Aprenda a ser comentarista
Aquela foi uma noite estranha. Vagávamos como espíritos condenados, nós quatro, sem saber aonde ir ou o que fazer. O Brasil acabara de ser eliminado da Copa da Alemanha pela categoria daquele jogador de um único toque na bola, mas toque macio, toque desconcertante, aquele Zidane, e nós, eu, a Fernandinha Zaffari, o André Feltes e o Mário Marcos, nós nos descobrimos na periferia de Frankfurt, um lugar de evidente vocação industrial, mas ermo de vida noturna. Era como se fosse o interior de Sapucaia sem Trensurb às duas da madrugada.
Todos os outros da equipe da RBS haviam retornado ao hotel, nós não. Nós terminamos de mandar o nosso material muito depois do encerramento da jornada da rádio, muito depois da conclusão do trabalho de todos os demais, e agora queríamos achar um lugar em que pudéssemos comer algo e, principalmente, beber
umas Paulaners geladas e cremosas. Mas onde? Onde no interior profundo da Sapucaia alemã?
Errando de lá para cá, catando táxis no asfalto, acabamos no saguão do gigantesco aeroporto de Frankfurt, um dos maiores do mundo e, àquela altura, um dos mais desolados. Caminhávamos vergados pelo peso das mochilas que continham os nossos laptops e pela sensação vazia de fim de festa. A derrota do Brasil nos abatia nem tanto pelo fracasso esportivo, mas pela consciência de que nossa aventura europeia, de certa forma, chegava ao fim.
Nossos amigos iriam embora e poucos de nós restaríamos no Velho Mundo. Foi então, quando estávamos em silêncio compungido havia já uns 10 minutos, que a Fernandinha Zaffari falou:
– O Brasil perdeu porque não povoou o meio-campo e porque deixou o adversário gostar do jogo.
Paramos. Olhamos para ela. Hein?
Nos minutos seguintes, Fernandinha relatou-nos que, durante a Copa, havia assimilado alguns dosprincípios básicos do comentário esportivo. Entre eles os dois enunciados fundamentais que ela professara:
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1a Quando a partida começar é hora da profilaxia. Diga, em tom de séria advertência, que o time não pode deixar o adversário gostar do jogo.
2a Em meio à partida, se o time estiver mal, é hora da terapêutica. Lamente que seu aviso não tenha sido acatado, reforce que, como você havia predito, o adversário “gostou do jogo”, e receite: “É preciso povoar o meio-campo”.
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Perfeito. Agindo assim, você não erra. Agora, quatro anos depois daquela noite que começou melancólica e terminou instrutiva, às vésperas de outra Copa do Mundo, inspiro-me na sabedoria da Fernandinha para pôr em prática uma ideia que havia muito corroía-me o cérebro: vou implantar uma oficina de comentarista de futebol.
Você quer ser um Professor Ruy, um Wianey, um Maurício Saraiva? Quer ganhar a vida assistindo a jogos de futebol e ainda ser considerado inteligente? Frequente a Oficina. Para provar a eficiência de nosso curso, reproduzo abaixo algumas lições. Quando você estiver atrás do microfone ou em frente às câmeras diga o seguinte:
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1b “É preciso adiantar a marcação”. Essa observação é preciosa, porque você pode fazê-la em qualquer circunstância. A marcação já está adiantada? Pouco importa. A marcação sempre pode estar MAIS adiantada.
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2b “O time tem que atacar pelos lados do campo”. Atenção: não vá falar “pelas pontas”. Pelas pontas é antigo, é do tempo do Cafuringa. “Lados do campo” é bonito e impressiona. Se você por acaso achar que jogar pelos lados do campo contradiz a orientação, 2a é porque você não entende lhufas de comentário esportivo. O comentarista tem de dizer o que fazer, não como fazer. Portanto, diga apenas que o time tem de povoar o meio-campo e, ao mesmo tempo, jogar pelos lados, e o time que se vire.
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3b A partir do meio do segundo tempo, se um jogador estiver jogando mal, diga que ele cansou. Quem poderá afirmar que não?
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4b Em qualquer oportunidade, antes, durante ou depois do jogo, diga que o time tem de tirar os espaços do adversário. Se o time perdeu é porque não tirou. Se ganhou, tirou.
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5b Na hora de escolher o melhor em campo, tente sempre escolher um volante. Um atacante goleador é muito óbvio. O verdadeiro comentarista é aquele que vê coisas que os outros não veem. O mundo acha que aquele volante não joga nada. Você acha. O técnico o escala. Logo, você e o técnico veem coisas que ninguém vê.
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Vocês são sábios. O mundo, burro.
Eis aí alguns dos ensinamentos da nossa oficina. Há muitos outros, mas só os revelarei durante o curso.
Em breve abriremos as inscrições!
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Benê Lima