Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quarta-feira, agosto 31, 2011

Futebol da (dá) televisão: moldurações audiovisuais

Proposta é investigar a consolidação de práticas que viriam a se constituir na atual linguagem das transmissões televisivas do futebol, desvendando, no processo, a construção da ethicidade televisiva
Marcio Telles da Silveira

Introdução

Há quem argumente que assistir a um jogo de futebol na televisão não tem a mesma graça de assisti-lo no estádio. Na perspectiva desse trabalho, tal comparação é injusta: trata-se de duas coisas distintas. A fruição no estádio é uma experiência mais informativa para quem entende de futebol, mas a televisão não parece se preocupar com isso: ela empurra a experiência de uma partida ao extraordinário.

Nesta pesquisa, estudaremos como ocorre a reconstrução televisiva desse esporte. Nosso objeto mostrou-se escorregadio: como apontamos no título, a identidade televisiva do futebol não é criação da televisão, mas já existia virtualmente desde sempre. Esse jogo que é “maior do que a vida” (como certa vez disse um treinador britânico) é dramático como uma novela, possui uma legião de fanáticos espectadores e vai ao ar ao menos uma vez por semana – além disso, há neles marcas que o distinguem de outros esportes que seriam facilmente assimiladas pela televisão. Ou seja, o futebol sempre deu televisão, mesmo antes de ela existir – seus agentes é que demoraram a perceber isso.

Ainda assim, é inegável que a televisão alterou a dinâmica do futebol praticado em campo. Esperamos que, ao final da leitura, o leitor perceba que o jogo hoje atuado dentro de campo é construído visando sua reatualização como produto televisivo. O futebol sempre deu televisão (sua macroestrutura virtualmente comportava isso), mas o futebol da televisão está em via de tornar-se outro esporte, mais uma entre as dezenas de variantes de futebol atualmente jogadas no mundo.


Futebol da televisão

A era do futebol da televisão tem seu marco zero a 16 de setembro de 1937, quando a estatal inglesa BBC transmitiu para alguns poucos televisores o amistoso entre o clube londrino Arsenal e seus reservas, em jogo especialmente preparado para a ocasião. No ano seguinte, ocorreria a primeira partida internacional televisionada, entre Inglaterra x Escócia, a 9 de abril de 1938, mesmo ano em que aconteceram as primeiras  transmissões de corrida de barco (2 de abril) e críquete (24 de junho). Porém, coube aos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, a “honra” de ter sido o primeiro megaevento esportivo a ter transmissão televisiva – prevendo o imbricamento entre esporte, televisão e política que caracterizaria as teletransmissões esportivas ao longo do século XX.

Registros audiovisuais do futebol existem desde os primeiros anos do século passado, inclusive no Brasil. Segundo ORICCHIO (2006), a primeira filmagem brasileira de um jogo é Match Internacional de Futebol entre Brasileiros e Argentinos, de 1908, produzido por Antonio Leal, dono da maior produtora carioca da época, a Fotocinematografia Brasileira. O
mesmo autor contabiliza algo em torno de 60 filmes sobre futebol produzidos no Brasil até 1920, o que, segundo ele, é “muita coisa, mesmo se considerarmos a existência de uma ou outra repetição, ou seja, o mesmo filme apresentado com títulos diferentes” (p.54).

Nos mais de setenta anos entre a primeira transmissão e as atuais, não só a televisão mudou como também o futebol. Esse relacionamento muitas vezes conturbado entre futebol e televisão constituiu uma linguagem própria, criada através de um longo processo de experimentação, onde novos procedimentos – possibilitados por inovações tecnológicas – constantemente reorganizaram a dinâmica dessa linguagem audiovisual e do próprio futebol. 

Dentro da televisão, o futebol tornou-se outra coisa, aculturado pela cultura televisa – que, afinal, transforma tudo aquilo que com sua tela toca. Mesmo inconscientemente, os atores do futebol indicam a existência dessa nova identidade do futebol, que chamamos de sua ethicidade televisiva. É ela que está implícita, por exemplo, no comentário do jornalista Rodrigo Bueno sobre a partida entre Manchester United e West Bromwich, transmitida por
um canal por assinatura especializado em esportes:

Nossa, é como aqueles filmes de Hollywood. Até parece que alguém escreveu um roteiro: o time vencia com facilidade por 2x0, daí o outro empata. Então chama do banco dos reservas logo o jogador [Wayne Rooney] que está brigado com a torcida e o treinador. Só falta ele entrar e fazer o gol da vitória (transmissão da ESPN Brasil, grifo nosso).

Os jogadores também percebem a nova natureza do jogo. Em entrevista a uma revista esportiva, o português Cristiano Ronaldo, ex-Manchester United e hoje atuando no CF Real Madrid, argumenta:

Não devemos nos esquecer de que o futebol é entretenimento, e estou dedicado à arte de entreter. Nesse sentido, sou um showman, alguém que se preocupa em divertir quem paga um ingresso (RONALDO, 2010, p.63, grifos nossos).

Em livro sobre os bastidores do futebol europeu, o jornalista britânico David CONN (1997) olha desolado para o novo panorama do esporte em seu país. Impressionado com a higienização dos estádios ingleses, que baniu os tradicionais torcedores de classes operárias, trocou arquibancadas por poltronas e escancarou as portas das modernas arenas (outro termo significativo) à classe média e às elites financeiras, comenta: 

Algumas poucas pessoas aplaudiam [no estádio]. Então você pensa, se o [Manchester] United quer domesticar o futebol dentro da ‘indústria do entretenimento’ da classe média, porque a atmosfera [de um estádio de futebol] deveria ser diferente de outros lugares (...) como a ópera e o teatro? Por que deveria ter qualquer barulho durante a apresentação? Por acaso se aplaude no cinema? (CONN, 1997, p.50, tradução nossa).

É justamente o Manchester United o clube de futebol considerado mais valioso do mundo, em relatório montado pela revista de negócios Forbes: seu valor estimado é de 1,38 bilhão de euros, com receita anual de 327 milhões. É o resultado de uma política adotada desde o início da década de 1990, quando este e outros 21 clubes romperam com a federação local e venderam seus recém-criados direitos televisivos para a emissora a cabo de um australiano fã de críquete, para quem “futebol é jogo de favelado”.

Da noite para o dia, torcedores britânicos descobriram que precisavam pagar para ver (pay per view) o mesmo conteúdo que assistiram de graça por 40 anos na televisão aberta. Ao mesmo tempo, a mudança do futebol dentro do panorama televisivo alterou também seu status na sociedade inglesa, o que levou à escalada do preço dos ingressos – obrigando os velhos fãs de classes assalariadas a torcerem por seus times das poltronas de suas casas.

O slogan escolhido para lançar a Premier League na televisão a cabo não poderia ser mais propício: “Um jogo de bola completamente novo” (a whole new ball game), ressaltando não só a emergência de uma nova forma de competição, mas também de transmissão. Para CONN (1997), a propaganda da Sky parecia ressaltar que eles “haviam inventado o futebol”. De certa maneira, eles o reinventaram. 

No plano televisivo, o modelo de negócios e de transmissão do campeonato inglês tornar-se-ia ao longo da década no ideal a ser copiado em outros países (inclusive no Brasil).

As diferenças entre as transmissões da Copa de 1990 e a de 1994 só são comparáveis às mudanças entre 1962 e 1966, quando o intervalo deu origem ao Match of the Day da BBC, programa semanal que praticamente ergueu as pilastras da linguagem televisiva do futebol.

Todavia, as novidades de 1994 são muito mais extraordinárias: dollys laterais, gruas atrás dos gols, múltiplas câmeras – tudo feito para mostrar ao assinante aquilo que ele é “incapaz de ver de dentro do estádio”, mas que pouco importa informativamente: a whole new ball game.

Para ler a monografia na íntegra, clique 
aqui.

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