“Um treinador de Futebol que só sabe de Futebol é um péssimo treinador de Futebol”.
(Vitor Frade)
O jogo de futebol é um sistema, um confronto entre duas equipes. A equipe de futebol deve ser considerada um sistema, com características complexas, arquitetado com elementos de ordem e desordem, entre as regras pré-estipuladas e a criatividade do atleta e/ou da equipe. É desta mescla, deste equilíbrio entre as regras e a própria vontade do atleta que nasce a organização da equipe e do jogo. O desafio está justamente em dosar esses fatores a fim de se construir uma organização capaz de vencer a organização da equipe adversária.
Devemos entender organização como o resultado da interação/relação entre ordem e desordem das partes de um sistema, que dão origem a um novo sistema organizado, pelo estabelecimento de padrões nos movimentos destas partes, e organizante, tendo em vista a interação/relação com outros sistemas, ou seja, tendo a capacidade de organizar, a seu favor, outras organizações (sistemas) com que ele está envolvido. Por exemplo, um líder só liderará (ou organizará) seus liderados se ele for líder (organizado) consigo mesmo (não podemos pedir dos outros, o que não somos!).
Difícil é estabelecer o equilíbrio entre a ordem e desordem a fim e se criar um sistema organizado. Portanto, tendo em vista a construção de uma organização, o que causa inquietação e indagação é a sua própria construção: a organização deverá ser construída a partir do todo, ou seja, a partir da ordem? Ou, ao contrário, ela deverá ser construída a partir da interação de suas partes, ou seja, a partir da desordem?
Se a organização que se pretende é uma organização complexa, flexível e regenerável (afinal, assim é o futebol), ela tende a ser edificada a partir da interação de suas partes. Caso pretenda-se uma organização rígida e estável, a tendência é que a construa tendo em primeira vista o todo pretendido.
Dentro do futebol é possível visualizar essa afirmativa muito claramente: quando observamos aquela equipe que se organiza inteiramente e unicamente por si só e possui (ou pelo menos tenta possuir) todas as “regras” ou princípios para todos os momentos. Ou seja, independente do que está acontecendo, os atletas têm que fazer o que foi estipulado. Por isso, convencionalmente, iríamos caracterizar esta como sendo uma equipe “organizada” e a eventual equipe oponente (que não obedece a estas “regras” ou princípios) como “desorganizada”. Porém esta afirmativa (ou hipótese) deve ser colocada entres aspas, ou mesmo sob suspeita, pois se formos analisar estas equipes numa perspectiva sistêmica ou complexa, verificaremos que nem a equipe A é “organizada” em nem a equipe B é “desorganizada”.
Comparemos dois copos! Um de plástico e o outro de vidro. Esse é bonito, caro, usa-se nas melhores ocasiões e todos queremos tê-lo. O outro pode ser bonito, em comparação não é caro, convencionalmente usa-se em ocasiões que não necessitam luxo e é preterido na maioria das vezes. Todavia, o copo de vidro quebra-se muito facilmente, às vezes não precisamos de muita força para fazê-lo. Já o de plástico não; jogamos este copo ao chão com toda força e ele não quebra. Por outro lado, os dois são sistemas, os dois para a sua formação há a necessidade de interação/relação entre ordem e desordem de suas partes, ou seja, os dois são organizados, mas diferentemente.
“O que a organização perde em coesão e rigidez ao se complexificar, ela ganha em flexibilidade, em aptidão a se regenerar, a jogar com o acontecimento, com o acaso, com as perturbações.”
(Edgar Morin).
Quando há o encontro entre equipes “desorganizadas” vs. “organizadas”, pensamos a priori que esse confronto irá favorecer as equipes “organizadas”. Mas, comumente, não é isso que acontece. Talvez seja por isso que é muito mais fácil quebrar um copo de vidro do que um copo de plástico, pois as moléculas do vidro estão mais rígidas e ordenadas em suas ligações, do que as do plástico. Neste caso, o equilíbrio entre ordem e desordem inclina-se muito mais para a ordem do que à desordem (mas também, tudo depende de onde jogaremos ou do que usaremos para quebrar o copo de vidro!).
Mesmo em equipes que não demonstram uma sistematização de sua organização podemos encontrar padrões em seu movimento a fim de vencê-las. Aliás, para vencer qualquer equipe é necessário desorganizá-la, ou seja, desorganizar a organização do adversário. Como dito anteriormente, a organização é uma balança, onde de um lado temos a ordem do sistema e do outro a desordem do sistema. Por isso, abalar o equilíbrio entre ordem e desordem é o que desorganiza qualquer tipo de organização. Seja ela “organizada” ou “desorganizada”. O difícil é encontrar a ordem na organização desorganizada no intuito de desorganizá-la. Pensemos em equipes que apresentam a todo o momento situações de criatividade do atleta, situações em que a equipe não está de acordo com aquilo que o atleta está a fazer, ou seja, a equipe não sabe por que ele está a fazer isso, há um desalinhamento entre a equipe e o atleta. Nestas circunstancias é difícil achar um erro sistemático na equipe adversária. Ou até mesmo encontrar um erro na movimentação coletiva dessa equipe, um erro que aconteça sistematicamente, para que podemos aproveitá-lo numa futura situação a nosso favor.
Assim, encontrar um padrão sistemático nas equipes desorganizadas, achar ordem na estrutura que pondera muito mais para a desordem, é muito complexo. Dentro de campo, talvez isto somente seja possível com atletas que consigam ler o jogo, interpretar o que as interações no futebol estão a dizer naquele momento. Desta forma será possível abalar a estrutura de qualquer organização, nesta relação ambígua entre ordem e desordem. Para isso é preciso contar com atletas que tenham a capacidade de desequilibrar o equilíbrio instável da organização dentro do jogo.
“Em momentos de construção de um time, temos que ter princípios fundamentais e ele (Cristiano Ronaldo) representa todos estes princípios. Para resumir: ambição, disciplina e solidariedade”.
(José Mourinho. AS, 01/10/10).
Uma equipe organizada no futebol deve ser flexível em qualquer momento do jogo, para manter sua estabilidade organizacional. Todavia, o atleta precisa ser criativo e ter liberdade, dentro da “organização” pretendida, a fim de cumprir essa estabilidade, necessária neste momento. No futebol, eu diria que organização de uma equipe é o encadeamento das relações/interações entre cada atleta e entre todos os atletas. Porém não podemos esquecer que o futebol é o confronto de duas equipes, ou seja, de dois sistemas, entre duas organizações. Assim esse encontro causa uma nova organização, entre dois sistemas, entre duas equipes. E ao final desse “relacionamento” essa organização poderá ser favorável a uma equipe ou a outra.
Toda organização (no futebol ou fora dele) comporta diversos níveis de subordinação quanto aos seus componentes. No entanto, o desenvolvimento dessa organização não significa necessariamente crescimento das imposições, das regras impostas sobre os atletas. A verdadeira organização, dita complexa, se estabelece nas “liberdades” dos indivíduos que constituem a equipe de futebol. Há sempre, em todos os sistemas, mesmo nos que excitam criatividade, ligações entre as partes, coerções, que impõem graus de restrições e servidões. Neste sentido, o todo é menos que a soma de suas partes. Pois no futebol determinamos e desenvolvemos especializações e hierarquizações, e assim o atleta fica subordinado a regras, normas ou princípios que limitam suas ações em campo, mesmo orientando-as para um convívio em conjunto.
“No campo o Barcelona é o mesmo que antes.
Porém, no clube tem havido mudanças e exata questão
não afeta o modelo que tanto êxito tem dado e que o mundo todo admira.”
(Cruyff, 2010).
Portanto, o Sistema Futebol (todo) é ao mesmo tempo mais, menos e diferente que a soma de seus atletas (suas partes). Mas também é verdade que fora do Sistema Futebol, os atletas são por vezes menos, mais do que qualquer forma que eles seriam dentro da equipe de futebol. Mas por quê? Porque cada atleta tem identidade(s). Por exemplo, Iniesta é sempre Iniesta, porém, se formos analisar na perspectiva que aqui estamos tratando, há, na verdade, muitos Iniestas. Um que interage com Xavi, outro que interage com Touré, assim como outro que joga na seleção espanhola ao lado de Xabi Alonso, e assim por diante.
Há, portanto, uma identidade dentro do Sistema Futebol e outra fora do Sistema Futebol. Um atleta tem uma identidade própria, mas participa da identidade da equipe, na perspectiva do jogar que se pretende. Por mais diferentes que as identidades de cada atleta possam ser, ao constituírem um sistema têm pelo menos uma identidade comum de vinculação à identidade da equipe e de obediência as regras organizacionais.
Por exemplo, nas sociedades humanas, o indivíduo tem diferentes identidades no aspecto pessoal, profissional e familiar. Não nos comportamos da mesma forma em nosso ambiente de trabalho, com os amigos, com o cônjuge etc. Mas isso não quer dizer que somos falsos ou qualquer coisa do tipo. Isso quer dizer que em cada ambiente social temos restrições e servidões diferentes, pois a interação que temos com o meio e com as pessoas que constituem o ambiente faz com que tenhamos esses comportamentos distintos e diversos.
“Por fora tudo parece igual, porém por dentro não é”.
(Cruyff, 2010)
Por isso é preciso compreender as características de cada atleta. A equipe deve ser uma unidade, pois ela é formada por atletas que são diferentes, porém inter-relacionados. Cada atleta dispõe de qualidades próprias e irredutíveis, mas elas devem ser construídas e organizadas.
O segredo do bom futebol actual é, os jogadores mesmo em posições diferentes em campo pensarem a mesma coisa, ao mesmo tempo, em cada situação de jogo, não distinguindo defesa e ataque (e missões) de forma tão clara pelos seus interpretes. Começar a atacar (recuperada a bola) com os defesas, começar a defender (perdida a bola) pelos avançados. Viverem no mesmo território de elite apesar de terem vindo de “planetas” diferentes.
(Lobo, 2010).
Conforme nos ensina Vitor Frade, formar uma equipe de futebol está no ato de criar situações para que ela própria possa formar sua identidade. Contrariamente ao fato de formatar uma equipe, onde se tenta impor a identidade do técnico, ou até mesmo uma identidade que não condiz com a inerente da própria equipe e de seus atletas. Com isto, não se pretende a total subordinação das ações individuais às coletivas. O que se quer é que cada atleta encontre dentro desta concepção de organização coletiva o espaço necessário para refletir a sua própria personalidade/identidade, improvisação e criatividade. Pretende-se assim assegurar a coordenação e a cooperação dos seus comportamentos, pois parece ser este o aspecto que consubstancia o aumento da eficácia da equipe.
*Analista de Desempenho do Grêmio Football Porto Alegrense. Formado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestrando da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto/Portugal. Experiência como Preparador Físico em equipes de base do Grêmio F.B.P.A. e Treinador de Formação de Portugal.
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Professor, aproveito para parabenizar seu blog. Muito bom os conteúdos.
ResponderExcluirGostaria de divulgar um blog que eu e o prof. Rodrigo Vicenzi desenvolvemos para tratarmos de Periodização Tática... espero que possa fazer proveito...
http://otranscenderdofutebol.blogspot.com/
Um abraço
Dênis e Rodrigo