Caros leitores,
É um prazer escrever novamente sobre as categorias de base e suas nuances no Brasil. Apesar do título deste breve manuscrito ser intenso e forte, não foi criado por nós. Estamos aqui apenas reproduzindo o que ouvimos de um técnico de renome no cenário nacional quando questionado sobre o assunto.
Contextualizando o leitor, o que nos motivou para a escrita de um novo artigo acerca da temática foi a nossa participação em outro evento de capacitação e reciclagem no futebol, desta vez o “III Congresso Brasileiro de Ciências de Futebol”, realizado em São Paulo, no estádio do Canindé. Diga-se de passagem, um evento de alto nível, com palestrantes de elevado gabarito.
Entre os diversos assuntos abordados dentro da seara futebolística, os quesitos técnicos e táticos fizeram-se presentes, como não poderia deixar de ser. Ao término de uma das palestras sobre tática (mais especificamente sobre sistemas defensivos), nosso protagonista foi indagado com uma pergunta até certo ponto “despretensiosa”:
“Como o sistema defensivo deve ser trabalhado nas categorias de base”? Para aqueles (como nós!) que esperavam uma resposta contendo as considerações sobre a utilização de dois ou três zagueiros, sobre a formação ou não de linhas de quatro, a réplica foi arrebatadora:
“…na grande maioria dos clubes pelos quais passou, não existe uma metodologia, ou seja, uma filosofia de trabalho sistematizada.”
“A categoria de base é uma mentira no Brasil”. A partir desta frase impactante, o palestrante ponderou seus argumentos no intuito de embasá-la. Em suma, ressaltou que na grande maioria dos clubes pelos quais passou, não existe uma metodologia, ou seja, uma filosofia de trabalho sistematizada. Assim, cada treinador que assume o comando (seja no sub-15, sub-17 ou sub-20), aplica a metodologia que melhor lhe parece, em busca primordialmente de títulos e não da formação (já que a conquista de títulos é o que vai sustentar seu emprego). Para isso, busca novos jogadores (em sua maioria atletas maturados e muito fortes) dispensando aqueles que já faziam parte do elenco.
Reforçou ainda que em muitos clubes a base é utilizada como cabide de empregos, já que “profissionais” não qualificados assumem cargos técnicos por estes não serem considerados tão importantes, bastando ser amigo ou parente de quem está comandando. Mencionou também que a rotatividade dos profissionais de campo é altíssima, assemelhando-se ao futebol profissional, algo que considera contraproducente, já que inviabiliza a possibilidade de um real “processo” de formação.
O mais absurdo, segundo ele, é que na base, pior do que no profissional, mesmo realizando-se um bom trabalho, pode-se ser demitido, já que a repercussão na mídia é mais amena. Em sua opinião, o principal responsável por este cenário são os próprios clubes, que devido à respectiva desorganização, a não preocupação com a sistematização do trabalho e a cobrança por títulos ao invés da formação de atletas, permitem que indivíduos não gabaritados sejam responsáveis pela coordenação da base.
Nós, paradoxalmente, ficamos felizes com sua fala. Felizes não com a situação vigente e hegemônica no país, mas feliz com a constatação e divulgação deste cenário deprimente, por um formador de opinião, um treinador que sequer trabalha com as categorias de base, mas reconhece sua importância e em forma de desabafo expôs suas limitações em um congresso sobre ciência no futebol.
Atitudes como estas devem ser enaltecidas, afinal, pessoas com capital simbólico são os motores para qualquer processo de mudança. Nós, que ainda não chegamos “lá”, nos apegamos a este tipo de pensamento, que nos faz acreditar que o futebol pode mudar que o futebol tem que mudar.
Definitivamente compactuamos das mesmas ideias do treinador e de fato são poucos os clubes no Brasil que possuem uma metodologia aplicada, coordenadores atuantes (e capacitados) e treinadores aptos para atuar nas diversas faixas etárias. Infelizmente, muitos treinadores da base, quando ex-jogadores, repetem o que fizeram há dez, vinte, trinta anos, com a justificativa de que no passado era assim. Mais do que isso, ao invés de tentar justificar e embasar seus respectivos treinamentos, preocupam-se em “contar causos” e estórias de suas épocas, para jovens atletas que carecem de novos aprendizados e muitas vezes sequer conhecem os personagens citados.
É evidente que apenas o profissionalismo e o conhecimento podem mudar esta realidade, já que é comum ouvirmos treinadores da base afirmando que determinado atleta “só sabe chutar com uma perna”; “não sabe fazer o movimento correto para o cabeceio” ou que é muito “lento”.
A pergunta que fica é: o que o treinador está fazendo para mudar isto? Nós ainda vamos além: será que o gesto técnico estereotipado é o mais importante para o processo de formação? Ou as competências essenciais agregadas à tomada de decisão e leitura de jogo são preponderantes? Talvez determinado atleta seja lento em um teste físico de velocidade na fotocélula, mas sua inteligência para o jogo possibilita que se torne veloz. Será que o treinador está atento a isso? O excerto abaixo indica que provavelmente não...
Há algum tempo, assistimos ao jogo entre Barcelona x Hércules, válido pelo Campeonato Espanhol, e havia cerca de cinco ou seis jogadores oriundos das categorias de base atuando pelo clube catalão. O Barça perdeu o jogo pelo placar de 2 a 0 e seus jovens atletas apresentaram uma série de dificuldades inerentes à transição para o profissional: medo, ansiedade, insegurança, dificuldade para lidar com um estádio lotado entre outros. Todavia, durante a partida, era nítido o padrão (modelo) de jogo estabelecido pela equipe, as trocas de posições, as regras de ação para estruturação de espaço, a mudança de plataforma quando requisitada entre outros. Ou seja, os jovens atletas, apesar de estarem lidando com uma situação de estresse agudo, apresentavam comportamentos adquiridos ao longo do processo de formação, indicando que a base cumpriu o seu papel.
Já no Brasil, quando uma equipe da base joga para trás da linha da bola, saindo rápido e verticalmente no contra-ataque quando recupera a posse, é taxada como uma equipe que só marca que só sabe se defender e joga como time pequeno. Mesmo estando bem compactada, organizada, tendo chances claras de gol e sendo líder do campeonato, um empate sem gols contra uma equipe de excelente qualidade, é motivo para duras críticas.
Daí fica a dúvida: a base é uma mentira? Abaixo, um trecho de uma entrevista do técnico Ney Franco (formado em Educação Física pela Universidade Federal de Viçosa) sobre sua contratação para coordenação do projeto de base na seleção sub-20, um indicativo de que as coisas na base estão mudando:
“A gente vai trabalhar com uma garotada numa idade complicada, que vive queimando etapas da vida. Trabalhei muitos anos na base, e o que aconteceu com o Neymar é muito comum, mas não dá visibilidade porque não é com o Neymar, é com desconhecidos. O nosso papel é aconselhar, orientar e mostrar a eles o que é representar o nosso País. A forma como lidar com isso é o desafio do treinador, do educador, que usa seus conhecimentos na área da educação, da comunicação e da persuasão. Muitos atletas talentosos não se transformaram em craques porque não tiveram um acompanhamento adequado. E muitos se tornaram justamente porque tiveram. Este é o nosso papel”.
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Benê Lima