Especialista em políticas públicas analisa o esporte nacional e suas perspectivas pré-Copa e Jogos
Equipe Universidade do Futebol
No atual momento, em que se discute a realização de megaeventos esportivos no Brasil, e tanto sociedade civil organizada como instituições governamentais se mobilizam em torno de políticas e questões relacionadas ao esporte, o professor Lino Castellani Filho surge como uma voz crítica que merece – e tem – de ser ouvida com atenção. Afinal, a trajetória deste pesquisador aponta para um conhecimento da construção das relações entre as bases esportivas e políticas em nosso país.
Docente da Faculdade de Educação Física da Unicamp, Lino é coordenador do Grupo de Trabalho Temático "Políticas Públicas" – CBCE e pesquisador-líder do Observatório do Esporte - Observatório de Políticas de Educação Física, Esporte e Lazer - CNPq/Unicamp. O projeto, constituído por pensadores de distintas instituições de educação superior, tem como objetivo atender à demanda de uma área de concentração de estudos e pesquisas relativamente nova no universo da pós-graduação da educação física brasileira.
As observações provenientes do Observatório dão subsídios às discussões populares no movimento de acompanhamento da ação dos responsáveis pela execução das políticas, tenham elas natureza pública ou privada, governamental ou não governamental. Sediar as próximas edições de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, por exemplo, compõe as mesas de debate.
Para Lino, apoiar a realização do Mundial de 2014 sem rever os parâmetros da relação dicotômica governo/entidades de administração do esporte – no caso específico, a CBF é –, é “para se falar o mínimo, extremamente preocupante àqueles que denotam estarem atentos ao interesse público”.
“O legado do conhecimento lançado mão na organização desses eventos está longe de se aproximar das nossas universidades públicas e nada, absolutamente nada, garante que elas venham se apropriar dele”, afirmou, nesta entrevista à Universidade do Futebol.
Entre outros temas, Lino, que foi presidente do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, CBCE (1999/01 - 2001/03) e secretário nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer – SNDEL, do Ministério do Esporte (2003/06), assinando diversos livros, explica a razão pela qual as políticas sociais esportivas gestadas na esfera do Ministério do Esporte não possuem centralidade na agenda governamental.
Projeto de Lino, Observatório do Esporte atua na elaboração e execução de políticas, observando criticamente o âmbito da Educação Física
Universidade do Futebol – Seu campo de estudo é o das políticas de educação física, esporte e lazer. Como o futebol, enquanto manifestação cultural destacada no Brasil e no mundo, se insere neste campo?
Lino Castellani Filho – O futebol, para o Brasil e para o brasileiro, é muito mais do que uma modalidade esportiva. É quem lhes define identidade cultural por meio do esporte. Ele se faz presente desde o nascimento de um menino (e, cada vez mais, não só menino), quando se coloca uma chuteirinha à porta do quarto na maternidade, até nossa velhice, nos acompanhando ao longo da vida. Boa parte das vezes é através dele que construímos nossa auto-estima e fortalecemos nossos valores e vínculos sociais. Por tudo isso – e muito mais – ele não pode ser deixado à sua própria sorte...
É imperioso que o tenhamos como passível de política pública, em seu duplo sentido, de emanada da esfera governamental e a de voltada para o interesse público.
Universidade do Futebol – Quando se fala em uma abordagem científica para a Educação Física, o esporte e, por consequência, o futebol ainda há uma tendência para se considerar mais as ciências biológicas (ou biomédicas) do que as ciências humanas e sociais. O que você pensa sobre isso?
Lino Castellani Filho – Isso é expressão de um ranço conservador que ainda predomina tanto na esfera da Educação Física, quanto fora dela. É reflexo da gênese de viés positivista que perpassa a sua história, centrada numa relação paradigmática com a aptidão física construída por aqui, lá pelos idos do século XIX.
A possibilidade de superação dessa relação só se deu – e não por acaso – na primeira metade dos anos 80 do século passado, momento em que a própria sociedade brasileira dava passos significativos para sua redemocratização, depois de mais de duas décadas sob o jugo dos militares.
É nesse repensar que a perspectiva de outra relação paradigmática, de ordem histórico-social, ganha força, abrindo definitiva e irreversivelmente a possibilidade de olharmos para as práticas corporais – esportivas ou não – como construções humanas e, portanto, dotadas de sentido e significados históricos.
Universidade do Futebol – Recentemente foi realizada em Brasília a III Conferência Nacional do Esporte, após inúmeras etapas municipais e estaduais. Como participante do primeiro governo do Presidente Lula (2003-2006), compondo a equipe do Ministério do Esporte, qual a sua compreensão sobre o papel deste movimento e sua influência na política esportiva brasileira?
Lino Castellani Filho – As conferências se inserem na perspectiva de gestão democrática e popular que embasa a lógica de governo a partir de 2003. Neste sentido são bem-vindas. Não obstante, temos que estar bastante atentos às formas de suas materializações. No âmbito do campo esportivo – conservador e retrógrado, quando não reacionário –, vínhamos chamando a atenção para o risco de elas se configurarem como engodo e empulhação, à medida que a política real dá sinais evidentes de estar sendo construída em outros cenários e à revelia das suas (delas, conferências) deliberações.
Já tivemos a oportunidade de escrever sobre isso em nossa coluna especial.
III Conferência Nacional de Esporte e Lazer: intervir é preciso!
Políticas sociais esportivas gestadas na esfera do Ministério do Esporte não possuem centralidade na agenda do ME, garante Lino
Universidade do Futebol – Neste evento (III Conferência Nacional do Esporte), Orlando Silva Jr. declarou que quer que o esporte seja um direito para as pessoas não apenas na lei, mas, sobretudo, na vida, ajudando a produzir saúde e um ambiente social favorável. Como especialista em políticas públicas, você considera que as ações governamentais nas áreas do esporte e do lazer nos levam para esta direção mencionada pelo ministro do Esporte?
Lino Castellani Filho – Infelizmente, não. E o ministro sabe disso. As políticas sociais esportivas gestadas na esfera do Ministério do Esporte não possuem centralidade na agenda do ME e, por conseguinte, do Governo. Basta um simples olhar para a execução orçamentária daquela pasta para chegarmos a esta conclusão.
As políticas voltadas ao esporte de alto rendimento, nas quais se incluem os megaeventos esportivos, ganharam primazia por conta da conjugação da incapacidade do governo aliada à ausência, nele, de vontade política de reversão do referido quadro.
Como resultado, temos um cenário de total subalternização (consentida) da instância de governo responsável pela elaboração e execução da política esportiva, aos setores do campo esportivo que dele se apropriaram como senhores feudais desde os idos do Estado Novo.
Universidade do Futebol – Qual é a sua análise sobre a relação entre o Governo Federal e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), notadamente em vista à realização da Copa do Mundo de 2014 a ser realizada no Brasil?
Lino Castellani Filho – As entidades de administração do esporte brasileiro são dotadas de personalidade jurídica de direito privado. Em 2006, por ocasião da realização da II Conferência Nacional de Esporte, vimos frustrada pelos setores majoritários do campo esportivo (de índole conservadora, sempre é bom lembrar), intenção governamental – se não de todo, ao menos de parte dele — de estruturar o sistema nacional de esporte e lazer, ocasião em que haveria de se rever o grau de autonomia dessas entidades frente aos entes governamentais.
Agora, em 2010, o tema ressurgiu num tom de grandeza mais condizente com a vontade política governamental e não governamental de nele mexer, qual seja, irrisório.
Apoiar a realização da Copa-14 de futebol em nosso país sem rever os parâmetros da relação governo/entidades de administração do esporte – no caso específico, a CBF –, é para se falar o mínimo extremamente preocupante àqueles que denotam estarem atentos ao interesse público.
Relações entre Governo Federal e CBF causam preocupação às vésperas da realização da Copa do Mundo de 2014
Universidade do Futebol – Muito se tem falado sobre o “legado” dos megaeventos esportivos. Qual sua impressão a respeito dele? A realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos no Brasil é tão positiva assim para o desenvolvimento do país como vem sendo apregoado?
Lino Castellani Filho – Não, não é... Legado positivo está diretamente associado a gestão democrática, controle social, garantia de papel protagônico da esfera governamental em detrimento daquele a ser exercido pelas entidades esportivas destituídas de legitimidade social. Também sobre esse assunto já pude dissertar neste espaço.
Como sugestão à Universidade do Futebol, fica a de entrevistar a urbanista Raquel Rolnik, que tem muito a nos dizer sobre o tema do legado, notadamente na perspectiva de planejamento urbano.
Enquanto acadêmico, uma coisa posso afirmar: o legado do conhecimento lançado mão na organização desses eventos está longe de se aproximar das nossas universidades públicas e nada, absolutamente nada, garante que elas venham se apropriar dele.
Universidade do Futebol – O Projeto de Lei n° 5.186/05, que vem sendo discutido em plenário, trata da revisão da chamada “Lei Pelé”. Muitos profissionais da Educação Física e associações que os representam se colocaram contra e vêem no Artigo 90-E, que cria o “monitor do esporte”, como um dos temas mais polêmicos. Qual a sua posição sobre isso?
Lino Castellani Filho – A polêmica instaurada tem menos a ver com a relevância do assunto tratado (há outros muitos mais importantes à lógica das diretrizes e base do esporte nacional) e mais com a capacidade de dar repercussão ao tema dos que defendem a reserva de mercado aos profissionais de Educação Física.
Todavia, se nos afastarmos dos argumentos centrados na tese da regulamentação da profissão, defendida pelo Conselho dos Profissionais de Educação Física – toda ela arquitetada a partir da lógica cartorial de ordenamento societário, que a justifica —, somos levados a pensar na sua incorreção por partir do pressuposto de que para lidar com o ensino do esporte, basta tê-lo praticado.
Não há como negar a pobreza dessa linha de raciocínio. Isso por um lado; por outro, mais factível, o que assistimos é o cotejo entre duas forças conservadoras: a dos Conselhos Profissionais versus a dos ex-atletas.
Universidade do Futebol – Você é um dos coordenadores do Observatório do Esporte. Fale um pouco sobre ele. O que é? Quais seus objetivos? Que tipo de contribuição o Observatório pode oferecer à evolução da Educação Física e do Esporte no Brasil?
Lino Castellani Filho – O Observatório de Políticas de Educação Física, Esporte e Lazer (www.observatoriodoesporte.org.br) configura-se como um grupo de observação, estudos e pesquisas de políticas centradas nas áreas mencionadas.
Organizado sob a forma de grupo de estudos e pesquisas deste o ano de 1999, encontra-se cadastrado no Diretório de Grupos do Conselho Nacional de Pesquisa do Ministério de Ciência & Tecnologia do Governo brasileiro, CNPq/MCT, possuindo certificação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), universidade à qual eu — seu líder/coordenador — me encontro vinculado na condição de docente.
Diferentemente dos grupos tradicionais de estudos e pesquisas, sua natureza de observatório lhe empresta a característica de intervir direta ou indiretamente nas políticas da área, seja no processo de elaboração como no de monitoramento crítico de suas execuções. As observações dele derivadas subsidiam a sociedade civil organizada no seu movimento de acompanhamento da ação dos responsáveis pela execução das políticas, tenham elas natureza pública ou privada, governamental ou não governamental.
Constituído por pesquisadores de distintas instituições de educação superior brasileiras, muitos deles líderes de grupos em suas universidades — o que lhe define a singularidade de ter seus vínculos estabelecidos individual e institucionalmente —, além de jovens envolvidos em processos de iniciação científica, busca atender à demanda de uma área de concentração de estudos e pesquisas relativamente nova no universo da pós-graduação da Educação Física brasileira, por si só também nova, à medida que sua estruturação remonta ao final dos anos 70 do século passado.
Com efeito, estudos sobre políticas de Educação Física, esporte e lazer começam a ganhar evidência em nosso país no exato momento de seu processo de redemocratização, nos idos da década de 1980.
O advento de governos populares e democráticos conduz a um processo de abertura dos debates circunscritos à elaboração de políticas governamentais centradas em princípios comprometidos com a lógica da democratização da gestão, sinalizando para a procedência dos esforços da qualificação da participação popular na elaboração, execução e controle social das políticas brasileiras.
É dentro desse contexto sócio-político que o Observatório de Políticas de Educação Física, Esporte e Lazer - CNPq/Unicamp vem efetivando sua contribuição para o avanço tanto dos referenciais teórico-metodológicos para a elaboração e execução das políticas quanto no concernente à observação crítica das políticas em ação, seja aquelas existentes no âmbito governamental quanto às presentes no campo privado.
Universidade do Futebol – Como você analisa o futebol nos tempos atuais? E o que pode ser feito nesse período que antecede a realização da Copa 2014?
Lino Castellani Filho – Como um grande e lucrativo negócio. Mercadoria cara, produto de altíssima penetração no mercado do entretenimento – mas não só nele –, totalmente integrado aos tempos globalizados de hoje.
Assim como em outros negócios, o primeiro mundo é o grande importador de commodities essencial ao mundo futebolístico, abundante nos países de capitalismo periférico, exportadores da matéria prima conhecida como pé-de-obra...
Nesses anos pré-Copa de 2014, assistiremos em nosso país construtoras rindo a toa por conta dos ricos contratos de construção por elas assinados — libertos das chatices das exigências licitatórias, devidamente liberadas pelo motivo de urgência/urgentíssima —, ao lado da Coca-Cola e do Mc Donald's propalando a preocupação que têm com nossa saúde, propagando o esporte — ao lado de seus produtos — como grande definidor de nossa qualidade/estilo de vida...
Paradoxalmente, podemos afirmar no país do futebol a necessidade de uma "Universidade do Futebol", ao lado da aceleração do processo de sedimentação de nossa experiência democrática, necessária à participação popular no controle social de tudo que for girar ao redor desse megaevento esportivo.
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Benê Lima