holerites dos atletas, além de algumas características semelhantes ao Bicho individual, acima descrito, como regularidade, valor determinado, etc.

Esses dois tipos de Bicho têm a natureza remuneratória consagrado pela jurisprudência dos tribunais superiores:
 

'ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. 'BICHOS'. INTEGRAÇÃO À REMUNERAÇÃO. A parcela denominada 'bichos' é vocábulo consagrado e que compõe o que se conhece por 'jargão futebolístico'. Tendo em vista o pagamento costumeiro e habitual da referida verba, em decorrência de ajuste entre as partes, adquire o caráter de efetiva gratificação o que revela, indiscutivelmente, a natureza salarial da parcela. Integram a remuneração do autor, para todos os efeitos legais.' (TRT-PR-RO-27781-2000-006-09-00-7 - Rel. Des. SERGIO MURILO RODRIGUES LEMOS - DJPR-3/9/2004.)
 

Por fim, há um tipo de Bicho que gera muitas discussões se há ou não há caráter remuneratório. Os Bichos pagos em ocasiões específicas e peculiares, geralmente em fase final de campeonato, no qual não há valor definido, não havia prévio conhecimento dos jogadores e não são todos os times que tem essa prática. São casos, por exemplo, de disputas de times considerados “grandes” contra o rebaixamento de divisão, ou valores extras pagos por apenas um jogo contra seu rival, ou ainda, um valor extra pagos aos jogadores para que ganhem um determinado jogo atrapalhando possibilidade de conquista do time rival, e por fim, bichos pagos sem prévio acordo entre as pares.

Existem duas correntes para essa questão. Na visão dos que defendem os jogadores, baseado no art. 457 e parágrafos da CLT, esses valores correspondem, sim, à remuneração. São valores pagos pelo exercício do trabalho realizado, independente de pagamento regular e valor, acarretando o acréscimo desse valor nas despesas e garantias trabalhistas, como férias, FGTS e etc.

Nessa corrente, o il. jurista Domingos Sávio Zainaghi afirma que “Logo, todo e qualquer pagamento efetuado pelo clube ao atleta será considerado salário. Para o jogador de futebol as luvas, os bichos, as gratificações e o 'direito de imagem', constituem-se em salário.' (in Nova Legislação Desportiva - Aspectos Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2001 - p. 23-24)”.

Entretanto, na visão dos que defendem os clubes, esses valores não devem ter a natureza de remuneração. Esse Bicho especial é pago em apenas algumas situações, no qual o resultado macro da situação em que vive o clube pode ser alterada drasticamente em razão de evento futuro. Esse pagamento seria equiparado à participação nos lucros de empresa (“PLR”), ou seja, fundamentado no art. 7º, inciso XI, no qual este pagamento é desvinculado da remuneração. Há ainda alguns julgados nesse sentido:
 

RECURSO DE REVISTA. DIREITO DE ARENA. À luz do artigo 42, parágrafo 1º, da Lei nº 6.915/98, a parcela -direito de arena- é decorrente da participação do profissional de futebol em jogos e eventos esportivos, estando diretamente relacionada à própria prestação laboral do atleta e não apenas ao uso de sua imagem. Com efeito, referido direito é vinculado ao trabalho prestado pelo autor, ao longo dos 90 minutos do jogo, momento em que desempenha a sua atividade específica de profissional jogador de futebol. Observe-se, por relevante, que o mencionado artigo 42 é flexível somente no que se refere à percentagem a ser ajustada - e ainda assim, garantindo ao trabalhador atleta um limite de 20 por cento. Entende-se, portanto, devida a contraprestação, a qual deverá ser previamente ajustada, respeitando-se aquele percentual mínimo, o que não significa retirar-se sua natureza salarial, como entendeu o eg. TRT. Recurso de revista conhecido e provido.

PARCELA -BICHOS-. Conforme asseverado pelo eg. TRT, soberano na análise da prova, à luz da Súmula nº 126 do TST, na hipótese dos autos, conquanto paga por liberalidade do reclamado, não foi comprovada a habitualidade no pagamento da parcela -bichos-. Logo, ao afastar sua natureza salarial, o eg. TRT logrou atribuir a correta subsunção da descrição dos fatos às normas pertinentes, estando ileso o artigo 457 da CLT. Com efeito, ao contrário do que alega o recorrente, não se trata de gratificação ajustada, mas sim, de parcela condicionada a evento incerto. Os arestos trazidos a dissenso são inservíveis. O segundo modelo de fl. 527 é oriundo de Turma do TST, ao passo que os demais, não guardam pertinência fática com a premissa observada pelo eg. TRT, ao apreciar a prova documental, de que a verba era paga aleatoriamente, sem habitualidade. Incide o óbice da Súmula nº 296 do TST. Recurso de revista não conhecido.

Processo: RR - 130400-49.2003.5.04.0006 Data de Julgamento: 22/09/2010, Relator Ministro: Renato de Lacerda Paiva, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 01/10/2010.
 


Partilho da última vertente. Esse tipo de valor pago não tem caráter remuneratório. Não entrarei a fundo nesse primeiro argumento, mas sendo de grande valia sua citação, pela análise Kelseniana no livro “Teoria Pura do Direito” sobre hierarquia de leis, no qual a Constituição Federal se sobrepõe à CLT. Ademais, os Bichos são pagos com objetivo puro e simples de gratificação.

No caso do clube que se encontra em situação difícil na tabela ao final de um campeonato e tenta de todos os modos reverter essa situação. Os jogadores já receberam seus salários, Bichos, e o que lhe é devido regularmente, mas por incompetência dos mesmos, se encontram nessa difícil situação, sendo necessário que os clubes tomem tentem motivá-los de alguma forma. Mesmo em casos de Bichos pagos para atrapalhar rivais, a situação continua a mesma. Por incompetência, o time não está disputando o título, e no intuito de não ter o seu rival campeão, é pago uma montante extra remuneração em jogos que possam influenciar nos resultados dos outros.

A quem seja de opinião diversa, mas após a promulgação da Constituição de 1988, desvinculando a participação nos lucros da remuneração, data vênia, não há o que divergir. Exemplo disso, o magistério do Min. Arnaldo Lopes Süssekind (Instituições de direito do trabalho, em co-autoria com Délio Maranhão e Segadas Vianna, 13. ed., São Paulo, LTr, 1993, v. 1): "Modificação de relevo ocorreu com a natureza jurídica da prestação paga ao empregado a título de participação nos lucros da empresa. A doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais sempre afirmaram sua natureza salarial (Súmula TST n. 251). Hoje, todavia, a prestação paga como participação nos lucros ou nos resultados está expressamente ‘desvinculada da remuneração’, isto é, não constitui salário e, por via de conseqüência, não pode ser computada: a) no pagamento do salário devido ao empregado; b) na base de incidência dos depósitos do FGTS, das contribuições previdenciárias e de outros tributos cujo fato gerador seja a remuneração do empregado; c) no cálculo de adicionais, indenizações e outras prestações que incidam sobre a remuneração".

Ainda há divergências jurisprudenciais e doutrinárias a respeito dos Bichos. O atleta profissional é uma classe com regras peculiares, não só em termos de remuneração, mas há o envolvimento emocional, aviso prévio, contratos civis, e, portanto, não deve ser e não é tratado como um trabalhador comum. Os valores recebidos pelos jogadores também devem ser tratados distintamente, sendo os valores que representam salários acarretem os encargos trabalhistas, e valores como direito de imagem (usado corretamente, sem fraudes) ou Bichos sejam tratados como devem ser, com o caráter de gratificação.

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Benê Lima