Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

segunda-feira, outubro 03, 2011

Lendo o jogo: o futebol enquanto linguagem

Sistematizando um modelo de leitura dos encontros e desencontros que ocorrem dentro de campo: a contraposição do que a TV conta nas transmissões
Marcio Telles da Silveira*

Resumo

Na era em que até narradores, comentaristas e repórteres entram em contato com o futebol sobretudo através da televisão, aprendemos a pensar o jogo como um telefilme, um blockbuster estruturado sobre a narrativa audiovisual. Acreditando que toda partida tem sua história para contar, clamamos pela necessidade de encontrar a identidade do futebol independentemente da dramatização imposta pela TV, ou seja, de sua ethicidade televisiva. O objetivo do presente artigo é sistematizar um modelo de leitura dos encontros e desencontros que ocorrem dentro de campo para que possamos contrapô-los àquilo que a TV conta nas transmissões de futebol.

Introdução

“Independente dos motivos de cada emissora, a oferta de futebol na TV é enorme”, conclui Felipe dos Santos Souza na Revista Trivela, em matéria que relata a presença cada vez maior de “campeonatos alternativos” nas grades das emissoras.

No Brasil, cerca de 400 partidas de futebol das duas principais divisões do campeonato nacional são transmitidas anualmente, em canais abertos e fechados, acompanhadas por mais de 100 milhões de pessoas todas as semanas. A Fifa, entidade máxima do esporte, projetava que a Copa do Mundo deste ano seria assistida por 30 bilhões de pessoas em 214 países e territórios. A partida final da penúltima edição, realizada em 2006 na Alemanha, teve audiência de 715 milhões de pessoas .

É nesse contexto que viemos analisando o futebol: enquanto produto televisivo de grande apelo midiático. Em ensaio anterior, introduzimos algumas questões que vêm nos incomodando, sobretudo a existência de uma ethicidade do futebol na televisão que difere da identidade do futebol praticado dentro de campo.


Em era em que até os narradores, comentaristas e repórteres acessam o futebol através da televisão, evitando o contato com o estádio, somos instruídos a pensar o futebol como um jogo tão dinâmico quanto um filme blockbuster, dotado de heróis e vilões, estruturado sobre a narrativa própria do audiovisual.


Ao longo daquele ensaio, clamamos várias vezes pela necessidade de entendermos o futebol independentemente da televisão, ou seja, buscando uma identidade própria que permita compreendê-lo enquanto código dotado de significados. Pois acreditamos que toda partida de futebol tem sua história para contar, e que ela exista independentemente da dramatização imposta pela televisão.

WISNIK, citando Tostão, chama a atenção para a necessidade de ‘ler’ cada partida como um texto em si, aparte das leituras sobrepostas pelos meios de comunicação que, não raro, mais escondem o jogo do que o revelam. Para o autor,
 

“prestar a atenção no jogo como um todo, como uma partitura, como uma trama onde cada detalhe diz algo sobre o conjunto, como um texto cifrado e cheio de enigmas, soa como atitude quase esotérica, deslocada e bizarra. Mas é, de certa maneira, a única forma de acompanhar o lugar menos evidente para onde o acontecimento real do futebol se deslocou e onde se esconde. Pode-se dizer que o estilo crítico de Tostão implantou com autoridade, na discussão do futebol atual, um procedimento de leitura do jogo que corresponde ao melhor estilo de um crítico literário.” (WISNIK, 2008, p.401, grifo meu)
 

O futebol já foi tratado como informação por SIMÕES (2009). Agora, acatando a sugestão de Tostão, iremos tratá-lo enquanto linguagem, tentando criar um procedimento de leitura do jogo que irá nos auxiliar para compreender o jogo para além dos sentidos instaurados pela montagem televisiva.

Tal modelo será baseado em uma das múltiplas leituras metafóricas do futebol empreendidas por FRANCO JÚNIOR em seu livro “A Dança dos Deuses” (2007). Conferindo ao futebol o mesmo estatuto de arte performática que existe na dança (e no teatro), este autor observa que, antropologicamente, dança é Linguagem. Logo, surge a constatação de que futebol é também uma dança,
 

“constituída de gestos técnicos, precisos, não aleatórios, de controle do espaço, do tempo e do Outro... No futebol, como em toda dança, o corpo é instrumento de comunicação, de dominação, de excitação, de sublimação. E também de entrega, de auto-abandono, de cooperação”. (p. 226)
 

Em artigo recente na Veja, Roberto Pompeu de TOLEDO (2010) foi perspicaz em afirmar que “não há pior lugar para se assistir a um jogo de futebol do que no estádio”, ressaltando a quantidade de sentidos instaurados pela máquina. Porém, operando independente dela, existe um sistema de códigos dotado de significados próprios. É este o objeto deste trabalho.

1. Língua-futebol e fala-futebol

Entendendo a Língua como instituição social, convencionada, inatingível pelo indivíduo; e a Fala como expressão individual a partir das possibilidades disponibilizadas pela Língua, diríamos que a Língua-futebol é um sistema composto por todas as possibilidades aceitas entre as quatro linhas. Mas não apenas as possibilidades oferecidas pelas 17 regras oficiais, legitimadas, e sim somadas a essas todas as outras práticas e habilidades táticas (posicionamento, visão de jogo, etc.), físicas (resistência, antecipação, etc.) e técnicas (o drible, o chute de trivela, o desarme, o carrinho, etc.) necessárias para jogar futebol. Ao selecionar e combinar elementos deste acervo, cada jogador instaura sua Fala-futebol.

Como a langue de Saussure, este acervo da Língua-futebol não está completamente acessível aos seus falantes, mas constitui-se da soma de sinais depositados em cada um deles. Isso faz com que um jogador crie um novo movimento – a bicicleta de Didi, por exemplo – que depois passará a fazer parte do acervo universal da língua-futebol , já que é um movimento permitido dentro deste conjunto de “regras e possibilidades”. É o mesmo processo que acontece com as gírias no português, no inglês, etc.

Ainda que a habilidade de cada jogador seja importante para o seu domínio da linguagem – e, consequentemente, para o tamanho de seu acervo – o mais interessante é pensar na necessidade técnica e tática de cada posição, que especializa o conhecimento de cada jogador profissional, dependendo de sua posição (função tática). Podemos pensar nestas linguagens técnicas dentro da Língua-futebol como as linguagens especializadas dentro de uma Língua: jurídica, médica, científica, etc.

Ou seja, enquanto que algumas habilidades são universais para expressar-se no futebol – o passe, por exemplo – outras são específicas de certas posições ou executadas com mais habilidade apenas por especialistas. Ainda que um zagueiro possa chutar a gol, a função para qual foi talhado não é esta e, portanto, será muito mais importante que ele saiba executar desarmes com habilidade do que tentar praticar algo que não domina.

Por ser constituída de atos individuais e de múltiplas expressões, a Fala é sempre imprevisível. Seus exemplos de vanguarda podem ser imitados, mas nunca um falante poderá executar com perfeição a fala típica de outro – exatamente como a nossa fala, soma de todos nossos sotaques, cacoetes, costumes e traços de personalidade. É por isso que apenas Robinho pedala, apenas Rivelino é mestre no elástico, apenas Beckham cobra faltas daquele jeito e apenas Pelé é Pelé. Como escritores habilidosos, cujas cópias parecem insossas e mercenárias.

Sendo, como já dito, o futebol uma dança, e se toda dança é comunicação instrumentalizada pelo corpo, entende-se que é necessário um autocontrole excelente dos movimentos para melhor expressar-se. A neurobiologia indica serem a fala e a habilidade motora regidas pelos mesmos centros cerebrais. Logo, FRANCO JÚNIOR propõe que pensemos o futebol como “linguagem ao mesmo tempo natural (correr, fugir, enganar, chutar e pegar) (...) e artificial (regra para organizar a representação moderna daqueles atos primordiais)” (p. 349).

Portanto, por essa dupla natureza, podemos afirmar que a Língua-futebol não se restringe apenas àqueles que os dominam (os jogadores). O ato infantil de correr atrás de uma bola e o reflexo quase inconsciente de chutar uma pedrinha no chão, também podem ser abordados como indícios da Língua-Futebol.

Podemos conceber o futebol seguindo a teoria behaviorista do linguista norte-americano Leonard Bloomfield: “é sempre um estímulo externo que leva o primeiro locutor a falar, o que provoca a reação de um segundo e assim por diante” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p.350). 

Ou seja, a Língua-futebol é sistema de valores, pois uma regra só vale com relação à outra. O futebol é sempre diálogo: depende dessa troca entre dois falantes para existir. Os dois exemplos anteriores – correr atrás de uma bola e chutar uma pedra – ainda que sejam da esfera da Língua-futebol, não podem ser considerados enquanto tal, pois não existem as ações dos interlocutores. Se, nos casos acima, alguém interceptasse a bola da criança ou chutasse de volta a pedra, começariam a se instaurar os movimentos da Fala-futebol.

Para ler o material na íntegra, clique 
aqui.


*Jornalista formado pela UFRGS. Mestrando em Comunicação e Informação (UFRGS), integrante do Grupo de Pesquisa Semiótica e Comunicação. Pesquisa as relações entre futebol e televisão.

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Benê Lima