Caro amigo e colega,
Quando escrevi o prefácio do primeiro livro do nosso querido Luís Lourenço, sobre o meu amigo, logo adiantei, sem receio, que o José Mourinho seria para o treino e orientação, de uma equipe de futebol, o que foram, para a prática deste jogo, o Pelé e o Maradona.
Eu sei que, por vezes, quando me refiro à sua pessoa, posso acentuar excessivamente (para os meus leitores) a riqueza da sua personalidade, descurando a dimensão relacional, ou seja, esqueço que o seu pai, o Manuel Fernandes, o Bobby Robson, o Louis Van Gaal, foram seus mestres na arte de bem liderar uma equipe de futebol.
Emmanuel Levinas, no livro Totalidade e Infinito, afirma que a transcendência só é possível quando saímos do absoluto do mesmo. Todos nós somos natureza e cultura, memória e profecia. Isaac Newton afirmou a um seu admirador: “Se consegui ver mais longe, foi porque me coloquei sobre os ombros de gigantes”. Mas é evidente que, no gênio (como você é, enquanto treinador de futebol) os paradigmas tradicionais, por todos aceitos, rapidamente envelhecem, para despontar, no lugar do normal e do habitual, o que o ser humano em movimento intencional tem de insólito, de perpetuamente renovado, de imortalmente juvenil.
Nenhum gênio vê as coisas, como normal e habitualmente, se veem. Se assim fosse, ele deixaria de ser gênio. Se assim fosse, não haveria nele as sementes do futuro.
Há, de fato, um futebol, antes e depois de José Mourinho. E por quê? Porque todos os treinadores que o precederam e que fizeram escola não sabiam de futebol? De modo nenhum! Alguns deles até sabem mais de futebol do que o meu amigo. Só que, ao saberem só de futebol, descambam no erro da especialização, ao jeito do cartesianismo e do positivismo, e ficam a saber pouco de futebol.
O treino, que o meu amigo repudiou e em que Matveev pontificava, traz-me à lembrança o Herberto Helder de Photomaton & Vox, onde pode ler-se: “Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes menor. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objetivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam”.
Era no físico, no biológico, no somático, que o treino tradicional investia, sobre o mais. E o meu amigo, logo desde o primeiro ano na universidade, como Luís Lourenço o sublinhou, na sua tese de mestrado, era à luz do paradigma da complexidade que pretendia orientar o treino dos seus jogadores e, por isso, num jogador de futebol, como pessoa, ou numa equipe de futebol, como totalidade, é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer as partes.
Por outro lado, o José Mourinho sabia (sabe) também que, de um ponto de vista sistêmico-organizacional, o todo é maior do que a soma das partes, ou seja, a operacionalização do futebol faz-se com o individual contextualizado num todo, onde cabem a equipe, os jogadores que a compõem, os treinadores e os seus métodos, o clube e a sociedade donde o clube emerge. É porque tudo tem a ver com tudo que o diálogo é transversal ao todo. E assim o jogador faz-se, evolui, como pensamento em ato, onde movimento significa o que eu sou como pensamento da equipe. Cada jogador, numa equipe, é a expressão corporal do pensamento de um todo.
José Gil, a propósito do teatro-dança de Pina Bausch, no livro Movimento total – o corpo e a dança, fala-nos de uma “géstica do pensamento”. Numa equipe de futebol, percebe-se o que pensam os jogadores, através da sua motricidade. A Inter (de Milão) eliminou da Champions League o famoso Barcelona de Guardiola, de Xavi e de Messi. Para mim, hoje, o Xavi e o Messi não temem cotejo com o que de melhor o mundo do futebol apresenta. Só que o meu amigo é o melhor treinador do mundo. E, assim como os gênios Picasso, Dali, Miró inventaram novas linguagens plásticas, também o meu amigo inventou a linguagem onde os seus jogadores se transformam na expressão corporal do gênio do seu treinador. E desta forma nasce a compreensão de uma inesperada cultura tática, a consciência de um grupo, a certeza de uma solidariedade... inabaláveis!
Nietzsche, no seu livro Para além do bem e do mal, refere que há uma relação inseparável entre a linguagem e a experiência – é que só se sabe aquilo que se vive! Os seus jogadores seguem-no, o pensamento do José Mourinho paira por sobre a sua motricidade, porque eles sabem que, mesmo não correndo, nem saltando, nem rematando com eles, o meu amigo vive tão intensamente o que fazem, em campo, que tem dos seus atos uma experiência física e orgânica.
No fim dos jogos é manifesto, ao contemplar o seu cansaço, que teve do jogo uma tensa e intensa experiência corporal. A fadiga, no meu amigo, é outra forma de sentir a sua equipe.
Estou certo de que, neste momento, a alegria dos jogadores da Inter, a sua abnegação, a sua grandeza de ânimo, decorre também da admiração que nutrem pelo gênio do seu treinador. Porque são treinados por José Mourinho.
Há neles o culto, não de uma arrogância truculenta e agressiva, mas de um futebol que é sinal de inteligência e de vontade e de criatividade. Afinal, um futebol que não é só atividade física, nem é só educação física, mas o ímpeto da luta, o ardor do ideal – em suma, educação integral.
A Inter vai ser campeã da Europa! Dou-lhe os parabéns, por isso. “Mas (dir-me-ão) o jogo final ainda está por disputar”. O Bayern de Munique é, de fato, adversário dificílimo. Mas a Inter tem uma vantagem: os seus atletas não são adestrados só para repetir, mas convidados também para sofrer e para criar. O futebol é uma imaginação com regras. A diferença entre as várias equipes, para além dos aspectos econômico-financeiros, situa-se, na qualidade dos jogadores, capazes de repetir com imaginação (há quem só repita, sem imaginação). E na qualidade do treinador que orienta a repetição e estimula a imaginação.
É que no futebol jogado há mais caosalidade (de caos) do que causalidade (de causa). Diante do caos, a imaginação é essencial – a imaginação do Doutor José Mourinho. Por isso, eu ousar antecipar a vitória do seu clube, no campeonato europeu de futebol.
Saber mais é ser mais, não é repetir o que está nos livros. Dizia o Padre António Vieira: “isso não é saber, é lembrar-se”.
E termino, adiantando que o vejo como remédio seguro às patologias que afligem o Real Madrid...
Ex corde
Manuel Sérgio
(texto adaptado ao português escrito no Brasil)
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Benê Lima