Confissões de um Rei: Pelé diz que Maradona precisa, primeiro, provar que foi o melhor da Argentina…
Postado por Geneton Moraes Neto em 30 de junho de 2010 às 18:05
O Dossiê Geral promete – e cumpre. Eis a entrevista completa com Pelé :
Jornalistas entediados espalharam a versão de que Pelé derrapa quando fala. É mentira. Provocado, nosso monarca é perfeitamente capaz de premiar a curiosidade dos repórteres com confissões surpreendentes, cenas de bastidores, eventuais inconfidências.
Aqui, Édson Arantes do Nascimento, a versão terráquea da entidade Pelé, apontará, por exemplo, quais eram os dois únicos defeitos do Rei do Futebol.
Descreverá pressões sofridas para disputar a Copa do Mundo de 1974 pela seleção brasileira. Falará de uma cena inusitada ocorrida nos vestiários do Brasil,no intervalo da final da Copa do Mundo de 1970, no México.
Sociólogos de botequim juram que em algum ponto do inconsciente coletivo brasileiro reluz uma difusa nostalgia da realeza. Quando querem reconhecer os talentos e virtudes de alguém, os habitantes da República Federativa do Brasil tratam de conceder-lhe um título monárquico. Roberto Carlos virou “Rei da Jovem Guarda”. Uma expedição por qualquer cidade brasileira revelará um rol de majestades de todo tipo: Rei da Bateria, Rei do Churrasco,Rei do Mate, Rei dos Pneus. Mas ninguém encarnou tanto a palavra Rei quanto Édson Arantes.
Sessenta e nove anos depois da proclamação da República, o Brasil ganhou, na Copa do Mundo de 1958, um Rei que até hoje não perdeu a majestade (fiz um teste: desafiei Pelé a ir conosco até a Quinta Avenida, para ver por quanto tempo ele poderia andar na rua sem ser reconhecido. Três décadas depois de ter abandonado os gramados, Pelé precisou de apenas dezesseis segundos para ser reconhecido por um africano. Em questão de minutos, o tumulto estava formado: pedidos de autógrafo, espoucar de flashs, assédio de admiradores. Pelé teve de voltar para a van. Tinha passado incólume pelo teste do reconhecimento público – em Nova York). Que outra celebridade seria capaz de criar um alvoroço numa das principais avenidas da cidade que é tida como a capital do planeta?
Agora publicado na íntegra, sem qualquer corte, o depoimento do Atleta do Século ao Fantástico é um documento sobre uma das pouquíssimas personalidades que, durante um diálogo com um repórter, podem se dar ao desplante de se comparar, a sério, com gênios como Beethoven ou Miguelângelo. Pelé pode. Porque sabe que, no futebol, pode ter sido o que Beethoven foi na música – ou Miguelângelo na pintura.
Que outra celebridade pode se referir a si própria na terceira pessoa, como se Pelé fosse um mito há tempos desvinculado das miudezas do mundo real? Pelé pode.
O encontro foi marcado para o apartamento que Pelé mantém desde os anos setenta em Nova York. O “Rei” chega com o rosto semi-encoberto por um boné. É o truque que usa para tentar esconder uma das fisionomias mais reconhecíveis do mundo. O punho, machucado num jogo de tênis, estava enfaixado. Pelé pede licença para ir “lá dentro”. Volta de camisa trocada. Enquanto o cinegrafista prepara a câmera, ele lembra que, quando morava em Nova York, costumava jogar tênis com o jornalista Lucas Mendes. Confessa uma pequena frustração: não consegue ganhar nunca de Rivelino no tênis.
Diz que passou a se policiar para não ficar repetindo a pergunta “entende?” ao final de cada frase:
- “Percebi que sempre falava “entende”, em todas as entrevistas. Depois das gozações, comecei a me policiar. Perdi o hábito. Depois que me chamaram a atenção para esta mania, psicologicamente já eliminei a palavra “entende”. Mas de vez em quando escapa algum”.
A bem da verdade, diga-se que Pelé conseguiu atravessar a entrevista sem emitir um “entende ?” sequer.
O “Rei” se confessa, numa gravação preservada no Centro de Documentação da Rede Globo:
Você já passou um dia sem dar autógrafo?
Pelé: “Digo com toda honestidade: só quando não saio de casa. Em casa, ainda tenho de assinar cheques para fazer pagamentos.Depois desta fase de Pelé – ou seja, desde a Copa de 1958 – não me lembro de ter passado um dia sequer sem ter dado autógrafo. Não me lembro!”.
Qual foi o pedido mais absurdo que você já recebeu?
Pelé: “Já recebi tantos pedidos e tantas propostas… A gente recebe, no escritório, cartas com todo tipo de pedidos – desde ajuda financeira até apartamento, casa e carro… Mas o pedido mais complicado que recebi foi feito, na África, por um pai, que me trouxe a filha e pediu para que eu casasse com ela. Era uma garota de 15 anos!”
Que resposta você deu?
Pelé: “Eu disse que não estava preparado ainda para casar….”.
Você sempre fala de Pelé como se Pelé fosse outra pessoa. Isso não é delírio de grandeza de um “Rei”?
Pelé: “Talvez seja delírio de grandeza de um ”Rei”, mas, por outro lado, é até uma modéstia do Edson. Porque um novo Pelé, que todo mundo procura desde 1958, não vai aparecer. Dona Celeste e Dondinho, meus pais, fecharam a fábrica. O novo Pelé não vai aparecer, então.
Edson Arantes do Nascimento é o que sofre, é a pessoa. Já Pelé é o mito que não vai morrer. Vai ficar para sempre.
Édson morre : é uma pessoa normal, alguém que chora, tem sentimentos e sofre pelas coisas erradas. É esta a diferença que sempre tento fazer”.
Ninguém gosta de pensar em morte, mas, já que ela é inevitável, qual seria o epitáfio de Pelé?
Pelé: “Não tenho medo de morrer nem de falar sobre a morte. Mas acho que o epitáfio do Pelé seria “o eterno”.
Sinceramente: você tem inveja de quem?
Pelé: “Inveja não tenho de ninguém. Em todo este tempo em que viajei com o futebol, conheci grandes personalidades: reis, rainhas, políticos, atletas, artistas. Eu às vezes falava: “Eu poderia ser um Nelson Mandela, um Juscelino Kubitscheck, um artista…”. Fui abençoado pelo Papa várias vezes. Mas inveja nunca tive.
Quando eu era garoto, o jogador que tentei imitar, porque era minha inspiração na época de minha chegada ao Santos, foi Zizinho. Quando comecei, aos dezesseis, dezessete anos, Zizinho estava terminando a scarreira. Eu achava: “Um dia vou ser igual a Zizinho…..”
Você disse que gostaria de ter sido JK. Por quê?
Pelé: “Porque, dentro do pouco que a gente conhecia de política, Juscelino chegou com uma proposta avançada e decente para nosso país. A grande mudança do Brasil aconteceu com Brasília e com JK. Eu o admiro muito”..
Você se disfarça?
Pelé: “Já usei bigode. Uma vez, fui à China. Pus uma peruca afro, além do bigode, para ir a um restaurante. Havia lá um pessoal que falava português. De repente, vi o pessoal da cozinha chegando. Eu disse: “Alguma coisa deu errado….”. Um dos garçons terminou perguntando: “É Pelé? “. O professor Júlio Mazzei – que estava na mesa conosco – perguntou: “Como é que souberam? “. O garçom: “Ah, ele começou a rir. A gente reconheceu”.
Todo mundo já falou das qualidades do Pelé em campo, mas poucos foram capazes de apontar os defeitos. Para Pelé, qual era o grande defeito de Pelé dentro do campo?
Pelé: “Pergunta difícil ! Você perguntou para Pelé. Se tivesse perguntado para Édson….
Pelé corrigiu um defeito que tinha durante a carreira. Eu me lembro: o meu pai me dizia que jogador que é centroavante ou atacante tem que saber cabecear e chutar de esquerda e direita. Porque a bola – afinal- pode cair de qualquer um dos dois lados. Eu tinha uma dificuldade de esquerda. Mas fiquei treinando e batendo com a perna esquerda. Hoje há até quem ache que sou canhoto! Mas sempre fui destro.
E cabecear? Fico triste de ver jogadores profissionais que ganham uma grana danada mas não sabem cabecear, o que é um absurdo!.
O garoto não saber cabecear era um absurdo nos tempos do meu pai. Porque cabecear é um principio do futebol. Hoje existem profissionais, centroavantes, que não sabem cabecear.
Depois dessa correção, eu, como Edson, não sei se vejo muito defeito no Pelé como jogador.
Pelé podia ser menos forte num tipo de jogada, mas defeito acho que ele não tinha”.
Os dois pequenos defeitos de Pelé no início da carreira eram, então, não saber cabecear e não saber chutar com a esquerda?
Pelé: “Exatamente! Aprendi com meu pai. Aprendi a chutar com a esquerda depois que vim para o Santos. Ficava batendo bola depois dos treinos. Ficava batendo bola contra a parede. Pedia para os jogadores cruzarem a bola para que eu pudesse bater de esquerda. Fui, então, superando esta dificuldade”.
Quanto valeria hoje o passe de Pelé, se Pelé estivesse jogando?
Pelé: “Que pergunta! Hoje, tudo tem um valor, uma comparação. Se fôssemos fazer uma comparação com o que se paga hoje, se fizéssemos uma relação de custo e benefício, Pelé não teria preço. Porque não daria para pagar o tempo que Pelé jogou na Seleção Brasileira e no Santos – quase vinte e cinco anos de carreira, sem parar. Talvez desse para pagar a divída do Brasil….”.
Que valor se aproximaria do talento de Pelé, em preço de passe?
Pelé: “ Se fosse feita uma comparação com os atletas de hoje, Pelé seria acima de qualquer um. O jogador mais caro foi – o quê? – 35, 40 milhões de dólares. Pelo que falei, Pelé deveria valer uns 100 milhões de dólares por ano”.
É verdade que o governo militar quis forçar você a jogar a Copa de 74 pelo Brasil ?
Pelé: “´Forçar´ é uma palavra forte, mas eles tentaram me persuadir a voltar a jogar, porque havia um interesse grande em que o Brasil fosse bem na Copa do Mundo de 1974,na Alemanha. Nós estávamos numa fase política muito difícil, no Brasil.
Eu me lembro de que tinha dado uma entrevista para Ziraldo, em que eu dizia que tinha ficado sabendo das barbaridades e das torturas que tinham sido feitas naquele tempo – de 1971 a 1973. Indignado com aquilo, uma das decisões que tomei foi a de não apoiar e não esconder o que estava acontecendo. Porque, cada vez que o Brasil ganha uma Copa do Mundo, esconde tudo: a fome, o desemprego, a saúde, a falta de moradia. O povo se envolve na alegria, naquela coisa de “Brasil” – e esquece de tudo.
Eu não queria aquilo porque eu já tinha conhecimento de muita coisa: já tinha conversado com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Chico Buarque. Já tinha me encontrado com eles; sabia de coisas que estavam acontecendo. Tomei realmente esta decisão. Como eu ainda estava em grande forma – afinal, o Santos foi campeão em 1973 e fui artilheiro do campeonato – , houve uma procura da filha do general Ernesto Geisel, e políticos como Pratini de Moraes e Jarbas Passarinho. Falei com vários políticos na época: todos achavam que eu tinha de jogar. Mas minha decisão foi a de não jogar”.
Você estava em perfeita forma em 1974: poderia ter jogado a Copa do Mundo na Alemanha sem qualquer problema. Você não se arrepende de não ter jogado?
Pelé: “Não. A decisão de me despedir como campeão do mundo foi a mais certa que tomei. Tenho convicção de que, se hoje os garotos de nove, dez anos de idade ficam gritando o nome de Pelé, é porque eles têm Pelé como um campeão. Por isso, não tenho nenhum arrependimento de não ter jogado a Copa de 74”.
É surpreendente ver Pelé dizer que, com a vitória do Brasil numa Copa do Mundo, o povo se esquece de tudo. Você sempre teve esta visão crítica?
Pelé: “Sempre. Sou uma pessoa que o Brasil todo conhece desde 1958. As minhas batalhas pela educação. Tenho procurado passar para o povo minha indignação por não termos um país que dê o mínino de condições para o povo – educação, moradia e saúde. Todo mundo sabe de minhas brigas, desde o milésimo gol que venho falando. Nem sei o que falar. Quando começo a falar, fico emocionado. É uma tristeza saber que o Brasil ainda hoje vive o que vive. Fomos o antepenúltimo país em educação. Isso é triste para quem, como eu, vive viajando – e vê que, em países que não têm a mínima condição, o povo vive melhor que brasileiro”.
Se Pelé estivesse em campo, o Brasil teria perdido da Holanda em 74?
Pelé: “Talvez não! Mas futebol é detalhe: em questão de segundos um lance pode decidir uma Copa do Mundo. O Brasil foi surpreendido na Copa de 1974 porque a Holanda veio com uma proposta de jogo que ninguém conhecia. Nem digo que o Brasil tenha jogado mal. O que aconteceu é que a surpresa provocada pelo tipo de jogo da Holanda tornou tudo difícil para o Brasil.
Não sei se, se eu tivesse jogado, a Holanda jogaria diferente – diante da preocupação de estar diante de um Pelé em campo – ou um Tostão. Porque se estivesse um Pelé, um Tostão ou um Jairzinho em campo, a postura da Holanda seria defensiva. Não iria para o ataque daquele jeito. Mas é dificil dizer se o Brasil, afinal, ganharia ou não”. ( N: O Brasil foi eliminado da Copa de 1974 ao perder para a Holanda por 2 a 0, no dia 3 de julho de 1974, em Dortmund).
Intimamente, em algum momento você se sentiu co-responsável pela derrota do Brasil em 74?
Pelé: “Fiquei triste, sofri. Mas é claro que ,durante a Copa, sempre dava aquela “cócega”, aquela vontade: “Puxa, eu poderia estar aí”. Eu, que amo o futebol, vivi realmente esta situação. Houve momentos em que eu disse : “Eu poderia ter jogado, eu poderia estar em campo….”.
Qual foi o argumento que a filha do Presidente Geisel usou pra tentar convencer você a disputar a copa de 74?
Pelé: “ Como faz muitos anos, não me lembro de detalhes. Porque muita gente me ligou. O deputado Athiê Jorge Cury, presidente do Santos na época, me passou o recado de que eu ira ser chamado pela Amália Lucy Geisel , que,na época, uma espécie de secretária do pai. Por telefone, ela me disse que eu deveria pensar bem, porque seria bom para o Brasil. A conversa foi amigável, num tom que chamava a atenção para o benefício que o Brasil poderia ter para o Brasil se eu aceitasse voltar”.
Que argumento você usou para não aceitar?
Pelé: “Eu disse exatamente o que vinha dizendo para todo mundo: eu já tinha me despedido em 1972, numa grande festa. Quando ocorreu a festa de despedida, no Maracanã, se o Presidente da CBF na época e se o próprio povo insistisse para eu ficar, talvez eu tivesse mais sensibilidade para ficar. Mas, como todo mundo aceitou a festa, todos acharam, ali, que era um momento bom para a despedida. Não havia, então, razão para eu ficar”.
De todos os nomes que foram citados ao longo dos anos, quem realmente chegou perto de ser o sucessor de Pelé?
Pelé :“Desde que comecei a jogar, nomes vão aparecendo. Apareceram grandes e excelentes jogadores. Eu vi. Por exemplo: Di Stéfano, Beckenbauer, Bob Charlton, Zico, um excelente jogador.
Tivemos excelentes jogadores brasileiros,como Ronaldinho, Rivaldo. Há Maradona, Eusébio, Paolo Rossi, Sívoli. Poderia ficar aqui citando vários nomes.
Maradona foi a última polêmica de Pelé. Gostei muito de jogadores argentinos. Eu gostei do Sivoli , que jogou na Itália uma vez. Gosto de Di Stéfano, a grande figura do Real Madri. Maradona, primeiro, precisa ser o melhor da Argentina. Porque lá ainda há dúvida sobre se é ele ou o Di Stéfano. Precisaria aprender a chutar de direita e a cabecear, porque ele não cabeceava bem nem chutava bem de direita. Assim, eu poderia compará-lo com Pelé. Mas foi um excelente jogador. Tivemos também no Brasil Dirceu Lopes, Tostão, Garrincha – um jogador diferente- , e Didi…..”
De todos os brasileiros que você citou, quem chegou mais perto de Pelé como jogador?
Pelé: “Pela característica de jogo, o que chegou mais perto foi Zico. É aquela história que sempre falo: não adianta você querer procurar um novo Beethoven, um novo Hamlet .(aqui Édson se confunde ao falar de Pelé: certamente, ele queria citar William Shakespeare. Terminou citando Hamlet). Não adianta você querer procurar um novo Frank Sinatra ou Michelângelo, que pintava de cabeça pra baixo. Porque Deus faz mas, depois, quebra a fôrma. Podem até surgir outros melhores e diferentes, em outras épocas. Mas igual ao Pelé vai ser difícil”.
Qual é o segredo dos bastidores da Copa do Mundo que você nunca contou pra ninguém?
Pelé: “Quando você é um jogador com mais experiência, fica sabendo de coisas. Há um segredo que já é nem segredo, porque até Gerson já comentou. Aconteceu na Copa de 70. Eu tinha dado entrevista dizendo que a Copa de 1970 seria a minha última. Carlos Alberto, Brito, o próprio Gerson, todos nós queríamos ganhar aquela Copa do Mundo. A gente fazia oração, fazia de tudo, porque aquela Copa iria encerrar nossa carreira.
Nós sentimos, no intervalo da final contra a Itália, um cheiro de cigarro. Fomos no banheiro – eu e Carlos Alberto. Gérson tinha acendido um cigarro lá, o “desgraçado”! . Acendeu um cigarrinho. Disse: “Ah, eu estou muito nervoso. É para desabafar”. Depois, ouvi dizer que Félix também. Não sei se já foi levado a público. Era um negócio absurdo!. Mas, realmente, aconteceu. Gérson sabe. É um segredo que eu não tinha falado para ninguém, mas, graças a Deus, ganhamos a Copa”.
Você reclamou de Gérson?
Pelé: “Ali, na hora, quase saímos de porrada em cima de Gérson: “Oh, papagaio desgraçado, a gente aqui querendo ganhar a Copa do Mundo….”. E ele: “Mas estou nervoso….”. Gérson fumava mesmo antes. Nunca escondeu de ninguém.
Gérson terminou fazendo o gol. Deu também o passe para eu fazer aquele outro gol em que matei a bola no peito. A gente não sabia o que aconteceria no segundo tempo. Se soubesse, mandava Gerson fumar em todos os intervalos”.
Você, afinal, é pão-duro?
Pelé: “Isso é uma coisa injusta! . Tudo começou com uma brincadeira com Gérson e Zagallo. Os dois é que são pão-duro, mão de vaca: não abrem a mão nem para o cafezinho. É aquela história de nunca ter dinheiro trocado para o café. Então, estes sim, eram pãos-duros,na seleção brasileira.
Sempre reservado: não gasto dinheiro à toa, o que é diferente. Contaminaram até o meu filho, o Edinho, com esta história. Quando conversam com ele, ele diz: “O meu pai é muito pão-duro….”. Mas meu filho tem tudo! Não acredito que eu seja pão-duro. Pelo contrário”.
Em algum momento você já se sentiu discriminado por ser negro?
Pelé: “Graças a Deus, não. Nem em Bauru: o meu pai jogava pelo Bauru Atlético Clube, o clube da elite. Em Bauru, meu irmão chegou a comentar alguma coisa. Mas, durante minha carreira, nunca.
Tive uma certa preocupação quando estava para vir para o Cosmos. Naquela época ,Muhammad Ali etava muito bem, ele que tinha sofrido, antes, aquela discriminação. Vir para os Estados Unidos com o futebol era uma coisa nova. Quando chegou a hora de decidir sobre vir ou não vir, pensei: “…Mas será que vou ter problema de racismo ? Vão me usar para alguma coisa?” Graças a Deus, minha vinda foi um grande sucesso – uma vitória do Brasil, porque hoje em dia o futebol é um dos grandes passatempos do jovem nos Estados Unidos. Pelé – acho- é o grande ídolo americano. O know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol com Pelé. Nem nos Estados Unidos tive problema de racismo, graças a Deus”.
“Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada….”
Você já se apaixonou por mulheres famosas?A paixão foi correspondida?
Pelé: “Nunca me apaixonei por mulheres famosas. As mulheres com quem me casei – primeiro, Rose; depois, Assíria – não eram famosas. Assíria é cantora evangélica conhecida, mas não é famosa. Quando eu jogava, existia muita onda. Se eu saía para jantar com uma artista, com uma cantora, todo mundo dizia que eu estava apaixonado.
Houve aquele caso de Xuxa. Disseram também que fui apaixonado pela Luíza Brunet. Conheci Luíza, por coincidência, junto com Xuxa. Naquela época, a gente fez um trabalho junto na revista Manchete, para escolher a modelo do ano. Luíza Brunet foi, realmente, a garota que me chamou a atenção. Mas já estava casada…. Devia ter 16, 17 anos. Não houve nada de paixão”.
A atenção que Luíza Brunet chamou em Pelé não chegou a se transformar em paixão?.
Pelé :”Não chegou porque,logo em seguida, tive todo o namoro com a Xuxa. Fala-se muito no Brasil: disseram também que fui apaixonado por Vera Fischer- minha amiga. Nunca tivemos nada. Falaram de Gal Costa. Disseram que fui apaixonado por uma menina que foi Miss Brasil, Flávia Cavalcanti. Sou apaixonado pela Assíria”.
Você já se encontrou com reis, papas, estrelas de cinema, celebridades de todo tipo. Qual é a celebridade que você gostaria de conhecer, mas ainda não teve oportunidade?
Pelé: “Você falou uma coisa certa: nesta terra, conheci quase todas as grandes celebridades. Dos brasileiros, conheci Ayrton Senna, Emérson Fittipaldi, Éder Jofre. Por falar em Éder Jofre: uma das grandes figuras que não conheci ainda é Popó, o lutador. Aproveito para parabenizar o Popó pela garra e pela técnica. Popó é a figura do momento que não tive oportunidade de conhecer ainda”. ( A TV Globo promoveu um encontro entre os dois poucas semanas depois desta declaração)
Xuxa disse numa entrevista que os seus pés não eram bonitos. O que você não acha bonito na Xuxa?
Pelé: “Respeito –muito – Xuxa. É um exemplo pela batalha e pelo sucesso. Fico feliz de ter participado deste início. Não acho que Xuxa tenha nada feio”.
Qual foi o maior perna-de-pau que você já enfrentou?
Pelé: “Em trinta anos de carreira, já joguei contra tantos pernas-de-pau que fica até difícil me lembrar de algum nome”.
Você sempre teve fama de conquistador. Pelé já falhou na cama?
Pelé: “A fama de conquistador não é verdade. Sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, até hoje, onde chego as portas estão sempre abertas., o que não quer dizer que eu seja conquistador. O importante é respeitar as pessoas que me admiram, tratar bem as pessoas que me procuram. É o que faço com crianças, gente de idade, jovens , mulheres – bonitas, feias. Não acredito que esta atitude seja nenhum galanteio: é obrigação de qualquer pessoa tratar a outra bem, respeitar os outros. Por essa razão, sou respeitado em todo o mundo”.
Você acabou fugindo da pergunta…
Pelé: “Não estou fugindo. O que estou dizendo é uma coisa real. Além de tudo, não me considero nenhum galã. É respeitar quem me procura, tratar bem os outros e saber que vou morrer – como as outras pessoas : o respeito talvez faça com que as pessoas se aproximem de mim, sejam elas como forem”.
Você aguentaria hoje, passado dos sessenta anos, jogar por quanto tempo uma partida?
Pelé: “Não tenho dúvida de que o futebol de hoje é de muito mais pressão, muito mais corrido do que era antes. O condicionamento físico vem de acordo com a competição. Com cinqüenta anos de idade, joguei na Itália, com a Seleção Brasileira principal. Com sessenta anos, fiz a inauguração do Centro de Treinamento do Santos, com a garotada. Mas, no futebol atual, com este preparo físico que tenho hoje, não dava para fazer nem o aquecimento…”
Quais são os cuidados que você toma fisicamente?
Pelé: “Sempre tive facilidade para manter o meu peso. Nunca deixei de fazer exercício. Sempre que posso, faço exercício em casa ou na praia. Cuido da minha alimentação. Quanto ao futebol, agora falando sério, é evidente que, se eu jogasse agora, estaria preparado. Por exemplo: com sessenta e dois anos da idade, se eu tivesse de fazer uma partida amistosa como fiz quando completei cinquenta anos, eu iria me preparar por dois, três meses. Jogaria. Com certeza: se conseguisse este tempo para parar e treinar, eu jogaria meio tempo. Mas não seria aquele Pelé que fazia gol de bicicleta. Não se pode exigir tanto: é o Pelé normal”.
Em nome de que causa Pelé entraria em campo hoje pra jogar meio tempo que fosse?
Pelé: “ Talvez para acabar definitivamente com uma guerra. Porque parar uma guerra o Santos já parou, nos anos sessenta. Depois, a guerra continuou. Ou para concretizar o desejo de Lula de acabar com a fome no Brasil. Penso que seria excelente fazer um jogo com a assinatura de “acabou a fome no Brasil” “.
Que reação você teria se visse hoje o Maracanã superlotado gritando o nome de Pelé e pedindo que ele entrasse em campo?
Pelé: “Teria a mesma reação que tive na despedida, diante do Maracanã lotado, dentro daquela emoção: iria me despedir porque aprendi com seu Dondinho que parar no melhor da carreira é a coisa mais inteligente”. (N:Pelé se despediu da seleção brasileira em jogo no Maracanã, no dia 18 de julho de 1971, contra a seleção da Iugoslávia. O jogo terminou empatado: 2 a 2. Pelé deixou o gramado – chorando – sob o coro da torcida que pedia “fica, fica, fica” ).
Qual foi a grande mudança na vida de Pelé nestes últimos trinta anos?
Pelé: “ Tive mudanças, graças a Deus, para melhor. A vinda aqui para os Estados Unidos, a parte de educação e cultura. Amadureci como ser humano. Aprendi muito. Posso até dizer, por exemplo, que peguei o “Fantástico” no colo. O Fantástico era uma criança quando conheci o programa ( a primeira edição do Fantástico foi ao ar em agosto de 1973). Eu melhorei muito, aprendi muitas coisas : não parei.
Há coisas que falo com o orgulho. Fernando Henrique Cardoso disse que Pelé foi o Brasil que deu certo. Tenho muito ainda o que aprender”.
Por quanto tempo você pode andar nas ruas de Nova York sem ser reconhecido?
Pelé: “ Depende do lugar. Sem disfarce, é difícil. Em qualquer lugar, sempre vem um ou outro. Quando vou sair – por exemplo, para a Igreja Saint Patrick, para rezar – ponho óculos ou bonezinho. Dizem que vou disfarçado de Milton Nascimento. Mas quando saio de cara limpa, basta descer do carro: vai ter sempre alguém chamando”.
Você sempre soube administrar muito bem a carreira. Você tem idéia do tamanho da fortuna de Pelé, em dólar?
Pelé: “Nunca me preocupei muito em parar para contar. Quem pára para contar perde dinheiro – a coisa material. E a coisa material nunca foi muito importante em minha vida. Já a marca “Pelé” é uma das mais valiosas no mundo, sem dúvida nenhuma”.
Você tem idéia do valor desta marca?
Pelé: “Não tenho idéia do valor. Mas a marca “Pelé” hoje é de um valor inestimável”.
Você conhece um ator de cinema pior que Pelé?
Pelé: “Conheço muitos. O que não é justo é o pessoal fazer, na época em que eu filmava, comparações entre Pelé ator e Pelé jogador de futebol. É injustica. Pelé nasceu para jogar futebol. Ator ele estava aprendendo a ser. Mas poucos atores, com todo o nome que têm, foram dirigidos por John Huston, trabalharam e foram dirigidos também por Silvester Stallone, Michael Caine, Ipojuca Pontes. Trabalharam com Paulo Goulart, Stênio Garcia, Regina Duarte. É bom, não é? “.
Qual foi, afinal, o gol mais bonito que você já fez ?
Pelé: “O gol mais bonito foi contra o Juventus, na Rua Javari.(N: o jogo Santos 2 x 1 Juventus, pelo campeonato paulista, foi disputado no dia dois de agosto de 1959). Todo mundo fala. A descrição feita pelos jogadores que estiveram no dia do jogo, tanto do Juventus quanto do Santos, é maravilhosa. Infelizmente a equipe de Aníbal Massaíni não conseguiu achar imagens deste gol , depois de quatro anos de pesquisas sobre jogadas e momentos importantes da vida de Pelé para o filme “Pelé Eterno”. Há também o “gol de placa” , lindo ( marcado contra o Fluminense, no Maracanã, pelo Torneio Rio-São Paulo de 1961. Pelé driblou sete jogadores do Fluminense antes de marcar o gol).
Quanto ao gol da Rua Javari, eu me lembro de que três jogadores do Juventus foram “chapelados”. Quando Mão de Onça, o goleiro, veio na bola, também levou um chapéu. Fiz o gol de cabeça.
Todo mundo diz que criei o soco no ar na comemoração do gol. Não foi nada disso. O que aconteceu foi que, neste jogo em que fiz o gol, a torcida estava me perturbando. O Santos não estava jogando bem. Eu também não. Já o Juventus estava numa tarde boa. A torcida, então, ficou vaiando, vaiando, vaiando. Quando fiz este gol, fui para a torcida, desabafei, falei palavrão. Dei, então, um soco no ar. Porque tinha feito o gol mais bonito da minha vida”.
Quer dizer então que a origem do soco no ar na comemoração do gol foi um desabafo por este gol?
Pelé: “Exatamente! É esta a origem do soco no ar. Há quem diga que Pelé é tão pão-duro que até para comemorar o gol ele fica com a mão fechada…. Mas não é assim. O soco no ar, na verdade,foi para comemorar um gol que foi uma coisa maravilhosa. Se pudéssemos reconstituir este gol para os mais jovens, para que a nova geração não tenha nenhuma dúvida, seria maravilhoso”.
Aqui da varanda você tem esta bela vista de Nova York. Quanto tempo você passa aqui por ano?
Pelé: “Passo três meses por ano. Quando eu jogava com o Cosmos, tinha contrato com a Warner: ficava seis meses, a duração de uma temporada de esporte. A vista aqui é maravilhosa. Do topo do prédio, você vê o East River. Tive muita sorte de conseguir este lugar aqui no tempo que estava jogando no Cosmos. Agora, estou aqui para sempre”.
Onde você estava no dia do atentado de 11 de setembro de 2001?
Pelé: “Viajei na noite anterior. quando cheguei ao Brasil, pela manhã, soube do atentado pela televisão. Meu irmão, “Zoca”, tinha ficado aqui em Nova Iorque. Meu assessor também. Uma loucura: fiquei apavorado porque minha filha, que mora aqui, vivia perto do World Trade Center. Fiquei procurando saber e querendo me comunicar, mas, graças a Deus, com a família não aconteceu nada”.
Do que é que você mais gosta aqui em Nova York?
Pelé: “Tenho liberdade em Nova York. Vou ao supermercado, vou ao Central Park. Em algum lugar dá para ficar, especialmente se é dia de semana. Porque se é domingo ou feriado os lugares ficam cheios. O pessoal me descobre logo. A liberdade, esta coisa mais respeitosa do americano, é o que mais me cativa em Nova York”.
Com que frequência você vai à catedral rezar?
Pelé: “Sempre que estou em Nova Iork. Quando fiz o contrato com o Cosmos, eu cheguei aqui nos Estados Unidos; pedi a ela que me ajudasse, iluminasse meu caminho. Deu tudo certo, porque foi uma grande vitória. Agora, já me acostumei. Vou à Saint Patrick, para agradecer”.
Qual é o santo de devoção de Pelé?
Pelé: “Meu santo é Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe sempre diz uma coisa engraçada: quando crinça, em Bauru, eu era tão levado que ela me entregou a São Benedito. Minha mãe pediu: “São Benedito, tome conta deste garoto!”.
São Benedito tomou conta bem”.
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Design, diagramação, montagem fotográfica: Benê Lima
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