No ‘campo discursivo’ do futebol, profissionais e ciências habitam de forma contraditória, contratual ou neutra uma mesma região
Marcelo Fila Pecenin*
Objeto de estudo das ciências que estudam a complexidade biológica e a motricidade humanas – Educação Física, Fisiologia, Medicina, entre outras –, o futebol, desde a passagem da década de 1970 para a de 1980, vem sendo estudado amiúde pelas Humanidades – Antropologia Social, Sociologia, História e Literatura –, principalmente do ponto de vista das forças de pertencimento e construção de identidades – inclusive nacionais –, da alienação ideológica, da emancipação política, da luta de classes, das questões raciais e, mais recentemente, dos elementos estéticos do jogo, o futebol-arte.
O esporte das multidões, no entanto, ainda não foi devidamente explorado em sua dimensão linguística, própria da linguagem verbal, ou, de forma mais ampla, discursiva. Pelo menos no Brasil, onde é considerado fenômeno cultural.
Tirante um punhado de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado dispersas e ainda embrionárias nessa direção, o que se destaca, num mercado editoral pouquíssimo aproveitado, são o livro “Futebol – fenômeno linguístico” (Documentário, 1974), da jornalista Maria do Carmo Fernández, e o artigo “Estruturas semânticas no léxico do futebol” (1996), publicado pelo linguista Nildemir de Carvalho na 40ª edição da revista “Alfa”. A primeira obra traz basicamente uma descrição fonética e morfossintática do vocabulário empregado pela imprensa esportiva brasileira em meados dos anos 1970, e a segunda analisa os valores de movimento e função em expressões da terminologia futebolística.
Neste sentido, torna-se necessário explicar que, por dimensão discursiva da linguagem verbal, deve-se compreender não só o aspecto funcional da língua na produção de mensagens e veiculação de conteúdos, mas também:
1) a capacidade de o discurso instaurar a interação entre interlocutores;
2) o poder simbólico das expressões verbais para, como signos linguísticos, representar ideologias, intermediando assim, por meio da construção de simulacros do real ou efeitos de realidade, a relação entre o falante e o meio.
A linguagem verbal, de fato, se faz presente e atuante em toda a extensão do universo do futebol, seja como fenômeno cultura ou prática social. E isso não poderia mesmo ser diferente, já que o esporte de maneira geral, como atividade concebida e praticada pelo Homem, não escaparia a nossa habilidade de organizar as palavras visando à produção de sentidos, ou seja, à marca indelevelmente humana da linguagem verbal, traço que, segundo muitos teóricos das Ciências Humanas, como o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), mais nos difere dos outros animais. Ponto de articulação entre os processos linguísticos e as manifestações ideológicas, o discurso possibilita e permeia a interação entre jogadores de uma mesma equipe, entre o treinador e seus comandados, entre os atletas e a arbitragem, entre os representantes do clube e sua torcida e vice-versa – por exemplo, nos hinos e gritos pelos quais os torcedores embalam seus ídolos.
Isso sem contar as peculiaridades culturais na designação de jogadores – nossos Kakás, Ronaldinhos e Vampetas em comparação a, por exemplo, os europeizados Luís Figo e Cannavarro – e todo o trabalho linguístico-argumentativo empreendido pela Propaganda e pelo Marketing que, inseridos na perpespectiva mercantilista de apropriação do futebol, comercializam o jogo e seus “produtos” agregados – a marca dos clubes, a imagem dos craques, os campeonatos, os megaeventos, modos de experimentar as partidas etc.
Dessa forma, o futebol pode ser classificado como o que o analista do discurso francês Dominique Maingueneau define por “campo discursivo” em seu livro “Gênese do discurso” (Criar Edições, 2005): um conjunto de discursos que habitam de forma contraditória, contratual ou neutra uma mesma região, delimitada no interior do universo discursivo, o qual abriga, por sua vez, a totalidade dos campos discursivos e seus respectivos discursos.
Aos discursos do e sobre o futebol também dá voz a mídia esportiva – um outro relevante elemento constitutivo das interações verbais travadas no mundo da bola –, inserindo-os em situação de concorrência, num processo que, ao colocar em diálogo diferentes posições ideológicas a respeito do jogo e seus temas correlatos materializadas na superfície linguística dos enunciados, propicia a organização de certa consciência nos enunciadores, instala interdições e incitações nos papéis sociais de dizer, estabelece processos de identificação, constrói identidades. Nesse particular, a Análise do Discurso de linha francesa, uma corrente interdisciplinar das Ciências da Linguagem – fundada sobre a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise – que estuda, grosso modo, as imbricações entre língua e ideologia na produção de sentidos, pode se colocar, por exemplo, a questão “por que ‘jogador de futebol diz sempre a mesma coisa?’”.
Convém esclarecer, por fim, que dar mais atenção científica à dicotomia futebol-linguagem verbal não se trata necessariamente de executar um exercício de descoberta do novo, mas sim de estrear, ou melhor, incrementar uma prática de estudos que não deixa à margem da pesquisa essa relação essencialmente humana e constitutiva entre jogo e língua, bola e discurso, uma relação de nunca-acabar, na qual não se pode descrever com exatidão um marco de emergência inicial tampouco vislumbrar um desfecho.
*Marcelo Fila Pecenin é Doutorando em Linguística pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
Muito obrigado, sr. Benê Lima, por dar espaço ao meu texto originalmente publicado no "site" da Universidade do Futebol.
ResponderExcluirE parabéns pelo blog!
Aproveito a oportunidade para divulgar o meu diário virtual com análises e comentários esportivas: http://marcelopecenin.zip.net.
Um grande abraço,
Marcelo
É sempre um prazer, prezado Marcelo, ter bons textos em meu blog. E o seu faz parte dessa coletânea.
ResponderExcluirVou colocar o endereço do seu entre as minhas indicações.
Abraço.
Muito obrigado, Benê, por indicar meu blog neste espaço.
ResponderExcluirUm grande abraço.