“Um jogador inteligente não se forma apenas dentro de campo. Um jogador inteligente não nasce pronto. Um jogador inteligente não pode ficar confinado num alojamento. Um jogador inteligente não pode aprender com quem não é inteligente. Um jogador inteligente não sobrevive em um ambiente pouco desafiador e pobre em estímulos. Um jogador inteligente não aceita padrões. Um atleta inteligente não aceita zonas de conforto...”
Alcides Scaglia
Um conceito que muda ao longo dos tempos é o da inteligência. Aquele sujeito capaz de resolver equações matemáticas, ou que compreendesse as mais variadas problemáticas apresentadas de uma maneira lógica, clara, se posicionasse com firmeza, por intermédio da fala, demonstrando conhecimento sobre vários assuntos captava para si essa condição. Mas ser inteligente demanda muito mais do que isso.
“Se você sabe e não faz, ainda não sabe”, resumem os orientais. Os ingredientes para poder receber tal rótulo são compostos por força de vontade, coragem, intuição, criatividade, habilidade, conhecimento e atitude, indicam outros. No Manual do Atleta Inteligente, parte de um programa de desenvolvimento pessoal, social e profissional para jogadores de futebol, o aprendizado para se montar uma carreira sólida, a partir de instruções e orientações, está traçado. E Ronaldo, de certa forma, dando alguns passos atrás, poderia se observar ali dentro.
Principal artilheiro da história das Copas do Mundo, o atacante que se despediu dos campos nesta segunda-feira superou inúmeros desafios ao longo de sua trajetória. Muitos dos quais demandaram um preparo psicológico do ser humano Ronaldo Nazário de Lima. Mas nesta análise dos índices de competência necessários para que o atleta inteligente tenha sido consumado, atenção especial ao primeiro: nível técnico-tático.
O mais específico na formação do atleta, pode ser dividido em dois quesitos: a inteligência esportiva de jogo e a habilidade motora funcional. Para anotar duas vezes na primeira partida da decisão do Campeonato Paulista de 2009, diante do Santos, um dos duelos mais emblemáticos da reta final de sua carreira, o “Fenômeno” deu mostras explícitas das valências referidas.
“No primeiro [gol], o controle de bola foi fantástico. A bola veio muito alta. Tive até a visão prejudicada pela luz do sol, o que dificultou ainda mais. Então, o controle saiu perfeito, na direção certa, para proteger do Fabão, que estava se aproximando e a finalização foi perfeita também”, analisou o camisa 9, em referência ao seu primeiro chute certeiro a gol.
Após uma disputa de bola no meio-campo, o zagueiro Chicão se antecipou ao santista Kléber Pereira e deu um bicão na bola para o alto. Ronaldo percebeu a saída da primeira linha defensiva adversária, e, em condição legal, dominou de maneira precisa, com o peito do pé direito, tirando do defensor e preparando a fim da ação com a perna canhota. Perfeito. Prova da capacidade de focar sua atenção em determinados lances, de forma intensa, integral e total. É a competência relativa à concentração.
“O segundo gol foi um contra-ataque muito rápido. O campo estava bem molhado. E o Fábio Costa ficava como um líbero da zaga. Até num lance que eu lancei o Douglas. E aí no primeiro tempo eu estava observando isso e eu sabia que eu tinha que aproveitar isso de alguma maneira. E naquela jogada saiu meio que um instinto, uma cavadinha”, sintetizou, ao falar sobre o terceiro gol da equipe da capital.
Talvez autor do gol mais belo desta edição do Estadual, Ronaldo chamou a atenção de todos no estádio. Talvez apenas não a de Pelé, acomodado em seu camarote na Vila Belmiro, possivelmente o único naquele ambiente a antever tal situação e que poderia anotar daquela maneira. Em um contra-ataque, o meio campista Elias ganhou disputa na intermediária e avançou em velocidade. Fabiano Eller deu o bote, enquanto o mesmo Fabão, coadjuvante no primeiro gol, estava postado do lado direito da zaga. Ronaldo mirou novamente o adversário, retardou o passo, antes de ser lançado.
A partir desse momento, o atacante que foi eleito o melhor do mundo pela Fifa tocou na bola o número de vezes em que esteve no topo dessa eleição ao término de cada temporada: três. Uma com o calcanhar, para limpar o lateral-esquerdo Triguinho, que vinha em direção contrária, e iniciar o molde da obra. Outra para ajeitar para o “pé ruim” – ou não dominante, na linguagem científica. E o adeus, por baixo, quase no bico direito da grande área, para encobrir um goleiro Fábio Costa adiantado, tal qual vira na etapa inicial. Pois nesse enredo todo, Ronaldo se manteve de cabeça baixa.
“Capacidade de mapear e analisar as situações de jogo inseridas em seu contexto técnico-tático. Em outras palavras, ter uma boa visão de jogo significa ler o jogo em toda a sua complexidade, gerando ações de deslocamento que permitam ao jogador se locomover dentro de campo ficando sempre livre para ações coma bola, ou mesmo se colocando em posição estratégica para defender o seu campo (e/ou gol). É também a capacidade de proteger a bola impedindo que ela seja roubada pelo adversário (visão periférica)”, aponta o Manual.
Em fração de segundos, Ronaldo teve a capacidade de escolher a reação mais efetiva para neutralizar uma ação do adversário – no caso, o “adiantamento” do camisa 1 santista, que imaginava diminuir o ângulo de visualização do gol do atacante. Ou seja, assumiu uma situação com firmeza, sendo claro e determinante no ato. Uma mistura de criatividade (utilizou-se de todos os recursos lícitos pessoais e coletivos para fazer o inesperado, o imprevisto, resolvendo aquela situação) e controle emocional no jogo (a chamada inteligência emocional, cujo controle se sobrepõe a emoções, como medo, raiva, ansiedade e frustração).
“Se nós formos analisar o jogo, o Santos foi superior ao Corinthians em todos os quesitos. Criamos oito ou nove chances claras de gol em que normalmente nossos atacantes não falham e hoje acabaram falhando”, relatou Vagner Mancini, treinador da equipe da Baixada à ocasião. “O Ronaldo ainda não está em forma, mas mesmo assim não pode ter espaço para raciocinar. Ele acaba sendo matador e hoje ele foi”, declarou, logo após o fim da partida.
Somado à inteligência de jogo, há as competências relativas às habilidades motoras funcionais. E nesse ponto Ronaldo destoa desde que entrou em campo pela primeira vez com a camisa do Corinthians. Durante os dois anos em que defendeu o clube por quem se apaixonou, o atacante disputou 69 partidas e marcou 35 gols. Além de plástico em momentos especiais, foi eficiente na maioria das vezes.
Naquela partida simbólica contra o Santos, de acordo com dados do Datafolha, além dos dois lances que saíram dos seus pés e protagonizaram o triunfo dos visitantes, Ronaldo apenas chutou a gol mais uma vez. No quesito pontaria, ele foi o líder corintiano no campeonato vencido de maneira invicta, acertando, em média, 2,2 chutes a gol por jogo.
“O Ronaldo vem provando até desnecessariamente sua capacidade. Ele é um jogador que veio premiar o futebol brasileiro. Todos nós tivemos um pouco de participação na recuperação, mas sem dúvida quem fez a diferença foi ele. É um dos melhores jogadores do mundo”, sentenciou o então treinador corintiano Mano Menezes, hoje na seleção brasileira principal.
Mano, inclusive, postou em seu site oficial um texto de enaltecimento às virtudes da pessoa com quem conviveu por aproximadamente 18 meses. A força individual do Fenômeno contagiou a todos no grupo alvinegro. E para o comandante gaúcho, ciente de que os resultados foram mais significativos no primeiro ano da parceria, a vontade de ganhar qualquer disputa, inclusive as mais singelas “apostas”, explica a capacidade de Ronaldo sempre ressurgir, de superar o que superou em termos de lesões e de nunca se acomodar nas justificativas.
“Tenho firme na memória a imagem de vê-lo colocando bandagem, sentado em uma mesa de madeira, no então contêiner-vestiário do hoje CT corintiano, dias antes de ganharmos o Paulistão de maneira invicta e a Copa do Brasil, em 2009. A simplicidade era de um iniciante”, escreveu.
“De agora para frente vai virar lenda, vai se juntar a tantos outros grandes que nos encheram de alegrias com suas obras primas. Felizmente para nós do futebol brasileiro é assim, uns vão e outros vêm. Que os que vierem, tragam consigo o aprendizado dos que, como Ronaldo, souberam seguir, sempre em frente, de cabeça erguida. Seus defeitos? Bom, seus defeitos estão presentes nos humanos - aliás, era apenas nisso que dava para ver que ele era humano”, completou Mano.
Condução de bola, controle, finalização, drible, finta, passe, lançamento e até cabeceio. Todas as habilidades, avaliadas em situações concretas de jogo, como o clássico final do Paulista-09, dão sentido à propriedade do jogador. Essa é a aplicação. E o multicampeão Ronaldo, hoje um ex-atleta, está mais do que provado.
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Benê Lima