Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, junho 24, 2010

O foco no consumidor na gestão do futebol inglês

Enquanto cada mercado demanda estratégias específicas, o foco no consumidor mantém-se fundamental para o desenvolvimento comercial dos clubes de futebol

Claudio Borges*

O futebol de cada país tem uma cultura própria. É uma mistura de como o futebol é praticado, acompanhado e administrado em um país. Esse relacionamento de uma nação com o esporte é resultado de uma série de fatores históricos, sociais, políticos e econômicos; fatores estes que moldam a própria identidade cultural de um país.

É por isso que no futebol nunca se pode assumir que um craque brasileiro terá sucesso na Europa, que grupos de torcedores possuem as mesmas expectativas ou que um modelo de gestão operante em um país funcionará em outro. Entretanto, quando o fundamento é válido e a estratégia planejada, as chances de sucesso são muito maiores.

A Premier League é atualmente a liga de futebol profissional mais desenvolvida no mundo. A liga gerencia os interesses dos clubes que representa, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento coletivo. Existe um esforço entre os clubes ingleses para a cooperação e a coletividade, que é reforçado por regulamentos e a venda centralizada de direitos de transmissão.

Além dos direitos transmissivos, os clubes ingleses conseguiram aumentos consideráveis nas receitas de jogo (ingresso, vendas no estádio, programas de sócios) e nas receitas comerciais (patrocínios, parcerias e licenciamento). Apesar de a Bundesliga, principal liga da Alemanha, alcançar níveis similares de receita, a prosperidade dos clubes ingleses se evidencia na qualidade e reconhecimento mundial dos jogadores que a liga consegue atrair.

Os lucros só não são maiores por duas razões: a primeira porque, diferentemente do Brasil, onde a maiorias das dívidas são públicas, as dívidas dos clubes ingleses são com os bancos e as parcelas tendem a ser pagas. A segunda razão, por uma retenção dos lucros, é porque os clubes precisam gastar com altos salários de jogadores, requisito para uma indústria que não tem a mesma facilidade que o Brasil na produção de jogadores.

O modelo gerencial do futebol inglês sofreu uma transformação geral no início da década de 90, com episódios trágicos levando a uma análise geral da maneira como o torcedor era tratado e o serviço prestado. Com problemas relacionados à violência, infraestrutura, organização de multidões e regulamentação, foi preciso uma revolução geral, onde a principal diretriz era o aprimoramento do relacionamento com o torcedor.


Parte interna do estádio do Liverpool, o Anfiel Road

O torcedor é a base fundamental em qualquer indústria de futebol. Eles são peças fundamentais no espetáculo e podem ser considerados a verdadeira “alma” de um clube de futebol. Do ponto de vista econômico, os torcedores representam a audiência dos direitos televisivos e o mercado potencial dos patrocinadores, além de serem capazes de geras receitas de jogo consideráveis.

Na Inglaterra, o foco no torcedor como consumidor se reflete em diversas ações, especialmente durante um evento esportivo. Primeiramente é preciso reconhecer que a experiência do torcedor não começa quando este chega ao estádio, mas sim quando este sai de casa. Clubes ingleses e autoridades de trânsito mantêm um diálogo constante para estudar a melhor maneira de levar torcedores aos estádios.

Em determinadas épocas do ano, no evento de nevascas em dias de jogo, as partidas são muitas vezes adiadas não devido às condições do gramado, mas sim devido à preocupação com os torcedores terem que dirigir sob condições arriscadas.

A cooperação com autoridades de trânsito inclui ainda a análise de locais de estacionamento, o mapeamento de rotas e horários de transporte público, e até a sincronização de semáforos para garantir que um melhor serviço está sendo prestado ao torcedor e cidadão que deseja ir ao estádio.

Elementos culturais atuam em diversos pontos. Por exemplo, enquanto no Brasil existe um costume de consumir produtos ao redor do estádio, o clima frio e os hábitos ingleses adiantam o ingresso de torcedores ao interior do estádio. Entretanto, o fato de um grande número de torcedores chegar mais cedo ao local é ocasionado pela simples existência de comodidades dentro do estádio.

Todos os principais estádios da liga inglesa possuem embaixo de suas arquibancadas amplas áreas dotadas de bares, banheiros e serviços. São áreas limpas e seguras, onde o comportamento dos torcedores é monitorado por profissionais treinados e circuitos internos de TV.


Antes do jogo entre Charlton e Chelsea, torcedores confraternizam nas áreas de conveniência

Durante partidas do Campeonato Inglês é possível observar que quinze minutos antes de um jogo com ingressos esgotados, uma grande quantidade de assentos do estádio estão vazios. A fim de combater problemas de desordem social e violência, o regulamento proíbe que torcedores entrem na área das arquibancadas com bebida alcoólica. A medida visa reduzir a probabilidade de incidentes causados por embriaguez, mas ao mesmo tempo reconhece que o consumo de bebidas alcoólicas faz parte da experiência do torcedor no estádio. Uma organização dos procedimentos de segurança e um processo de educação do torcedor possibilitaram que o hábito do torcedor fosse modificado e a medida respeitada.

O hábito do torcedor pode ainda ser influenciado por medidas mais simples. A fim de preservar a harmonia entre clubes, torcedores e árbitros, o regulamento preza que os dois times entrem em campo juntos, acompanhados ainda pelo árbitro da partida. A medida evita atrasos nos jogos e garante que a atmosfera seja amplificada antes do início da partida, valorizando o espetáculo.

Outras medidas possuem uma implementação mais complexa e consequências mais drásticas. A principal mudança na transformação do modelo de gestão inglês foi a imposição que os estádios ingleses deveriam ter assentos marcados para cada torcedor. Trata-se, primeiramente, de uma medida de segurança, à medida que o controle da capacidade do estádio evita superlotações e possíveis acidentes. Além de mais seguro, o serviço prestado ao torcedor se torna mais eficiente ao permitir a previsão de fluxos de entrada e saída no estádio e segmentação de arquibancadas.

O cadastro de torcedores permite que torcedores problemáticos sejam banidos e torcedores fiéis sejam identificados. A partir do momento que o assento do estádio ganha uma identidade, é possível conhecer o principal mercado consumidor do clube. Se um clube de futebol pretende desenvolver-se de forma comercial, é crucial que este conheça sua torcida e as expectativas de seu mercado consumidor.

Até 2014, os principais estádios brasileiros precisarão se adequar ao regulamento da Fifa, já que lugares marcados são pré-requisito para os estádios de Copa do Mundo. É necessário que o mercado brasileiro encare a medida temporária como uma oportunidade, e não uma imposição. O fato de o maior espetáculo do futebol mundial implementar lugares marcados, que possibilitam o foco no torcedor independentemente da cultura de um país sede ou torcida presente, evidencia que a medida possui um fundamento independente do ambiente cultural.

Seja qual for o relacionamento de uma nação com o futebol e o comportamento do torcedor considerado por modelos de gestão, o foco no consumidor é fundamental para qualquer clube de futebol se desenvolver comercialmente.

*Claudio Borges é pós-graduado pelo curso MBA Football Industry da Universidade de Liverpool e atualmente trabalha como Analista de Mercado do Manchester City FC

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Benê Lima