Ex-árbitro faz uma análise sobre o desenvolvimento da função e o processo de profissionalização
Artur Capuani e Bruno Camarão
O Brasil participa ativamente das discussões sobre os meandros da arbitragem internacional. Anualmente, nas reuniões da International Board, órgão que regulamenta as regras do futebol e aprova as leis do esporte, um ex-árbitro brasileiro, que esteve em diversos jogos importantes nas principais competições, está presente e dá o olhar sul-americano sobre o tema. Trata-se de Emídio Marques de Mesquita.
Árbitro de futebol de 1968 até 1993, desde a Liga Municipal de Futebol de Jacareí, passando pela Liga Joseense de Futebol de São José dos Campos, federações paulista e goiana de futebol, até chegar à CBF, Conmebol e Fifa, ele traçou sua carreira nos campos de maneira coordenada.
Mesquita é engenheiro civil e professor, capacidades que o permitiam executar sua grande vocação. Não como uma espécie de hobby ou pensando no ambiente para promoção econômica e política. Fosse dessa maneira, jamais seria alçado ao posto de instrutor de arbitragem da Fifa, entidade que rege a modalidade no mundo.
“Divido a carreira do árbitro em três momentos: ele apita onde deixam, apita onde ele quer, e apita onde ele gostaria. Quando chegar à plenitude, é necessário ter consciência e retornar para casa, não sendo apenas mais um”, afirmou nesta entrevista concedida à Universidade do Futebol.
Antes, ele carregou o apito em quadras de basquetebol, de 1957 até 1968, atuando no departamento de Educação Física e Esportes de São Paulo, FIBA, CBB, FPB, Confederação Brasileira de Desportes Universitarios e Circuito de Baloncesto Superior de Puerto Rico. E não tem dúvidas em garantir que o esporte coletivo mais popular também é o mais fácil de ser arbitrado.
Por que, então, os árbitros erram tanto? O experiente árbitro aponta que muitos de seus companheiros simplesmente estão deixando de lado a singularidade das ações, tornando-se mais mediadores e relações públicas do que qualquer outra coisa. Vide a Copa do Mundo de 2010...
“O maior problema que observamos durante o Mundial na África do Sul em termos de arbitragem foi na parte psicológica, na área do sentimento. Qualquer atividade humana pode ser programada sem o envolvimento do sentimento. O futebol, não”, apontou Mesquita, citando alguns acontecimentos pontuais.
Para ele, no Brasil, o esporte dito profissional é dirigido amadoristicamente por elementos passionais e inconsequentes. Essa relação entre árbitros e administradores, o papel da mulher no futebol, as particularidades do treinamento e a razão pela qual não se profissionaliza a função também são abordados com mais profundidade a seguir.
Universidade do Futebol – Primeiramente, fale um pouco sobre sua formação acadêmica e a experiência como árbitro e coordenador de arbitragem ao longo de sua carreira.
Emídio Marques de Mesquita – Quando eu tinha 11 anos de idade realizei um teste biométrico em que foi detectada uma lesão em meu coração. Ficou avaliado que eu teria apenas seis meses de vida. Com isso, não pude participar da prática esportiva nas aulas de Educação Física em meu colégio. Sem poder jogar basquete, eles me deram um apito e esse apito mudou a minha vida. Graças a esse erro médico comecei a apitar muito cedo em confrontos entre os colégios locais.
Em 1957 fui assistir aos jogos regionais do Vale do Paraíba em Mogi das Cruzes e, por acaso, acabei apitando uma partida. Depois eles me pediram para voltar e eu aceitei. Em seguida, o departamento de Educação Física local abriu um curso de arbitragem em que eu e mais 20 árbitros fomos selecionados para apitar os jogos abertos do interior em Santo André.
Logo depois, fui convidado para apitar pela Federação Paulista. Já com 16 anos, o Brasil me propôs para ser árbitro internacional de basquete. Como não existia uma idade limite e não me aceitavam como árbitro internacional, acabei apitando todos os jogos possíveis até chegar às Olimpíadas de Tóquio, onde atuei na final do basquete entre Estados Unidos e Rússia.
Minha transição para o futebol aconteceu quando fundei a primeira escola de arbitragem para futebol, em Jacareí, na Liga Municipal de Futebol. Até lá eu só apitava na várzea, pois era um autodidata. Mas foi durante uma crise da arbitragem paulista na Era Pelé, quando o Corinthians perdeu o título estadual para o Santos e exigiu uma reformulação no quadro de árbitros para que participasse da edição seguinte, que eu realizei o curso da Federação Paulista de Futebol. Em janeiro de 1968, um grupo de escoteiros com árbitros selecionados dos demais esportes, liderados por Arnaldo César Coelho, comandaram o Campeonato Paulista.
Mais tarde, quando a CBD (entidade que comandava cerca de 20 modalidades esportivas), atendendo a uma resolução da Fifa, criou a primeira relação nacional de árbitros, a primeira comissão nacional de árbitros e o Campeonato Brasileiro, eu passei a exercer minha função em âmbito nacional.
Com a criação da categoria de árbitros aspirantes à internacional, para forçar a classe a manter um bom nível, acabei evoluindo para esta categoria, atuando na Libertadores, em amistosos e nas Eliminatórias da Copa do Mundo.
Durante entrega de prêmios para destaques de edição do Campeonato Paulista, Emídio Marques de Mesquita (no alto, à esquerda) é eleito o melhor árbitro da competição
Universidade do Futebol – Como se dá a relação entre a Fifa e a International Board, desde a sua criação?
Emídio Marques de Mesquita – A International Board foi criada antes da Fifa, há 124 anos, em uma taverna com representantes de Escócia, Inglaterra, Suécia e Países de Gales. Nesta reunião foi adotada a regra de Cambridge como um padrão internacional. Mais tarde, em 1913, nove anos após sua criação, a Fifa acabou entrando como quinto elemento deste sistema, que realizava apenas uma reunião anual, diferente das duas realizadas atualmente.
Na verdade, a International Board não está registrada em nenhum cartório no mundo. Ela é apenas um estatuto.
Nas reuniões ministradas em março, chamadas de Assembléias Gerais, são convocados quatro delegados de cada membro. Ou seja, 16 britânicos e mais quatro da Fifa. Em outubro, tendo a Fifa como sede fixa, é realizada a Reunião de Trabalho com apenas um representante de cada membro. Nestas discussões, cada membro apresenta suas propostas para a alteração da regra com a devida justificativa, que entra em votação.
A partir da gestão de João Havelange, a Fifa passou a arcar com todas as despesas das reuniões.
Mesquita compôs quadro internacional da Fifa e hoje atua como instrutor de arbitragem da entidade: contato com Havelange e Blatter
Universidade do Futebol – Os equívocos da arbitragem na Copa do Mundo da África do Sul fizeram retornar a pressão pela introdução de inovações tecnológicas que venham a minimizar os erros de arbitragem. Qual a sua opinião sobre o tema? Quais os benefícios e desvantagens que esta medida pode trazer à modalidade?
Emídio Marques de Mesquita – Porque não se chegou uma conclusão até hoje, por exemplo, na introdução de um sistema que detecte a entrada da bola no gol? Por uma razão simples. No tênis a bola atinge uma superfície plana; no futebol, é vertical. Tentaram com o chip na bola, mas não foi suficiente. No Campeonato Mundial Sub-17, no Peru, houve uma tentativa frustrante deste sistema.
Quando começou o futebol, não havia rede e existia um assistente para avaliar se a bola tinha realmente entrado no gol. Com a chegada das redes, eles viraram bandeirinhas. Agora, Platini está promovendo a volta destes, o que aumenta muito o custo.
Sobre a utilização de replays pela arbitragem, a International Board não aceita, pois não se pode utilizar este mecanismo em todos os jogos do mundo. Portanto, é uma proposta natimorta.
O que não está previsto na regra tem que estar administrativamente contido no regulamento das competições. Assim, ele complementa as regras no aspecto administrativo. E o que não está previsto nos dois, deve aparecer nos códigos judiciais esportivos.
Por exemplo, a regra do jogo não diz que o campo tem que ter grama, ou que o árbitro deve usar um apito. Esses pontos devem estar estabelecidos no regulamento da competição.
Quanto à parte disciplinar, a Fifa tem o seu código internacional, mas cada entidade tem a sua. Na Copa do Mundo, com dois cartões amarelos um jogador é suspenso. Já no Campeonato Brasileiro, que segue as normas da CBF, são necessários três.
Universidade do Futebol – De que maneira o senhor avalia a participação dos árbitros durante a Copa do Mundo de 2010?
Emídio Marques de Mesquita – Tudo o que aconteceu serve como parâmetro de avaliação. Mas cabe uma pergunta mais genérica, a todos: por que os árbitros erram?
Dividimos a arbitragem em quatro pedestais: a parte técnica, a parte física, a parte administrativa e a parte psicológica. A primeira se refere às regras, aos regulamentos e aos códigos. É a própria razão.
O maior problema que observamos durante o Mundial na África do Sul em termos de arbitragem foi na parte psicológica, na área do sentimento.
A parte administrativa já está na internet, como informação. A parte física é mantida por conta do planejamento realizado pela Fifa e seus critérios pré-estabelecidos.
O torcedor não aceita que o árbitro erre, pois ele só vê o lado do time dele no jogo. A imprensa é tendenciosa. Aceitamos que o erro sempre irá existir, dentro de alguns limites. O que nós não aceitamos é o dolo. E estudamos mecanismos para tentar fazê-lo errar menos.
Fato novo é aquilo que aconteceu pela primeira vez e você não sabe como resolver. O grande problema dessa Copa: a bola entrou [jogo entre Argentina e Alemanha]. Todos estavam treinados para aquele momento, mas os dois responsáveis pelo lance não viram. O mesmo vale para o jogo entre Argentina e México.
Houve uma falha de razão na mecânica de arbitragem e uma falha de sentimento. Toda ação determina uma reação, e a situação determina a ação. Se existe uma manifestação coletiva, e não apenas uma reclamação particular, a percepção fica clara.
Na minha vida, tive três fases simultâneas. Uma fase como engenheiro, outra como professor, e outra como árbitro. Essas três se interligavam de uma mesma forma: que se dane o mais próximo. E este era eu.
Se um funcionário da obra dormisse durante o expediente e depois pudesse cobrar as horas de serviço, ele o faria; se o aluno colasse durante a prova e depois pudesse reivindicar uma boa nota, ele o faria; assim como o jogador, se pudesse fazer um gol de mão, ele faria.
Sempre tive que sobreviver a esses três pontos de pressão com naturalidade. As pressões existentes são internas e externas: do jogador para o árbitro, do banco de reservas para o árbitro, da imprensa e da torcida para o árbitro.
Esse universo mexe com o sentimento. Qualquer atividade humana pode ser programada sem o envolvimento do sentimento. O futebol, não. No Brasil, costumo dizer, esse esporte é dito profissional, dirigido amadoristicamente por elementos passionais e inconsequentes. Se fosse minha empresa, teria de fechar ontem, pois só daria prejuízo. E é uma realidade que já perdura 50 anos.
Rossetti e assistente são pressionados por jogadores no duelo entre México e Argentina e Neuer observa bola ultrapassando a linha em chute de Lampard; erros no Mundial são explicados
Universidade do Futebol – O senhor acredita que a formação de árbitros ligados às ciências humanas possa minimizar o número de problemas e, consequentemente, a resolução destes durante uma partida de futebol?
Emídio Marques de Mesquita – A Universidade Federal do Paraná foi a primeira a tratar sobre esse tema da formação acadêmica. Criou-se um curso elitista de arbitragem. Eles achavam que se todos os árbitros tivessem um título universitário, seria criada uma nata privilegiada, e os problemas estariam resolvidos.
Não, o árbitro de sucesso não é aquele que está na universidade, mas o que está no povo. É aquele que sabe resolver um problema. A figura do árbitro nasceu justamente diante desta necessidade, baseado na confiança e na independência.
Esse cidadão é aquele que tem uma média nos quatro aspectos principais. Não posso ter um grande fundista, e um péssimo psicólogo. Ele tem de ter um denominador comum. E o grande árbitro é aquele que tem uma regularidade de atuações, nas quais ele consegue suplantar os atos novos e resolver os principais problemas.
Só há um problema quando você pode resolvê-lo. Toda vez que isso não é possível, o problema não pertence à sua esfera. O problema não existe quando não há respostas. O homem que sabe resolver suas adversidades familiares e cotidianas é o homem ideal à arbitragem.
Quando ele tem sua personalidade formada e sua atividade profissional não interfere na arbitragem, ele está pronto para ser um árbitro de sucesso. Por conta disso consideramos que a idade ideal para todo árbitro internacional é entre os 35 anos e os 45 anos. Ele está na plenitude de sua realização profissional e maduro o suficiente para exercer a nova função.
Hoje o futebol possui uma velocidade diferenciada. E nosso questionamento não se baseia mais na avaliação física, mas na faixa etária justamente por conta disso. Aquele de 46 anos muitas vezes se acomoda e acredita que possui direitos adquiridos, sem nada mais a crescer.
Arbitragem não é hobby e nem emprego: é vocação. Ela está condicionada àqueles dois postulados, que são a confiança e a independência.
Divido a carreira do árbitro em três momentos: ele apita onde deixam, apita onde ele quer, e apita onde ele gostaria. Quando chegar à plenitude, é necessário ter consciência e retornar para casa, não sendo apenas mais um.
Universidade do Futebol – Qual a diferença entre o árbitro e o “apitador”?
Emídio Marques de Mesquita – O apitador é aquele que saiu da escola e apita de uma forma inconsequente. O árbitro é aquele que toma uma decisão que pode desagradar ao mundo todo, menos à sua consciência.
Entre ambos, existe o relações públicas, o mediador. É aquele que aplica cartão para o jogador de um time e para o outro, ele é o bonzinho, sempre querendo estar em evidência nas escalas para ser prestigiado.
Os erros no último Mundial estiveram muito ligados à postura “mediadora” da maioria dos árbitros. Desagradaram a sua consciência, apitaram roboticamente, e geraram uma grande frustração. Este tem que ir pra casa.
Universidade do Futebol – Existe um modelo de treinamento específico realizado para os árbitros de futebol?
Emídio Marques de Mesquita – Quando eu atuava, cada país tinha no máximo sete árbitros internacionais. Estes funcionavam como árbitros e juízes de linha, que era a terminologia da época. A partir de 1990 após o Mundial na Itália, alterou para 10 árbitros e mais 10 árbitros assistentes, cada qual em sua função específica. A cabeça foi disciplinada.
Naquela época, a idade máxima era 50 anos – agora, 45 anos. Além disso, o referencial era o teste de Cooper, dos 12 minutos. Hoje é o teste no campo, andando, trotando e correndo. Muito mais difícil e exigindo bem mais fisicamente.
O trio também era misto em termos de nacionalidade. Agora, o idioma é o mesmo, sendo que todos têm de saber falar o inglês. Houve, consequentemente, uma diminuição dos erros, apesar de não ser o ideal. Por quê?
O problema não está quando a bola está parada, mas quando ela está em movimento. A velocidade do árbitro é uma, e a da bola é outra. O árbitro anda no mínimo a 2 metros por segundo de velocidade. Quando trota, vai a quatro metros por segundo. Num sprint, a sete metros por segundo. O tempo da bola é imprevisível.
O referencial é: árbitro e bola têm de correr na mesma direção, sendo que o ser humano precisa manter uma distância razoável do objeto, para não atrapalhar o desenvolvimento das ações.
Quanto menos interrupção houver, melhor o jogo. Temos de estudar, então, esse sincronismo entre todos os árbitros do mundo, algo muito difícil. NBA e FIBA, por exemplo, já conseguiram essa homogeneidade. O futebol, não.
No basquete, Mesquita deu seus primeiros passos como árbitro principal; dificuldades são maiores do que no futebol, acredita ele
Universidade do Futebol – Como é feita a análise do desempenho dos árbitros e a interação com ele, após a atuação em uma partida oficial?
Emídio Marques de Mesquita – Todo trabalho pressupõe que se tenha um controle. E o árbitro tem de saber que está sendo avaliado, para ter um retorno. Eu analiso o trabalho dele de acordo com alguns critérios específicos.
Nota 10 é excelente. Nove é ótimo; oito é muito bom; sete é bom; seis é mais que regular; cinco é regular; quatro é mais que sofrível; três é sofrível; dois é mais que insuficiente; um é insuficiente; e zero é nulo
São seis aspectos. Primeiro, a personalidade (peso 1). Tenho de responder se o árbitro foi imparcial ou não. Aquele ponto como ele se livrou das reclamações de jogadores, banco e público, por exemplo. Necessito escrever a razão de determinada atribuição, ponto a ponto.
Segundo ponto é a parte física (peso 2). Analiso a sincronia do árbitro com o jogo, o modo como ele se situa nas jogadas. Sempre justificando.
Terceiro ponto, de peso maior (peso 3), é a aplicação das regras do jogo. Ele tem de ter uniformidade de critérios para que os envolvidos tenham uma noção de como se desenvolverá o duelo. A aplicação da lei da vantagem também se insere nesse quesito. O árbitro é o guardião da regra, ele tem o poder disciplinar, e não é o juiz da questão.
Quarto ponto é a mecânica de arbitragem. A forma como o quinteto se realiza. No meu tempo, o árbitro assistente discordava bastante de você. Hoje, parece que é proibido se pensar diferente. Erra-se igual em detrimento do conserto do erro. O peso é dois.
O resultado final resulta em uma média – é o espelho da atuação do árbitro. Mas os jogos são diferentes. Tenho de ver o grau de dificuldade da partida, em si, com pontos extras conferidos ao árbitro. Cada um dos itens é justificado. Não é possível se manipular a informação.
No relatório, ainda cito três pontos positivos e três pontos negativos da atuação do árbitro. Mando o documento para a Fifa, que tira uma cópia e envia diretamente para a residência do envolvido na partida.
"Nunca me preocupei em agradar ninguém. E esse tipo de atitude me fez chegar aonde eu cheguei, sem hipocrisia, com o coração"
Universidade do Futebol – A medida mais interessante para reeducar o árbitro quando ele comete uma sequência de erros é o afastamento dele?
Emídio Marques de Mesquita – Sim, mas a punição do árbitro tem de ser intramuros. Ele não pode ser meramente exposto e tem de passar por uma reciclagem específica. Seja em termos técnicos, físicos ou psicológicos.
Universidade do Futebol – Como o senhor vê o papel da mulher dentro do mundo da arbitragem? Quais são as diferenças em relação à situação masculina?
Emídio Marques de Mesquita – O problema da mulher está totalmente desvirtuado no Brasil. No mundo existe futebol feminino, e aqui o desenvolvimento da modalidade é muito pequeno. Por conta disso, elas foram colocadas para trabalhar em meio aos homens.
A natureza biológica da mulher é diferente da do homem. O teste físico da mulher é diferente do homem. A cabeça da mulher é diferente da do homem. São estranhos no ninho.
Nós estamos andando na contramão do mundo. Jogos masculinos somente são dirigidos por homens, assim como são as mulheres quem arbitram os jogos femininos.
A mulher tem uma visão periférica melhor do que o homem. Por causa da procriação, da cria. Assim, ela é melhor assistente do que o homem e tem a visão de conjunto. Geralmente, comete menos erros quando atua nessa função.
Universidade do Futebol – O senhor teve um início de carreira ligada ao basquete. É possível traçar um paralelo entre modalidades diferentes e as peculiaridades em cada tipo de arbitragem? Qual esporte é mais difícil de ser apitado?
Emídio Marques de Mesquita – O esporte mais difícil de apitar chama-se pólo aquático. Fora da piscina, você tem de ter noção da “sacanagem” que está ocorrendo embaixo da água. O requisito para ter um grande árbitro dessa modalidade é que ele tenha sido jogador de pólo aquático. O mesmo não vale para o basquete e para o futebol.
Um ex-jogador de basquete ou futebol vai com o apito na boca e a cabeça de atleta. O jogo conduzido por esses árbitros acaba tendo um grau de intensidade tão grande, fazendo-os perder o controle. São permitidas determinadas ações faltosas, por exemplo, que eles consideravam normais.
Dos esportes coletivos, de quadra, o mais difícil de apitar é o voleibol. O árbitro fica estático e tem de analisar situações à distância em que é necessário criar uma uniformidade de critérios para não desarmonizar o jogo. Ele exige uma concentração e uma disciplina muito grandes.
Como não existe a vantagem no basquete e no voleibol, estes árbitros permanecem com o apito na boca. Diferentemente do futebol. Ele entre para deixar de apitar e permitir a fluidez do jogo.
A primeira coisa que ele tem de fazer é ver. A segunda, interpretar. A terceira, sentir. A quarta, analisar. E a quinta, emitir um sinal. Se um desses tópicos não acontecer em uma fração de segundo, o raciocínio dele está errado.
Tive uma experiência na final da Copa Intercontinental de Clubes de 1971, entre Panathinaikos, da Grécia, e Nacional, do Uruguai. Ouço um barulho, mas não vi o lance. Senti que o jogador havia quebrado a perna. Me virei, e apliquei o cartão vermelho ao adversário que estava próximo, em pé.
No jantar, à noite, o húngaro Puskas, que era treinador do Panathinaikos, dirigiu-se até mim e me disse que pensava que eu estava louco por ter expulsado o jogador. “Como você o expulsou?”. E eu respondi: “pelo barulho”. Isso é sentir. Analisar é o princípio da ação e reação. A situação determina a ação, e não o inverso.
Universidade do Futebol – Mesmo com toda a importância que tem o futebol na atualidade, a arbitragem ainda não pode ser considerada como profissão, já que são necessárias atividades paralelas para garantir o sustento de um árbitro. Quais as dificuldades criadas com esta situação? O que pode ser feito para alterar este contexto?
Emídio Marques de Mesquita – Na última Copa do Mundo, ao pé da letra, tínhamos apenas um árbitro profissional, ligado à federação inglesa, que é o Howard Webb. Em 1995, o Blatter enviou uma circular para todos os países do mundo, à época eu estava na CBF, para que pensássemos sobre a profissionalização da arbitragem. Em 15 anos não se encontrou uma solução, por vários aspectos.
A legislação trabalhista na Argentina é diferente da encontrada no Brasil, que também é diferente da inglesa. E surge uma pergunta: quem é o patrão do árbitro?
A Fifa diz que apenas usa os árbitros das entidades associadas a ela. A CBF, por exemplo, diz que tem a relação anual dos árbitros, e usa os representantes das federações estaduais. Estas dizem que formam os árbitros, sendo intermediárias de um campeonato que ela organiza, com o administrador de um condomínio, que são os clubes.
Pela legislação brasileira, a relação entre empregado e empregador é a carteira de trabalho, com diversas especificidades. Não existe na legislação brasileira, entretanto, a profissão “árbitro de futebol”. O Ministério do trabalho apenas dá ao sindicato as cartas sindiciais, mas não há uma lei singular.
Onde está o árbitro? O lado do qual ele veio não o aceita. Onde ele está, também não é aceito. Até agora não se encontrou uma resposta.
Dos 208 países filiados à Fifa, quantos têm condições de profissionalizar essa função? Peguemos os principais europeus, sul-americanos e asiáticos. Não passamos de 11 com essa possibilidade. Portanto, é exceção. O problema é insolúvel. E se mexer nisso, mexe com a independência.
No momento em que o árbitro necessita receber pelo seu serviço, ele passa a ser um mediador e se importar apenas com a próxima escala.
Para ter independência, eu tinha de ter o meu ganha-pão, proveniente da engenharia e do corpo docente. Do contrário, seria um mero fabricador de resultados. Nunca me preocupei em agradar ninguém. E esse tipo de atitude me fez chegar aonde eu cheguei, sem hipocrisia, com o coração.
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Benê Lima