Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

sábado, outubro 23, 2010

A lenda da lenda [sobre Pelé]

A lenda da lenda
Nestes 70 anos, a trajetória de Edson Arantes do Nascimento até a construção do mito Pelé
Heitor Tonon

Enquanto a Segunda Guerra Mundial manchava o solo europeu com sangue, o futebol mundial se encontrava estagnado nas proximidades dos dias 21 e 23 de outubro de 1940.

Não existiu qualquer fato político relevante naquele dia. Nenhuma grande vitória do eixo ou dos aliados foi computada, assim como no Brasil era apenas mais um dia normal. Mas seria aquele dia que mudaria a história e o rumo do futebol brasileiro.

Dois anos antes, a Itália vencera o segundo Mundial entre seleções, competição que seria interrompida pelos próximos 12 anos devido à guerra. O retorno da Copa do Mundo se deu no ano de 1950, em solo Brasileiro.

Na cidade de Três Corações, no interior do estado de Minas Gerais, nascia o garoto Edson Arantes do Nascimento. Se dia 21 ou dia 23 não se sabe ao certo. O que se sabe é que, também, nascia a lenda que o resto do mundo conheceu anos depois como Pelé.

O Uruguai protagonizou a primeira lembrança amarga do recém-inaugurado Estádio Municipal Mário Filho (o Maracanã foi construído para aquele Mundial) no Rio de Janeiro ao vencer a seleção brasileira na decisão do torneio por 2 a 1, no que seria a derrota mais sentida em toda a história do país do futebol, que ficou com o vice-campeonato diante dos olhos de aproximadamente 150 mil brasileiros.

Com dez anos, Pelé ainda via seu pai – João do Nascimento, também jogador – atuar quando o 'complexo de vira-lata' assolava o fã de futebol.

Seis anos depois, com quinze de idade, Pelé chegava ao Santos Futebol Clube, e em dois meses já atuava pela equipe principal da Vila Belmiro. Em 1957, o menino do interior de Minas Gerais vestia o manto que o consagraria de vez: a camisa amarela da seleção brasileira, com a qual logo conquistou a Copa Roca sobre a Argentina.

Neste meio tempo, o Brasil acumulara mais um insucesso na Copa do Mundo de 1954, conquistada pela Alemanha Ocidental em uma grande zebra contra a fantástica Hungria de Ferenc Puskas. Agora, o torneio se dirigia para a Suécia, em 1958. Mas desta vez, o futuro rei estaria lá.

Dois jogos, uma vitória sobre a Áustria e um empate sem gols contra a Inglaterra. Este empate foi o momento crucial para que Pelé assombrasse o mundo.

Insatisfeito com o resultado obtido contra os britânicos, o então comandante Vicente Feola alterou sua esquadra, escalando entre os 11 iniciais Zito, Garrincha e Pelé contra a poderosa União Soviética. O primeiro resultado da dupla que unida não perderia sequer uma partida com a camisa da seleção canarinho foi uma vitória sobre os favoritos, e o primeiro lugar em sua chave.

Vitórias sobre o País de Gales, a França – do artilheiro daquele mundial, Just Fontaine – e da anfitriã Suécia na final coroaram o primeiro título mundial do futebol brasileiro, e mostrou ao mundo o que seria o maior atleta daquela modalidade.

A alcunha de “Rei do Futebol” já acompanhava Pelé no retorno ao Brasil. Decisivo, eficiente, plástico. O sucesso da campanha no mundial da Suécia refletiu intensamente no cenário nacional, com o aumento dos laços entre clubes nacionais e estrangeiros, principalmente na Europa. O maior exemplo deste fenômeno, obviamente, foi o Santos de Pelé.

O sucesso meteórico do alvinegro praiano passava não apenas pelos pés do rei, mas de uma equipe fenomenal. Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe: os quatro atacantes do peixe dos anos 60 conduziram a equipe a duas Libertadores da América, duas Copas Intercontinentais, uma Recopa dos Campeões Intercontinentais, uma Recopa Sul-Americana, cinco Taças Brasil, um torneio Roberto Gomes Pedrosa (conhecido como Robertão, um dos antecessores do atual Campeonato Brasileiro), quatro torneios Rio-São Paulo e dez Campeonatos Paulistas. Sempre comandado por Pelé, o Santos realizava excursões internacionais, enfrentando clubes e sempre proporcionando espetáculos por onde passava, fortalecendo ainda mais o mito de Pelé.

Durante a década de 60, juntamente com o sucesso santista, Pelé sedimentava a seleção brasileira no cenário internacional. No ano de 1962 – coincidentemente, ano da primeira conquista continental do Santos – o rei disputaria sua segunda Copa do Mundo, no Chile.

Apesar de toda a expectativa em torno da atuação de Pelé, sua participação no mundial foi abreviada logo no segundo cotejo brasileiro, quando sofreu uma lesão no empate em 0x0 com a extinta Tchecoslováquia. Do banco, Pelé viu seus companheiros conquistarem o bicampeonato liderados por Garrincha contra a mesma Tchecoslováquia por 3 a 1, vencendo a Copa do Mundo agora na América do Sul.

Quatro anos depois, em 1966, o Brasil teve a sua primeira oportunidade de conquistar em definitivo a taça Jules Rimet, troféu dos mundiais que seria entregue à primeira nação a vencer o torneio em três oportunidades. Porém, uma sequência de equívocos na montagem da equipe e no decorrer do torneio frustrou as intenções brasileiras.

O ano de 1966 marcava o centenário do futebol enquanto esporte regulamentado como ficou conhecido mundo afora, depois de sua maturação nas chamadas public schools na Inglaterra. Assim, o desejo britânico por um título mundial se tornava ainda mais ávido, já que os “detentores” do jogo nunca haviam provado sua superioridade no principal palco do esporte.

A Copa do Mundo da Inglaterra é lembrada até hoje como um mundial onde a violência predominou impune. O duelo físico – e, por vezes, desleal – não foi coibido pela arbitragem, e Pelé foi uma de suas vítimas. Na estreia, a vitória sobre a Bulgária por 2 a 0 com gols de Pelé e Garrincha foi também a última partida de ambos lado a lado com a camisa amarela. Contundido, o rei não enfrentaria a Hungria, que venceu a segunda partida do grupo por 3 a 1. No sacrifício, Pelé foi para o cotejo decisivo contra Portugal, seleção liderada por Eusébio, que também protagonizou duelos com o rei nos Mundiais Interclubes entre Santos e Benfica. A segunda derrota por 3 a 1 na competição eliminou a seleção brasileira, e deixou claro que a geração bicampeã mundial, com pouca renovação, não havia sido a escolha ideal. O mundial seguiu sem o Brasil, até a final polêmica entre ingleses e alemães, com o gol histórico de Geoff Hurst que deu a vitória ao English Team, mesmo com a bola não tendo cruzado a linha da meta alemã.

Com a pior campanha do Brasil até então nas copas, a renovação era óbvia, e imediatamente necessária. E a maior equipe de futebol que o mundo conheceu começava a se formar nas mãos do então cronista esportivo e ex-treinador do Botafogo João Saldanha em janeiro de 1969.

A contratação de um jovem jornalista foi uma tentativa da antiga CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e de seu chefe, João Havelange de apaziguar os ânimos da mídia, fervorosos e com críticas ásperas à gerência do futebol.

Além disso, o clima político da nação era trágico: os anos negros da ditadura atingiam seu auge: em 1968, o AI-5 era implantado pelo governo militar – chefiado à época por Costa e Silva – possibilitando assim que o regime fechasse o Congresso Nacional, e institucionalizasse a repressão.

No campo do futebol, a tensão era tamanha que Havelange sequer levou em conta o fato de Saldanha ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro, ter visões e concepções claramente de esquerda, visões que tornariam o novo comandante da esquadra canarinho um dos treinadores mais folclóricos e emblemáticos da história do futebol brasileiro.

A nova seleção ficou rotulada como “As feras do Saldanha”, atuando ofensivamente, em um 4-2-4 embasado nas grandes equipes da época, Santos e Botafogo. Obviamente, no centro deste time estava Pelé, que em novembro daquele ano superaria a barreira dos mil gols em 1969, cobrando um pênalti contra o Vasco no Maracanã.

Confira a websérie Pelé 70, produzida pela Fábrica 53, no canal de vídeos da Universidade do Futebol

 

O Brasil venceu todas as partidas que disputou pelas eliminatórias para a Copa do Mundo do México, em 1970. A identificação do povo brasileiro com a seleção foi restabelecida pelas mãos de Saldanha, e pelos pés de Pelé e seus companheiros. Porém, como todo regime necessita de legitimação, o governo militar teria de se associar a esta imagem também.

A crise entre João Saldanha e a CBD se deu pela tentativa do novo presidente - o general Emílio Garrastazu Médici – de influenciar nas escolhas de atletas para a equipe do jornalista.

Muitos eventos foram apontados para justificar a demissão de Saldanha, mesmo com um cartel que mostrava 100% de aproveitamento.

A afirmação de que Pelé estava míope, e por isso talvez não fosse escalá-lo; as reações ásperas às críticas feitas pelo treinador Yustrich, que segundo a mídia da época resultaram em ameaças de Saldanha empunhando um revólver; e o principal caso, quando rechaçou os pedidos do general para que Dadá Maravilha fosse convocado, alegando que não tinha o direito de escalar ministros, então não daria ao presidente o privilégio de escalar sua equipe.

A saída de Saldanha da seleção brasileira é tema de trabalhos e pesquisas acadêmicas até os dias de hoje, sobretudo acerca das motivações que o governo teria em vê-lo fora da cena de um possível triunfo brasileiro. Nada arranharia mais o lema do “Brasil: Ame-o ou Deixe-o” do que um crítico assumido do regime, e um dos mais célebres comunistas do país levando a nação ao topo do mundo do futebol.

Perto da copa, Mário Jorge Lobo Zagallo assumiu a equipe, e fez pouquíssimas alterações na esquadra de Saldanha. O cérebro da equipe ainda era o mesmo, ostentando a camisa 10. Cercado de dúvida e receio pela imprensa da época, Pelé fez do mundial do México uma síntese de toda a genialidade que possuía.
Os lances do mundial de 1970, das seis vitórias em seis partidas da equipe que possuía Jairzinho, Tostão, Rivellino, Gérson, Carlos Alberto Torres e claro, Pelé são reprisados até os dias atuais. A equipe ofensiva, que não tomava conhecimento dos adversários venceu todos os seus compromissos com lances antológicos. Pelé, um ano antes de encerrar sua história na seleção brasileira, tomava para si definitivamente a coroa, imortalizando lances que até mesmo não terminaram em gols, mas que ficaram eternizados na história do esporte. O rei trazia para o Brasil de uma vez por todas a Jules Rimet, sendo protagonista e decidindo o mundial de 1970.

Pelé ainda atuaria por mais um ano com a camisa da seleção, se despedindo em um empate com a Iugoslávia, encerrando a trajetória mais vitoriosa de um atleta na seleção nacional do Brasil em todos os tempos. Pelo seu Santos, o rei ainda atuou até o ano de 1974, quando venceu a Ponte Preta por 2 a 0 em um dia 2 de outubro. Foi para os Estados Unidos para promover o esporte, onde atuou e foi campeão nacional pelo New York Cosmos por três anos, já no fim de sua vitoriosa carreira.

Neste sábado (ou na quinta-feira passada), Edson Arantes do Nascimento completa seus 70 anos de vida, vitórias e títulos. Com mais de 1200 gols anotados, três Copas do Mundo e vários prêmios internacionais, Pelé foi eleito o “Maior Atleta do Século XX” em algumas ocasiões. Maior do que a pessoa pública, a lenda do jogador Pelé ecoou por todos os cantos do mundo, assim como suas obras de arte ao longo de sua carreira. Nesta data, porém, apenas uma imagem pode simbolizar o que todo amante do futebol lembrará para sempre em sua obra: o gesto único, quase poético, de um glorioso soco no ar.

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Benê Lima