Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

sábado, abril 02, 2011

Lilia Schwarcz, antropóloga e historiadora

Professora do Departamento de Antropologia da USP fala sobre racismos e representação de Pelé

Bruno Camarão

O racismo pode ser entendido como um discurso ou uma doutrina que tenta legitimar a crença na existência de raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, e o biológico e o cultural. O racista registra de algum modo a sua crença ideológica quer para dominar, quer para inferiorizar negros, judeus ou pessoas de outras “raças”.

Na esfera esportiva, e tomando-se o futebol como objeto mais específico de análise, casos relacionados à discriminação racial se repetem. Muitas vezes o ato hostil praticado, seja por um atleta rival, seja por torcedores situados nas arquibancadas, passa por uma minimização. A discussão pública em torno dele, muitas vezes, é deslocada das práticas sociais e culturais para a terminologia jurídica mais apropriada.

No último mês, o Museu do Futebol realizou um encontro para reflexão sobre o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. A ideia de que o futebol é um ambiente onde os grandes processos de identidades se processam e que nos causa uma mudança de percepção foi colocada pela antropólogaLilia Schwarcz.

Para ela, o jogo explicita uma manifestação específica de uma modalidade de preconceito. A referência se refletia no documentário Preto Contra Branco (2004), dirigido por Wagner Morales, cujo cenário é o duelo de várzea entre moradores de dois bairros da periferia de São Paulo.

Desde os anos 1970, um grupo de moradores do bairro de São João Clímaco e da favela de Heliópolis, a maior da América Latina, organiza um jogo de brancos contra pretos no fim de semana que antecede o Natal.

A comunidade é altamente miscigenada, composta basicamente por mulatos. E a peculiaridade da partida é a auto-atribuição da cor pelo participante. Cada jogador se declara negro ou branco e “escolhe seu time”.



 

“Como no Brasil não temos uma determinação de raça, biológica, as pessoas acabam negociando e manipulando esses conceitos. E por isso usamos o conceito de raça social”, explica Lilia, nesta entrevista à Universidade do Futebol.

Ela defende a tese de que não há nenhum tipo de racismo bom – nem o brasileiro, que possui algumas especificidades, por não ser oficial, mas revelado em espaços da intimidade. Como os clubes de futebol.

“O que posso dizer é que a história e a cultura constroem uma espécie de segunda pele. Vão criando costumes, hábitos, que explicam muitas coisas. Mas nada disso é essência, nada disso é imutável, mas sim “esticável”, em minha opinião, histórica e culturalmente”, avalia, em referência à ginga do brasileiro e o talento para a modalidade e para a música.

Entre outros pontos, Lilia aborda a mudança da imagem do nosso país em relação às sociedades estrangeiras, a falsa ideia de democracia racial e o movimento global de conscientização e a posição de Pelé no processo de reelaboração da identidade negra.

“O Pelé enriqueceu, “ficou mais branco”, e não se sentia negro. E não se pode cobrar uma pessoa nesse sentido. Ele não se definia como negro”, acredita.

Universidade do Futebol – A senhora costuma dizer que no Brasil a definição de cor depende do contexto e do momento da pessoa que faz ou responde a pergunta. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lilia Schwarcz – Como no Brasil não temos uma determinação de raça, biológica, as pessoas acabam negociando e manipulando esses conceitos. E por isso usamos o conceito de raça social.

Enriquecer significa embranquecer, com raras exceções. De outro lado, há uma manipulação contextual. Dependendo de quem pergunta, a pessoa acaba alterando sua cor. Se ela é mais clara ou mais escura. E há também a situação social.

Dependendo da inserção da pessoa no local, ela manipula sua cor. No Brasil, cor é um contexto, é algo negociável.

Universidade do Futebol – O racismo brasileiro é diferente dos demais?

Lilia Schwarcz – Eu defendo a tese de que não há nenhum tipo de racismo bom – nem o nosso. Todos são perversos e deletérios, mas o brasileiro é um pouco silencioso, pois não é oficial, não está no corpo da lei, mas se revela nos espaços da intimidade: em clubes, restaurantes, na ordem do privado.

Universidade do Futebol – A noção estereotípica da identidade brasileira ainda está fixada ao dueto samba e futebol? Ou a imagem referente ao nosso povo, para os estrangeiros, passa por mudanças nos últimos anos?

Lilia Schwarcz – Vem passando por muitas mudanças, sim. Esse modelo criado nos anos 30, com samba, capoeira, futebol, e democracia racial, tem sido alterado pela imagem da violência.

Dou muitas aulas no exterior e a imagem do Brasil, em um momento, era esta: de país pacífico, exótico, bom de bola e bom de samba. Com o tempo, a marca das violências vem sobrepujando esse outro tipo.Os estrangeiros têm cada dia mais medo de ir ao Rio de Janeiro, algo a ver com essa imagem das favelas, do tráfico e de todo o resto.

               ‘Preto Contra Branco’ é pano de fundo para debate sobre discriminação racial no Brasil 
  

Universidade do Futebol – Tanto Mário Filho, quanto Gilberto Freyre, apontam relações da ginga do brasileiro com a miscigenação entre negros, índios e brancos, e o desenvolvimento da capoeiragem e do samba. Você também acredita que isso seja um dom ou uma habilidade inerente ao nosso povo, e consequentemente aos músicos e futebolistas?

Lilia Schwarcz – Eu acredito que existem especificidades culturais, e não biológicas. Assim como não compactuo com a ideia de raça como uma nação biológica. Existe apenas a raça humana.

O que posso dizer é que a história e a cultura constroem uma espécie de segunda pele. Vão criando costumes, hábitos, que explicam muitas coisas. Mas nada disso é essência, nada disso é imutável, mas sim “esticável”, em minha opinião, histórica e culturalmente.

Universidade do Futebol – O Chico Buarque, em uma crônica sobre futebol escrita por ele, chega à constatação de que o modo de agir dos jogadores sul-americanos os faz parecerem os donos da bola, em oposição aos europeus, donos do campo. Qual seu pensamento sobre isso?

Lilia Schwarcz – Na verdade eu não li essa crônica e também não sou uma especialista em futebol. O que posso dizer é que esse esporte acabou se convertendo em uma das expressões do povo brasileiro. E, como manifestação cultural, ganha especificidades próprias de seu país de origem.

Universidade do Futebol – Até que ponto uma conquista desportiva com a participação de cidadãos negros contribui para o desenvolvimento da consciência social como um todo no país?

Lilia Schwarcz – Penso que pode ocorrer até o contrário. O que vem acontecendo durante muito tempo é a ideia de que havia uma democracia racial, pois os negros faziam parte da música e do futebol brasileiro.

A existência de padrões culturais mestiçados não é uma explicação para a existência de discriminação racial.

Você não via negros ocupando lugar de destaques nas empresas. No Império mais do que no começo da República.

A situação começa a mudar, mas não creio que seja um elemento para a conscientização – esta vem de um movimento mais amplo e mais global.

Universidade do Futebol – Em 2009, pelo Flamengo, o Andrade foi o primeiro treinador negro a conquistar o Campeonato Brasileiro da primeira divisão. Pouco tempo depois, acabou sendo demitido. Por que o título de um dos clubes mais populares do país, comandado por um negro, não teve reflexos históricos diretos e imediatos?

Lilia Schwarcz – Eu vejo o futebol como uma expressão da sociedade como um todo. Eventualmente até um pouco menos rigorosa, por conta de não haver uma discriminação em relação à entrada de negros nas equipes de futebol. Esses jogadores, pela sua qualidade de jogo, conseguem alcançar determinados grupos.

Florestan Fernandes dizia que carregamos o mito da democracia. E este mito, de alguma maneira, poderia acabar atuando no sentido contrário à conscientização. Inclusive fazendo com que a população negra acreditasse nesta falsa questão.

Não que não tenhamos padrões de convivência social, racial e étnico. É importante destacar que isso não elimina a discriminação nos espaços sociais, do trabalho, uma discriminação regional, de natalidade, mortandade, etc. A questão continua imperante.



Andrade, o primeiro treinador negro a se sagrar campeão na história do Campeonato Brasileiro: "transferência" do reconhecimento para a sociedade como um todo inexistiu
 

Universidade do Futebol – A maneira de falar na terceira pessoa e o distanciamento em relação à luta racial direta foram fatores que contribuíram para que o Pelé se destacasse no futebol em nível mundial?

Lilia Schwarcz – Eu acho que ele mais uma vez é a expressão desta sociedade. O Pelé enriqueceu, “ficou mais branco”, e não se sentia negro. E não se pode cobrar uma pessoa nesse sentido. Ele não se definia como negro.

Essa mudança de posição do Pelé, que tem “ficado mais negro”, tem a ver com a mudança na sociedade brasileira, que está dando mais espaço para essa discussão, como a ocorrida no Museu do Futebol.

Essa questão fica legítima na fala de um rapaz que participou do debate e estava na platéia. Ele disse que era muito ruim ser negro e agora revelava ser bacana. É uma mudança na sociedade.

Esses agentes produzem mudanças. Mas não em relação ao Pelé, que era basicamente um “bom negro”, quase que um “bom selvagem”: se apresentava bem, se vestia bem, sem qualquer rasgo de tentativa de falar sobre uma causa negra.

Não o estou cobrando, o que seria muito cômodo de minha parte. Penso que essa mudança sentida é reflexo de um movimento de auto-estima, de afirmação, nacional e internacional, que se revela, também, no discurso daquele jovem citado, dizendo ter orgulho de ser negro.



Pelé em reflexão: figura de "bom negro", sem entrar profundamente em causas ligadas à discriminação racial

 

Universidade do Futebol – Qual o papel do Pelé no processo de reelaboração da identidade negra? O Bob Marley, por exemplo, era uma grande fã dele, assim como muitos povos africanos tinham seu imaginário incandescido com a passagem do Santos e da seleção brasileira por suas regiões...

Lilia Schwarcz – O Pelé representava algo que era além dele. Não tinha o papal de um agente crítico de discriminação, mas a cor dele falava mais forte. As pessoas o viam de outra maneira.

Há uma diferença entre o que você diz e como você é visto. Na sociedade brasileira, no caso, ele passou a ser visto como o “bom negro”, o bom exemplo, que não fazia críticas, não fazia escândalos.



'Santista' Bob sempre exaltou o Rei do Futebol: "Há uma diferença entre o que você diz e como você é visto", sinaliza Lilia

 

Universidade do Futebol – E o que o Ronaldo Nazário representou para a sua geração, e o que o Neymar pode representar?

Lilia Schwarcz – Como o Pelé, e nesse processo de mudança racial no Brasil e de negociação da cor, esses jogadores também negociam sua cor. O Pelé foi ficando mais negro, e por isso é importante dar uma temporalidade aos discursos dele. O mesmo vale para o Ronaldo.

Em um de seus discursos de início de carreira, que me recordo, o Ronaldo deu uma declaração que era branco. E o pai dele retrucou: “deixa de ser besta, garoto”.

Ele se sentia branco, pois tinha dinheiro, podia comprar o que queria. E depois fez o papel daquele que não se comporta bem em sociedade. Para muitas pessoas, então, voltava-se o discurso do negro vindo de favela, etc.

Como historiadora, costumo falar que sou um pouco como Conselheiro Aires: as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. E é difícil comentar sobre o Neymar.

Muitos jogadores recebem fortunas e representam todos os símbolos de uma sociedade na qual eles querem se incluir. É muito difícil cobrar deles um distanciamento crítico e uma adesão, ainda mais quando não se tem a cor tão determinada, como o Neymar.

Acredito que o mais prudente é aguardar um pouco para ver se este atleta quer desempenhar esse papel de líder da nacionalidade, projetando-se desta forma. É um conjunto de fatores. Claro que a personalidade é muito importante, mas também há um padrão, uma projeção do esporte, etc.

A fala do Neymar, com o tempo, deve repercutir, se ele conseguir se nomear internacionalmente. E o discurso de maior interesse, aquele que vai além da própria pessoa, do próprio ambiente de atuação, pode se confirmar, mas ainda é cedo.



Neymar levanta troféu e Ronaldo se apresenta ao Corinthians; negociação de cor e projeção como figura representativa compõem a trajetória de futebolistas

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Benê Lima