Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

domingo, agosto 15, 2010

O papel social do futebol na articulação da sociedade civil global: identidades

O futebol pode exercer uma função crítica importante na luta contra o racismo e subordinação da mulher

Marco Antonio Zamboni Zalamena*

O tema identidades refere-se à “raça” e ao gênero. A questão do racismo desonra o futebol desde o início do século XIX, no Brasil, quando os clubes da elite não aceitavam jogadores que não fossem brancos até meados do século, salvo algumas exceções. Ademais, o racismo também pode ser entendido através da percepção de que os clubes deveriam ter uma base nacional de atletas em detrimento a um grupo culturalmente mais heterogêneo (GIULIANOTTI & ROBERTSON, 2009, p. 148).

Na Europa, até a década de 1970, era raro encontrar jogadores negros nos principais clubes. A emergência da primeira geração de jogadores britânicos negros, principalmente oriundos de comunidades afro-caribenhas, é mais notória pela ascensão da institucionalização do racismo que ocorrera na Inglaterra do que pelo desempenho esportivo destes atletas. Grupos como os skinheadse a Frente Nacional Britânica, partido político britânico ultra-direitista, foram os principais precursores do racismo no futebol britânico.

A evolução das atitudes contra determinadas identidades logo cristalizou um vocabulário racista notoriamente expressado pelas torcidas durante jogos oficiais (1). Não bastasse, o arremesso de bananas ao campo não é raro e constitui a “arma mais covarde do abuso racista” (GOLDBLATT, 2006, p. 174).

Em vista do problema social causado primeiro pela exclusão dos negros e depois pelo desrespeito a estes quando profissionais do futebol, conferências internacionais organizadas suscitaram da integração de ONGs, auxiliadas também pela evolução de organizações e movimentos comunitários. A campanha Let´s Kick Racism Out of Football foi criada pela Comissão de Igualdade Racial e pela Associação Profissional de Futebolistas em 1993 (ibid). Na década de 1990, então, devido ao aumento na quantidade de jogadores negros na Europa e da conseqüente propagação do racismo no futebol, organizações de 13 países europeus juntaram-se para formar a Fare - Football Against Racism in Europe, uma plataforma anti-racismo criada em 1999 (2).

Com a virada do milênio, a União das Associações Européias de Futebol, a Uefa, tornou-se muito mais ativa no que tange as questões de racismo no continente e desenvolveu um plano de 10 pontos junto à Fare, o Uefa’s Ten Point Plan of Action for Professional Football Clubs (3).

Os pontos são: 1) criação de uma declaração de que os clubes de futebol não irão tolerar o racismo. A declaração deverá ser impressa e disposta permanente e eminentemente em todos os jogos oficiais; 2) anúncio oficial público dos casos racistas porventura ocorridos durante os jogos; 3) tornar condição obrigatória para os indivíduos que possuem ingressos por temporada de que estes não tomem parte a favor de práticas racistas; 4) tomar atitudes que previnam a venda de literatura racista dentro e ao redor das dependências do clube; 5) agir com disciplina para com aqueles jogadores que apóiam o abuso racial; 6) contatar outros clubes para que estes entendam o seu plano de ação contra o racismo; 7) encorajar uma estratégia comum com a polícia para lidar com o abuso racista; 8) remover toda pichação racista existente nas dependências do clube; 9) adotar oportunidades de plano de ação iguais em relação ao recrutamento e provisão de serviços e 10) trabalhar juntamente com outros grupos, agências, uniões de jogadores, torcedores, escolas, organizações voluntárias, clubes de jovens, patrocinadores, autoridades locais, firmas e polícia locais, no intuito de promover programas pró-ativos e progredir a consciência sobre a eliminação do abuso racial e da discriminação.

No que diz respeito ao gênero, o futebol é lócus específico que espelha processos particulares das Relações Internacionais. Gênero, na concepção de Essed (2004, p.4), é a “relação entre as categorias sociais do homem e da mulher... é uma mistura complexa de considerações culturais e estruturais que faz e marca a distinção social entre aqueles constituídos de sexos”. Segundo Mac an Ghail (1996, p. 105), a masculinidade ilustra um “território contestado, um campo de batalhas”.

Os estudos do futebol global têm articulado com pouca frequência as áreas do gênero, esporte e Relações Internacionais. A literatura acadêmica sobre esporte e globalização, particularmente em Relações Internacionais, tem ignorado temas feministas (4), e questionado o papel da mulher tanto como participante quanto como consumidora (HARRIS, 2004, p. 48).

A reportagem do esporte, principalmente do futebol, é altamente definida pelo gênero e é através da mídia do esporte que a diferenciação do nexo masculino-feminino é criada, questionada e modificada.

A despeito da abertura de inúmeros esportes às mulheres ter expandido consideravelmente nas últimas décadas, elas continuam noticiadas apenas em uma parcela ínfima da esfera pública, principalmente nos veículos de comunicação, o que explicita a dominância do homem no esporte mundial. Em uma pesquisa feita nos EUA sobre os 100 maiores esportistas do século XX, somente oito mulheres foram inclusas, numa lista que continha três cavalos (5).

No montanhismo, em particular, homens que arriscam suas vidas nas expedições são vistos como heróis, enquanto mulheres que competem nas montanhas são retratadas como inconsequentes (ibid, p. 56). Nesse sentido, o reconhecimento da mulher encontra-se conectado aos estereótipos sexistas quando da discussão do crescimento transnacional do esporte feminino, e não no seu desempenho esportivo de fato. Autoridades clamam por “estéticas mais femininas” no futebol feminino, com jogadoras vestindo “shorts mais curtos”, como requisitado por Joseph Blatter, presidente da Fifa (6).

Tradicionalmente, no corpus teórico realista das Relações Internacionais, fortemente centrado no estudo da paz e da segurança, a invisibilidade feminina não é tratada como questão relevante, ao contrário dos integrantes de teorias com perspectivas críticas, aos quais exploram as estruturas de poder através de processos que transpõem a ação do Estado.

A hegemonia masculina é cultural e socialmente criada, reforçada pela mídia, e não uma condição “natural” do homem. Connell (2005, p. 77) define hegemonia masculina como “a luta na qual em um determinado tempo uma forma ou outra de masculinidade é exaltada e que configura a posição dominante do homem e a subordinação da mulher”. Nesse sentido, o questionamento feminista em todos os níveis da sociedade exige a manutenção da hegemonia masculina, imperativa, se o homem intenta reter o seu poder sob a sociedade, e consequentemente, sob a agenda das Relações Internacionais (ibid).

A participação feminina no futebol, em regiões não-ocidentais, notoriamente nas sociedades Islâmicas, tem inspirado avanços e lutas por direitos civis. Durante a Copa do Mundo de 1998, na França, na partida entre EUA e Irã, um protesto político contra o regime iraniano em Tehran foi ignorado pela mídia do evento, exceto por um jornalista da revista britânica especializada em futebol nomeada When Saturday Comes, o qual registrou o seguinte:

“Em torno de 15 minutos antes do início da partida enormes cartazes contra o regime de Khatami e camisetas decoradas com fotos de Maryana Rajavi, uma das líderes da oposição iraniana, começaram a aparecer no estádio. Três minutos antes do início da partida um enorme balão alaranjado com o retrato de Maryana Rajavi foi suspendido ao ar e flutuou sob o gramado até alcançar aleatoriamente os jogadores iranianos e, subsequentemente, ser recolhido pelo árbitro da partida. Você olha abaixo, no monitor da sua estação de TV para apreciar uma imagem mais nítida, mas a tela mostra imagens de algumas elegantes garotas norte-americanas na plateia...Mais tarde, um foto-jornalista norte-americano irá parafrasear uma velha piada de ice-hockey, ‘hoje à noite, eu estava assistindo um protesto político quando subitamente um jogo de futebol apareceu’, mas os telespectadores ao redor do mundo viriam a saber nada sobre o ocorrido. Eles não iriam ver os enormes cartazes denunciando o regime em Tehran...ou a chegada de segurança especial com a subseqüente luta entre os protestantes e a CRS (Companhia Republicana de Segurança) da França por duas horas...após a partida alguns...jornalistas estão apavorados com o que a TV escolheu...não mostrar. Eles não aceitam que este nível de censura tenha sido exercido numa democracia ocidental.” (LEVERMORE, R. (2008) in Foreign Policy in Focus (http://www.fpif.org/fpiftxt/5447). Traduzido pelo autor).

Ainda em relação ao Irã, as mulheres vêm, nos últimos anos, infringindo normas internas do país, notoriamente através da insistência em entrar nos estádios - ato restrito aos homens - e removendo os turbantes quando na celebração de vitórias internacionais (GIULIANOTTI & ROBERTSON, 2009, 149). Em 2005, pela primeira vez na história uma mulher iraniana pode assistir a um espetáculo esportivo com atores masculinos (7).

Jogadoras muçulmanas, no Canadá, têm contestado a recomendação do órgão normativo do futebol mundial, a Ifab – International Football Association Board – de que não deveriam usar o hijab durante os jogos, o que foi interpretado como uma violação dos direitos humanos (8). Sarah Elgazzar, porta-voz do Conselho Canadense das Relações Americano-Islâmicas, o CAIR CAN, alega que a Fifa promove o futebol islâmico através de fotos na sua página oficial, mas que por outro lado, reitera a permissão de proibir o uso do hijab aos árbitros das partidas (9).

O futebol, então, tem proporcionado uma arena onde lutas pela cidadania ajudam a moldar a sociedade civil global, particularmente no que diz respeito à inclusão social de identidades antes desconectadas, através da participação e contestação no meio esportivo.

* Marco Antônio Zamboni Zalamena é Bacharel em Relações Internacionais e acadêmico de Administração Internacional

Contato: mazamboni@msn.com


Referências:

GIULIANOTTI, R.; ROBERTSON, R. Globalization and Football. London: Sage, 2009.
GOLDBLATT, D. The Odd Couple: Global Civil Society and Football. In: GLAUSIUS, M.; KALDOR, M.; ANHEIER, H. (Org) Global Civil Society 2006/7. London: Sage, 2005. Cap. 7, p. 160-185.
ESSED, P.; KOBAYASHI, A.; GOLDEBERG, D. Introduction. In:______. A Companion to Gender Studies.London: Blackwel Publishing, 2004, p. 1-25.
MAC AN GHAIL, M. Understanding Masculinities. Buckingham: Open University Press, 1996, p. 105.
HARRIS, J; HUMBERSTONE, B. Sport, gender and international relations. In: LEVERMORE. R.; BUDD, A. (Org.) Sport and International Relations: An emerging relationship. London: Routledge, 2004. Cap. 3, p. 48-61.
CONNELL, R. Masculinities. 2 ed. Cambridge: Polity Press, 2005.
LEVERMORE, R. The Double-Edged Sword of Sport and Political Protest. Foreign Policy in Focus, Washington DC, ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 23 ago. 2009.
Notas de Rodapé:

1 - Marco Zoro, futebolista da seleção da Costa do Marfim e do Messina, da Itália, durante jogo oficial pela Seria A italiana em novembro 2005, saiu de campo e recusou-se a continuar jogando após humilhação racista por parte dos torcedores do Inter de Milão os quais imitavam sons de macaco quando o jogador tinha a posse da bola.http://www.guardian.co.uk/football/2005/nov/28/europeanfootball.sport

2 - As principais organizações da FARE: na Áustria, Fair Play (www.fairplay.vidc.org); na Alemanha, Flutlicht – Verein fuer antirassistische Fussballkultur (www.flutlicht.org); na França, Ligue Internationale Controle Le Racisme et L’Antisémitisme (LICRA) (www.licra.org/licrasport); Na Polônia, Never Again Association – Stowarzyszenie Nigdy Wiecej (www.free.ngo.pl/nw/); na Itália, Progetto Ultrà – UISP Emilia Romagna (www.progettoultra.it) e Unione Italiana Sport Per Tutti (UISP) (www.uisp.it); e o grupo de campanha líder contra a homofobia no esporte, nomeado European Gay & Lesbian Sport Federation (EGLSF) (www.gaysport.info).
3 - O plano visa fomentar práticas anti-racistas nos clubes de futebol profissional da Europa. Disponível em: www.uefa.com/newsfiles/82716.pdf , p. 37.

4 - Para uma história da mulher no futebol, ver Willians, J. (2003) A Game for Rough Girls: A History of Women’s Football in England. London: Routledge e/ou Hong, F. (ed) (2004) Soccer, Women, Sexual Liberation: Kicking off a New Era. Tema especial em Soccer and Society 2 (2/3).
5 - Billings, S. In search of Women Athletes: ESPN’s List of the Top 100 Athletes of the Century, Journal of Sport and Social Issues, Vol. 24, 2000, p. 4.

6 - Detalhes em: http://news.bbc.co.uk/sport2/hi/football/3402519.stm

7 - The Guardian. Disponível em: www.guardian.co.uk/world/2005/jun/06/iranroberttait

8 - A Lei 4 – Equipamentos de Jogadores - da FIFA diz: “Um jogador não deve usar equipamento ou vestir algo que seja perigoso para ele e para outros jogadores” e “Equipamentos modernos como protetores da cabeça, máscaras...não são considerados perigosos e são, portanto, permitidos”. Disponível em: http://www.fifa.com/mm/document/afdeveloping/refereeing/1.%20law%204_538.pdf

9 - Disponível em: http://74.125.93.132/search?q=cache:usJlq1rCPesJ:www.islamonline.net/servlet/Satellite%3Fc%3DArticle_C%26pagename%3DZone-English-News/NWELayout%26cid%3D1173087912271+muslim+canada+football+woman%2Bhijab&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br 

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