Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, junho 24, 2010

Jogo e língua, bola e discurso: uma relação de nunca-acabar

No ‘campo discursivo’ do futebol, profissionais e ciências habitam de forma contraditória, contratual ou neutra uma mesma região

Marcelo Fila Pecenin*

Bocas e bola Objeto de estudo das ciências que estudam a complexidade biológica e a motricidade humanas – Educação Física, Fisiologia, Medicina, entre outras –, o futebol, desde a passagem da década de 1970 para a de 1980, vem sendo estudado amiúde pelas Humanidades – Antropologia Social, Sociologia, História e Literatura –, principalmente do ponto de vista das forças de pertencimento e construção de identidades – inclusive nacionais –, da alienação ideológica, da emancipação política, da luta de classes, das questões raciais e, mais recentemente, dos elementos estéticos do jogo, o futebol-arte.

O esporte das multidões, no entanto, ainda não foi devidamente explorado em sua dimensão linguística, própria da linguagem verbal, ou, de forma mais ampla, discursiva. Pelo menos no Brasil, onde é considerado fenômeno cultural.

Tirante um punhado de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado dispersas e ainda embrionárias nessa direção, o que se destaca, num mercado editoral pouquíssimo aproveitado, são o livro “Futebol – fenômeno linguístico” (Documentário, 1974), da jornalista Maria do Carmo Fernández, e o artigo “Estruturas semânticas no léxico do futebol” (1996), publicado pelo linguista Nildemir de Carvalho na 40ª edição da revista “Alfa”. A primeira obra traz basicamente uma descrição fonética e morfossintática do vocabulário empregado pela imprensa esportiva brasileira em meados dos anos 1970, e a segunda analisa os valores de movimento e função em expressões da terminologia futebolística.

Neste sentido, torna-se necessário explicar que, por dimensão discursiva da linguagem verbal, deve-se compreender não só o aspecto funcional da língua na produção de mensagens e veiculação de conteúdos, mas também:

1) a capacidade de o discurso instaurar a interação entre interlocutores;
2) o poder simbólico das expressões verbais para, como signos linguísticos, representar ideologias, intermediando assim, por meio da construção de simulacros do real ou efeitos de realidade, a relação entre o falante e o meio.

A linguagem verbal, de fato, se faz presente e atuante em toda a extensão do universo do futebol, seja como fenômeno cultura ou prática social. E isso não poderia mesmo ser diferente, já que o esporte de maneira geral, como atividade concebida e praticada pelo Homem, não escaparia a nossa habilidade de organizar as palavras visando à produção de sentidos, ou seja, à marca indelevelmente humana da linguagem verbal, traço que, segundo muitos teóricos das Ciências Humanas, como o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), mais nos difere dos outros animais. Ponto de articulação entre os processos linguísticos e as manifestações ideológicas, o discurso possibilita e permeia a interação entre jogadores de uma mesma equipe, entre o treinador e seus comandados, entre os atletas e a arbitragem, entre os representantes do clube e sua torcida e vice-versa – por exemplo, nos hinos e gritos pelos quais os torcedores embalam seus ídolos.

Isso sem contar as peculiaridades culturais na designação de jogadores – nossos Kakás, Ronaldinhos e Vampetas em comparação a, por exemplo, os europeizados Luís Figo e Cannavarro – e todo o trabalho linguístico-argumentativo empreendido pela Propaganda e pelo Marketing que, inseridos na perpespectiva mercantilista de apropriação do futebol, comercializam o jogo e seus “produtos” agregados – a marca dos clubes, a imagem dos craques, os campeonatos, os megaeventos, modos de experimentar as partidas etc.

Dessa forma, o futebol pode ser classificado como o que o analista do discurso francês Dominique Maingueneau define por “campo discursivo” em seu livro “Gênese do discurso” (Criar Edições, 2005): um conjunto de discursos que habitam de forma contraditória, contratual ou neutra uma mesma região, delimitada no interior do universo discursivo, o qual abriga, por sua vez, a totalidade dos campos discursivos e seus respectivos discursos.

Aos discursos do e sobre o futebol também dá voz a mídia esportiva – um outro relevante elemento constitutivo das interações verbais travadas no mundo da bola –, inserindo-os em situação de concorrência, num processo que, ao colocar em diálogo diferentes posições ideológicas a respeito do jogo e seus temas correlatos materializadas na superfície linguística dos enunciados, propicia a organização de certa consciência nos enunciadores, instala interdições e incitações nos papéis sociais de dizer, estabelece processos de identificação, constrói identidades. Nesse particular, a Análise do Discurso de linha francesa, uma corrente interdisciplinar das Ciências da Linguagem – fundada sobre a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise – que estuda, grosso modo, as imbricações entre língua e ideologia na produção de sentidos, pode se colocar, por exemplo, a questão “por que ‘jogador de futebol diz sempre a mesma coisa?’”.

Convém esclarecer, por fim, que dar mais atenção científica à dicotomia futebol-linguagem verbal não se trata necessariamente de executar um exercício de descoberta do novo, mas sim de estrear, ou melhor, incrementar uma prática de estudos que não deixa à margem da pesquisa essa relação essencialmente humana e constitutiva entre jogo e língua, bola e discurso, uma relação de nunca-acabar, na qual não se pode descrever com exatidão um marco de emergência inicial tampouco vislumbrar um desfecho.


*Marcelo Fila Pecenin é Doutorando em Linguística pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

3 comentários:

  1. Muito obrigado, sr. Benê Lima, por dar espaço ao meu texto originalmente publicado no "site" da Universidade do Futebol.

    E parabéns pelo blog!

    Aproveito a oportunidade para divulgar o meu diário virtual com análises e comentários esportivas: http://marcelopecenin.zip.net.

    Um grande abraço,

    Marcelo

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  2. É sempre um prazer, prezado Marcelo, ter bons textos em meu blog. E o seu faz parte dessa coletânea.
    Vou colocar o endereço do seu entre as minhas indicações.
    Abraço.

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  3. Muito obrigado, Benê, por indicar meu blog neste espaço.

    Um grande abraço.

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Benê Lima