Caráter lúdico desse tipo de ação e ineficiência da prevenção simplesmente policial remete à necessidade de estudos sobre o comportamento social e dos governos das cidades
Carlos Alberto de Camargo
Uma das ameaças a ser consideradas no planejamento da segurança da Copa do Mundo é o hooliganismo, que não se confunde com a violência das torcidas organizadas brasileiras – esta última, em termos de Copa do Mundo, representa uma ameaça mais remota; mas o estudo do hooliganismo contribui para o entendimento da violência de nossas torcidas.
A capacidade de sedução da violência é a principal mensagem que o diretor Phillip Davis pretendeu passar no vídeo "Fúria nas Arquibancadas", em que o personagem John Brandon, policial britânico infiltrado com três outros companheiros na torcida do Shadwell (um time fictício) a fim de conseguir informações necessárias ao controle da violência, acaba sendo cooptado por essa violência, absolutamente fascinado por ela, adotando o mesmo modo de vida dos hooligans, com suas inúmeras brigas e intermináveis bebedeiras.
É a mesma sedução que consta no testemunho pessoal do jornalista Bill Buford, em seu livro "Entre os Vândalos", também infiltrado durante quatro anos na torcida do Manchester United a fim de descobrir por que os jovens ingleses do sexo masculino se envolviam em tumultos todos os sábados.
Na estação londrina de Marble Arch, retornando de um fim de semana violento em Turim, onde fora com a torcida acompanhar o Manchester, o jornalista surpreendeu-se com sua própria atitude. Irritado com um casal de idosos que caminhava lentamente à sua frente, amparados por suas bengalas, ele os ultrapassou, empurrando-os bruscamente e, já na dianteira, voltou-se para xingar.
Bill Buford descreve assim a violência: “Fiquei espantado com aquilo que descobri. Não esperava que violência fosse tão prazerosa. Poderia supor, caso me tivesse disposto a pensar a respeito, que a violência fosse provocante - no sentido em que um acidente de trânsito é provocante -, mas aquele prazer puro e elementar era de uma intensidade diferente de tudo que eu previra ou experimentara anteriormente. Não se tratava, contudo, de uma violência qualquer. Não se tratava de violência fortuita, ou violência de sábado à noite ou brigas de pub - era violência de massa, era essa que importava; os mecanismos muito particulares da violência das multidões”.
E o autor arrisca-se mesmo a apontar o principal combustível que movimenta esse comportamento: “a adrenalina, que pode ser tanto mais poderosa, porque é gerada pelo próprio corpo, contendo, fiquei convencido, muitas das mesmas propriedades viciantes que caracterizam as drogas sinteticamente produzidas”.
O personagem John Brandon entregou-se a essa mesma sedução, mergulhando de cabeça na espiral descendente que leva à total degradação, à negação da dignidade humana, à negação das mínimas regras necessárias a uma sadia convivência em sociedade. Entregou-se, iludido pela miragem assim descrita por Bill Buford:
“A violência apresenta uma das experiências vividas com mais intensidade e, para aqueles capazes de se entregar a ela, um dos mais intensos prazeres”. Mesmo advertido pelos seus companheiros de que essa ilusão o estava levando à autodestruição.
Tanto o livro como o filme apresentam uma impressionante sequência de escaramuças entre torcidas rivais; destacam a imagem desagradável e mesmo repulsiva do torcedor violento, acostumado a ingerir enorme quantidade de álcool, que sente tédio nos dias em que não vê futebol e que pratica delitos; e ainda procuram mostrar uma polícia inglesa às vezes omissa e à vezes excessivamente violenta.
As imagens que reproduzem a atuação da polícia nos estádios não resistem a uma análise técnica: revista pessoal falha e por amostragem, o que permite a introdução de armas, dardos e outros objetos perigosos; o policial que não mantém detidos os torcedores apreendidos por comportamento inconveniente; cenas de violência policial e a omissão da polícia em certos casos ou sua impotência quando algumas pessoas decidem desobedecer às leis.
O filme termina com nosso personagem participando de uma passeata neonazista. O livro também aborda o assunto, descrevendo como os rapazes de terno do National Front assediam as torcidas, que são o campo ideal para o recrutamento, já que se constituem em massas violentas ainda não politicamente dirigidas.
O repórter Bill Buford, ao contrário, termina sua narrativa confessando que em dado momento - quando preparava-se para viajar para Turim, nas eliminatórias para a Copa de 90 - entrou em depressão profunda: a simples ideia de um novo contato com a violência e as bebedeiras dos Hooligans o deixou doente.
Para melhor ilustrar o que pretendemos alertar, novamente nos socorremos de um exemplo inglês, desta vez narrado pelo jornalista Otávio Dias. Reportando a rebelião ocorrida na cidade de Luton, ao norte de Londres, em julho de 1995, quando durante vários dias grupos de jovens entraram em choque com a polícia, incendiando carros, apedrejando e saqueando lojas e casas, ele transcreveu depoimento de um deles: “enfrentar a polícia é a única maneira de conseguirmos um pouco de emoção”.
Todas essas observações nos fazem ficar preocupados com um dos aspectos da violência coletiva: o seu caráter eventualmente lúdico, que torna ineficaz a prevenção simplesmente policial, e que, por isso, recomenda seja objeto da preocupação de estudiosos do comportamento social e dos governos das cidades. A cuidadosa observação da forma como este problema tem sido enfrentado em todo mundo nos demonstra como eficazes: a rápida e rigorosa punição dos infratores, capaz de eliminar o sentimento de impunidade; a ocupação territorial inteligente e preventiva pela polícia, tomando o espaço dos violentos; e atuação sobre as causas da violência, como fenômeno social.
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Benê Lima