Como inspirar e guiar atletas a desenvolverem o próprio conhecimento do jogo de futebolMarcelo Augusto Antonelli / Universidade do FutebolIntrodução
O futebol vem evoluindo e muitas são as discussões atuais sobre metodologias de treinamento. A necessidade de um ambiente de desenvolvimento mais eficaz durante a formação de jogadores também está ganhando cada vez mais espaço. No entanto, pouco se discute sobre como aproveitar o tempo fora do espaço tradicional dos treinos para desenvolver as capacidades táticas dos atletas.
Este artigo visa oferecer uma proposta prática, embasada em simples princípios metodológicos e conceitos de psicologia, de como guiar atletas a desenvolverem-se fora dos campos.
A ideia principal é ensinar os atletas a analisarem jogos e situações de forma elaborada, para que possam como consequência desenvolver as próprias capacidades táticas. Um valioso recurso nesse processo serão vídeos disponíveis na internet e/ou no acervo do clube.
Estimulando o desenvolvimento de análises
O desenvolvimento das capacidades táticas sempre foi meu objeto principal de estudo. Para otimizar o desenvolvimento dessas capacidades, alguns aspectos me pareciam fundamentais: encontrar uma metodologia eficaz como base para a elaboração dos treinos, organizar os treinos de maneira que utilizem o tempo da forma ideal, buscar atividades que consigam motivar os jogadores e favoreçam um desenvolvimento gradual da percepção dos elementos do jogo e consequente sucesso no processo de tomada de decisões.
Até aí, provavelmente nenhuma novidade, já que esse tema vem sendo profundamente discutido. Mas, mesmo procurando otimizar o tempo disponível durante os treinos, a dificuldade de alguns jogadores para “compreender” certos aspectos do jogo – e observando de forma particular as dificuldades táticas de tantos brasileiros que jogam no exterior – me fizeram refletir sobre formas “alternativas” para melhorar o entendimento de certos conceitos táticos. Uma dessas alternativas seria encontrar soluções para aproveitar o tempo fora do espaço normal de treinos, criando condições favoráveis à capacidade dos jogadores de se desenvolverem.
Uma prática comum já adotada por diversas equipes é quebrar o jogo em “pedaços” e analisá-los para os atletas, mostrando as decisões que foram tomadas e, quando necessário, explicando as decisões que deveriam ter sido tomadas. No entanto, os resultados não se mostraram tão eficientes, visto que vários atletas continuavam cometendo erros táticos parecidos.
Diversos podem ser os fatores para que este tipo de estratégia não seja eficaz. Por mais que se procure criar um ambiente receptivo a comentários e participações, quando a análise é feita na frente de toda a equipe, às vezes os jogadores estão mais preocupados em não “parecerem tolos” diante dos companheiros do que desenvolverem conceitos. Muito dificilmente um jogador dirá na frente dos outros que não compreendeu uma explicação feita pelo treinador de como a jogada deveria ter sido desenvolvida, já que isso reforçaria na frente do grupo sua incapacidade de resolver uma determinada situação.
Em análises feitas individualmente não existe a pressão do grupo, mas, mesmo assim, a necessidade de defender a própria autoestima (Coopersmith, 1967) (Heatherton & Polivy, 1991) pode também desviar a atenção no processo. Mais do que esses fatores, frequentemente os jogadores não estão realmente desenvolvendo conceitos, somente recebendo informações sobre erros cometidos ou acertos que tiveram em situações específicas. Essa prática é com certeza útil, mas não ideal sob um ponto de vista de desenvolvimento.
Mais eficaz do que receber análises vindas dos treinadores ou ter que responder prontamente a perguntas, seria interessante os jogadores desenvolverem as próprias capacidades de análise e criarem respostas nas quais acreditaram plenamente, já que eles mesmos as desenvolveram e, consequentemente, serão transferidas para dentro dos gramados.
Ao invés do discurso direto, frequentemente utilizado durante treinos e palestras, provavelmente pela simplicidade e economia de tempo, outros recursos pedagógicos como a descoberta guiada de Sócrates (Slavin, 2006) ou trabalhos de grupo poderiam produzir melhores resultados, favorecendo reflexões.
O treinador eficaz sabe usar os recursos disponíveis para alcançar os resultados desejados. Vivemos uma época em que a informação e as imagens se espalham pelo mundo em segundos, que grande parte da população tem acesso à internet e e-mail, o que possibilita que uma série de recursos sejam utilizados como auxiliares no desenvolvimento dos jogadores.
Vídeos de partidas, highlights e gols de clubes e nações de todo o mundo estão disponíveis gratuitamente em diversos sites da internet. Motivar e guiar os atletas a desenvolverem análises de algumas dessas imagens pode ser um valioso recurso no processo de desenvolvimento tático. Para isso o treinador terá que se utilizar de alguns conhecimentos de psicologia, metodologia, conhecimento do esporte e um pouco de criatividade para agir respeitando cultura, sexo, idade e valores dos atletas da equipe.
Vamos ilustrar com um exemplo prático: sua equipe tem um atacante que, apesar de habilidoso, tem dificuldades de movimentação sem bola. Vamos supor que sua equipe não é profissional e você, treinador, não tem a possibilidade de simplesmente obrigá-lo a fazer análises de jogos. Até porque, mesmo que essa seja uma opção, os ganhos serão maiores se o jogador estiver motivado a realizar esse tipo de trabalho.
Então, o primeiro passo é convencê-lo dos possíveis ganhos de se fazer esse tipo de análise. A cultura do futebol brasileiro supervaloriza “o talento”, e trabalhar para se desenvolver em qualquer área que não seja a preparação física não é bem visto pela maioria dos atletas, já que isso seria um sinal de “falta de talento” e ser visto dessa forma pode ser também prejudicial a autoestima do atleta. (Brém S., Fein S. & Kassin S. 2005). Começar a conversa com “você precisa melhorar”, em geral não será tão eficiente quanto uma proposta para “se beneficiar da análise de alguns dos melhores do mundo”. Como passo inicial, peça-lhe para assistir a uma partida de seu atacante predileto e descrever seus movimentos principais.
Após receber feedback de uma primeira análise, peça-lhe que assista a uma nova partida focalizando determinados aspectos que você julga importante, como por exemplo: com qual frequência o atleta inicia a corrida antes do passe para receber a bola em velocidade? Como ele recicla essas corridas quando não recebe a bola? Em quais momentos ele troca de posição com outros atacantes? Com qual frequência ele se movimenta nas costas dos defensores para sair do campo visual destes?
O objetivo é fazer com que o atleta preste atenção em pontos que normalmente poderiam passar despercebidos. Além do aspecto motivacional de analisar um ídolo, outra vantagem desse tipo de trabalho é que não ataca a autoestima do seu jogador, já que você não o estará julgando. Possivelmente, já nas primeiras análises, o jogador se acorrerá de que esse tipo de trabalho poderá fazê-lo começar a ver diferentes aspectos do jogo; o que poderá incentivá-lo a progredir fazendo análises mais complexas ou de diferentes situações.
É importante que o treinador saiba como progredir com os tipos de análise, de forma que seja realmente motivante para o atleta, até alcançar os objetivos pretendidos. Por exemplo, como uma terceira etapa, para desenvolver um tipo específico de movimentação sem bola, o treinador pode pedir ao atleta que compare as análises feitas da movimentação do seu ídolo com outro jogador profissional que realiza frequentemente o movimento que o treinador está procurando desenvolver em seu atleta. Vídeos de highlights do Youtube da equipe do jogador a ser analisado pode ser uma fácil opção para conseguir os dados para a análise. A dica será focalizar especificamente na movimentação sem bola desse atleta e posteriormente de outros com diferentes estilos.
Quando o treinador, baseado nas análises feitas pelo atleta, acreditar que ele tem ou adquiriu conhecimentos suficientes para analisar seu próprio desempenho, ele poderá começar esse processo. É importante relembrar que analisar o desempenho do seu atleta é uma tarefa mais delicada, já que a autoestima do jogador estará em questão. Uma estratégia frequentemente eficaz para a elaboração desse tipo de análise é pedir ao atleta que, baseado nos conceitos que ele mesmo apresentou, faça uma autoanálise das principais qualidades e metas de desenvolvimento. As chances de aceitação de um “desafio” serão muito maiores se partirem do próprio atleta. A partir daí, treinador e jogador poderão, juntos, discutir formas de alcançar os objetivos. Após conquistar resultados, como consequência de um trabalho que treinador e jogador montaram juntos, existe uma grande possibilidade que o jogador esteja mais disponível para ouvir sugestões feitas pelo treinador e trabalhe aspectos que não conseguiu individualizar sozinho.
O exemplo dos parágrafos anteriores visa apenas ilustrar uma progressão em determinada situação e não criar uma fórmula a ser seguida. A realidade pode ser muito diferente de caso para caso. Alguns atletas exigirão um cuidado muito grande com a autoestima, enquanto outros poderão progredir rapidamente pelos estágios. Os recursos também podem apresentar grande variação: enquanto algumas dessas análises poderão ser escritas à mão em papel e simulações táticas feitas movendo-se pedras sobre um pedaço de terra, outros treinadores poderão se comunicar por e-mail, mensagens online ou redes sociais e pedir aos atletas que criem animações táticas em softwares próprios para isso (inclusive o Brasil possui softwares muito bons e de fácil manuseio).
Outros tipos de estratégias, como trabalhos de análise em grupo podem ser utilizados. Por exemplo, após dividir a equipe em três grupos: o primeiro irá analisar os princípios defensivos da seleção inglesa, o segundo da seleção italiana e o terceiro da seleção brasileira. Utilizando-se do princípio de que “a melhor forma de aprender algo, é tendo que ensinar o assunto”, cada grupo terá que explicar aos demais os conceitos e características principais de cada nação.
O treinador pode participar do processo de criação da apresentação de cada grupo, ajudando a encontrar os resultados desejados durante a fase de elaboração, para que durante a apresentação final na frente da equipe, todos tenham sucesso e tenham sido alcançados os objetivos buscados. Pode-se encontrar tempo para esse tipo de trabalho até mesmo durante uma viagem de ônibus, ou em um dia livre no hotel.
Trabalhos em grupo não só podem ajudar os atletas a adquirirem conhecimentos táticos, como gerar também outros benefícios para a equipe, já que favorecem a integração entre os atletas, desenvolvimento de termos e conceitos que poderão ser utilizados durante as partidas e até mesmo a possibilidade de progresso na comunicação para algum atleta que se sinta mais seguro explicando conceitos na teoria do que apontando erros de companheiros durante a partida. Como fator negativo, como já ciatado anteriormente, trabalhos na frente de companheiros podem fazer com que alguns atletas se preocupem mais com a aparência das respostas do que o conteúdo desenvolvido.
Não importa qual seja a estratégia utilizada, o importante é inspirar o jogador a olhar o jogo e “ver” mais do que está acostumado. Isso ajudará no seu desenvolvimento tático e, consequentemente, no próprio desempenho. Na verdade, esses tipos de estratégias podem ajudar até mesmo treinadores a se desenvolverem, desde que consigam propor a si mesmos tópicos diferentes do que normalmente seria o foco de atenção. Além disso, as análises feitas pelos jogadores podem chamar a atenção para pontos importantes na equipe que podem ser melhorados ou mais trabalhados e ajudam o treinador a compreender o processo de raciocínio de seus jogadores.
Finalizando, vale a pena ressaltar que as análises não necessitam serem restritas a aspectos táticos. Também podem ser estudados aspectos técnicos, como por exemplo, movimentação com passadas pequenas e rápidas de goleiros ao se preparar para uma defesa; ou técnicas de aproximação e posição de corpo de jogadores durante o processo de defesa. Essas análises podem ser a conexão entre teoria e prática no futebol que permitam a muitos atletas otimizar seu potencial.
Considerações finais
Um dos mais importantes princípios dessa metodologia é que os jogadores aproveitarão muito mais os conceitos que eles tiveram participação no desenvolvimento do que os conceitos que lhes foram simplesmente passados durante treinos ou conversas. Esse processo ajuda a evitar uma recorrente no futebol que é o treinador gritar “Eu já te falei mil vezes...” Mais importante do que falar mil vezes, é o jogador compreender e acreditar em um determinado conceito.
Para os que, ao lerem este artigo, pensam “além de não termos recursos para isso, essa não é a cultura brasileira, quem tentar fazer isso não será respeitado pelos atletas”, vale lembrar que o custo disso pode ser muito baixo ou nulo. O desenvolvimento da tecnologia fornece uma grande ferramenta de acesso gratuito para um conhecimento muito valioso no mundo do futebol, que é a forma e detalhes de como jogam as equipes e como se movimentam os jogadores dentro das plataformas de jogo. Com relação a nossa cultura, basta ler pesquisas ou estórias sobre professores que devem ensinar em salas de aula onde, por diversos motivos, os alunos são considerados “incapazes ou desinteressados”. Enquanto a maioria dos professores não consegue atingir seus objetivos, outros são capazes de compreender a cultura local, respeitar o conhecimento prévio e com conhecimento de psicologia, metodologia e criatividade engajar os alunos (no caso, atletas) e atingir grandes resultados.
Tenho convicção de que cedo ou tarde clubes brasileiros irão investir em profissionais, principalmente em suas categorias de base, comprometidos em buscar novos métodos para otimizar o desenvolvimento de seus atletas; e, como consequência desse processo, colherão em pouco tempo os frutos do trabalho. Obviamente propostas de desenvolvimento fora de campo não substituem o treinamento em campo, afinal não basta compreender, mas ser capaz de executar; no entanto, podem ser uma forma eficaz de complementar o aprendizado convencional entre as quatro linhas.
Espero que este artigo possa contribuir para motivar alguns treinadores a uma constante reflexão sobre a possibilidade de inovarem seus métodos de ensino. Com certeza, vários dos leitores são profissionais do futebol, e comentários com ideias sobre como motivar atletas a se desenvolverem serão muito bem-vindos.
Bibliografia
Brém S., Fein S. & Kassin S. (2005) Social Psychology. Boston, MA: Houghton Mifflin.
Coopersmith, J. T. (1967). The antecedents of self-esteem. San Francisco: Freenan.
Heatherton, T. F. & Polivy, J. (1991). Development and validation of a scale for measuring state self-esteem. Journal of Personality and Social Psychology, 60, 895-910.
Slavin, Robert E. (2006) Education Psychology: Theory and Practice.
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Benê Lima