Paulo Ghiraldelli Jr.
Durante séculos aceitamos como uma boa definição de conhecimento a forjada por Platão: crença verdadeira justificada. Mas, em 1963, com um paper de apenas três páginas, o estadunidense Edmund Gettier (foto à direita) colocou um bom obstáculo para a continuidade de vida dessa definição. Gettier forneceu alguns exemplos de como que a nossa definição não podia se sustentar. A conseqüência disso foi uma revolução na epistemologia. Jogávamos nossas fichas na justificação e, a partir daí, tivemos de desenvolver de modo melhor as teorias que apostavam não em justificação de crenças, mas nas causas (da produção) da crença.
“Crença verdadeira justificada” era a nossa definição de conhecimento porque nós, desde Platão, criamos a idéia de que um enunciado pode ser chamado de conhecimento à medida que se efetivam três ocorrências:
1) acreditamos no enunciado em questão;
2) o enunciado é, honestamente, uma crença nossa, e é uma crença verdadeira;
3) essa crença verdadeira está articulada a outros enunciados que a justificam.
Essa noção de conhecimento precisa de um adendo explicativo, pois aqui é necessário relembrar os manuais de lógica, quando eles separam “verdade” e “justificação”.
O que os manuais dizem é que a verdade é objetiva – sempre. Não há discussão sobre a verdade, e nem pode haver. Se há discussão, esta cai para o âmbito da justificação. Ou seja, a verdade é objetiva, subjetiva é a justificação. Explico.
Posso dizer “eu creio que há uma banana em cima da mesa” e, então, entender perfeitamente que a proposição p “há uma banana em cima da mesa” é objetiva, pois ela só possui dois valores de verdade: falsa ou verdadeira. Ou há uma banana em cima da mesa ou não há uma banana em cima da mesa. Assim, não é sobre o enunciado que cabe uma discussão, digamos, subjetiva. Uma vez que este enunciado é pronunciado, e ele é uma proposição – no caso, a proposição p–, ele escapa da boca de quem o pronunciou para ganhar vida objetiva, e tal “vida” funciona no âmbito da lógica; isto é, neste nível, p está desligada da questão da percepção (da banana) e da prova (de que banana esta em cima da mesa ou não). Então, o enunciado p “há uma banana em cima da mesa” é objetivo neste exato sentido – ele ou é falso ou é verdadeiro. Sobre ele, nenhum cético respeitável tem o que dizer. O cético que consideramos, quando diz duvidar, duvida não da verdade, mas do conhecimento. O que nos conta é que a justificação da proposição p “há uma banana em cima da mesa” não irá nos satisfazer. Afirma que desconfia que nós jamais teremos conhecimento, pois podemos ter a crença na proposição p e brigar com qualquer um assumindo quep é verdadeira (ou falsa), mas quando viermos a dar justificativas para a manutenção (ou não) dessa nossa crença, iremos nos complicar – sempre.
Assim, desde Platão, a tarefa do filósofo que faz epistemologia é a de criar mecanismos para a melhoria das justificações. E por isso mesmo um filósofo como Donald Davidson diz que precisamos distinguir, nas teorias de verdade, as que são do âmbito da lógica e as que são do âmbito epistemológico.[1] As da lógica não levam em conta a justificação, enquanto que as epistemológicas são inerentemente ligadas à discussão sobre justificações. Levando o raciocínio de Davidson mais adiante, poderíamos até dizer que muitas das divergências entre teóricos que lidam com o tema da verdade seriam dissipadas se observássemos esse duplo approach, o da lógica como distinto do da epistemologia.
Os filósofos que observaram isso e que, de fato, puderam seguir Platão, resolveram dar um passo a mais, para aperfeiçoar tecnicamente a definição de conhecimento. Eles disseram que conhecimento é a crença verdadeira justificada, sendo que a justificação deveria ser irrevogável. Este caráter de irrevogabilidade da justificação, então, é que seria a pedra de toque de toda a questão sobre se temos na mão uma crença verdadeira que é conhecimento ou uma crença verdadeira que não é conhecimento. Assim, ficaríamos tranqüilos na diferença entre afirmar uma crença, por um lado, e dizer que sabemos de algo cujo conteúdo é expresso pela tal crença, por outro lado.
Todavia, isso valeu até 1963. Ou, ao menos, tomávamos a definição neoplatônica sem grandes problemas até 1963. Nos Estados Unidos, exatamente naquele ano, o que Gettier fez foi propor o seguinte exemplo. Suponha Smith e Jones se inscrevendo para uma entrevista de emprego. Suponha também que Smith fique sabendo, diretamente pelo empregador, que não é ele que os proprietários têm em vista, e sim Jones. Este, por sua vez, aparece na entrevista e, na conversa com Smith, deixa transparecer que tem dez moedas no bolso da camisa. O que temos? Temos o seguinte:
1. Jones é o escolhido – crença verdadeira e justificada de Smith;
2. Jones tem dez moedas no bolso – crença verdadeira e justificada de Smith;
3. Conclusão de Smith, verdadeira e justificada: o homem escolhido tem dez moedas no bolso.
Bem, a entrevista ocorre, e eis que há uma surpresa. Sai o resultado da entrevista e Smith vê que é ele o escolhido, e não Jones (por alguma razão, na decisão, os patrões acharam um problema com Jones – isso não importa). Ora, Smith havia chegado à conclusão, e de modo correto, que o enunciado “o homem escolhido tem dez moedas no bolso” é verdadeiro. Pensa que errou, então. Todavia, se enfiasse a mão no bolso perceberia que também tem dez moedas (havia tirado uma camisa do guarda roupa e nesta camisa já estava o dinheiro, e jamais notou – isso não importa). Eis que sua conclusão é verdadeira: “o homem escolhido tem dez moedas no bolso”. E é uma conclusão justificada, pois a inferência é correta: de duas crenças verdadeiras e justificadas ele tirou uma terceira, verdadeira e justificada. A lógica não foi maculada. No entanto, não podemos dizer que essa crença de Smith, embora verdadeira e justificada, seja conhecimento, algo que indique que ele “sabe”. A conclusão pode ser chamada de crença verdadeira e justificada, mas as razões da justificação que poderiam nos levar a dizer que ele “tem conhecimento” não são as razões apontadas por ele, Smith. Ele tem crença verdadeira justificada, mas não temconhecimento. Seria um erro usar o verbo saber, no caso.
Essa virada de Gettier na filosofia, que poderia ter alimentado o cético, acabou não alimentando tanto quanto à primeira vista poderia parecer. Pois o que ocorreu foi que os filósofos começaram a deixar de lado a definição que apela para justificações e passaram a buscar definições de conhecimento a partir decausas. Em vez de ter o enunciado, e então buscar justificações, agora, para se ver se há ou não conhecimento, toma-se o enunciado em questão para investigar o que o produziu. Estamos hoje no meio de investigações no campo da teoria do conhecimento que nos levam a causas – são as teorias causais do conhecimentoque ganham espaço hoje em dia. E esse campo só se abriu para tais perspectivas, ao menos com tal clareza filosófica, há poucas décadas.
Mas o que é um teoria causal do conhecimento? Resumindo ao máximo: uma teoria do conhecimento é causal quando ela pretende explicar o conhecimento única e exclusivamente com o apelo a causas. Por exemplo, você sabe do que ocorre ao seu redor na medida em que o que ocorre atinge sua vista e causa o impulso elétrico que lhe chega ao cérebro e que é devolvido ao nervo ótico de determinada maneira, etc. E você sabe que Colombo aportou no continente que hoje denominamos de América de um modo também causal: um historiador escreveu isso em um livro e este livro foi entregue para você na escola, e as letras (junto com a luz) impressas no livro causaram em você essa condição de quem sabe que Colombo descobriu a América.
É claro que, nesse caso, há uma nova discussão a ser feita, que a da distinção entre “fatos” e “valores”. Há os que dizem que o que você vê é fato enquanto que o que você leu está crivado por valor, e isso faria grande diferença etc. Em geral, chamamos de positivistas os que pensam assim. Mas, para filósofos como John Dewey, Hilary Putnam, Richard Rorty, Donald Davidson e vários outros (pragmatistas, de um modo geral), a distinção fato-valor não se sustenta, então, para eles, uma teoria causal do conhecimento deve receber boas vindas.
O problema, então, se existe, é ver como que a distinção fato-valor pode ser colocada de lado e, em seguida, como que colocando de lado tal distinção, podemos evitar o chamado reducionismo fisicalista, o que no passado chamávamos de a “desconsideração materialista” pela consciência ou alma, uma desconsideração que estaria no sentido de negar a liberdade como condição humana, etc. Há uma plêiade de outras discussões envolvidas aqui. Todavia, é difícil voltar para antes de 1963. Portanto, há de se admitir que também na filosofia, e não só nas ciências, há progresso.
@ 2010 Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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Benê Lima