Sinopse

"Neste espaço encontra-se reunida uma coletânea dos melhores textos, imagens e gráficos sobre o futebol, criteriosamente selecionados e com o objetivo de contribuir para a informação, pesquisa, conhecimento e divulgação deste esporte, considerando seu aspecto multidisciplinar. A escolha do conteúdo, bem como o aspecto de intertextualidade e/ou dialogismo - em suas diversas abordagens - que possa ser observado, são de responsabilidade do comentarista e analista esportivo Benê Lima."

quinta-feira, novembro 19, 2009

A paixão do povo
O clube de futebol é, porventura, a forma mais degradada da divinização, um absoluto consubstanciado na embriaguês paroxística da vitória
José Antunes de Sousa

Dizer que o futebol é a festa da nossa gente é proferir um truísmo – tão evidente é a força contagiante e electrizante deste jogo.

Não é difícil, por outro lado, alinhar, quase de um fôlego, as principais razões (ou desrazões?) sociais e, a montante destas, a desordem pessoal para, com base nelas, se caracterizar o terreno propício à irrupção da paixão pelo futebol – que a paixão galopa lá onde a consciência dormita.

Num dos seus romances, o escritor-filósofo Vergílio Ferreira oferece-nos o seguinte diálogo:

“- Um tipo uma vez matou-se porque o clube dele perdeu.
-Que é que tens a dar-lhe em vez do clube?” (Até ao fim, 254).

Pois é. O clube de futebol é, porventura, a forma mais degradada da divinização – é o sucedâneo laico da unificação social à volta do desejo de absoluto que nos dilacera o coração, um absoluto consubstanciado na embriaguês paroxística da vitória.

Mas sendo isto assim, que o é, não é menos verdade que assim é tratando-se sobretudo do futebol – ninguém pode ignorar o efeito particular que este jogo exerce sobre massas informes de gente que demandam os estádios. Que tem, pois, assim de tão especial o futebol?

Que todos os brasileiros vibrem com uma vitória de Massa ou de Barrichello, como vibraram com as de Piquet ou Senna, é natural, que a vitória é sempre um bom bálsamo para massajar o orgulho nacional. Mas haverá alguma vitória (mesmo que seja das meninas do voleibol) que se possa comparar à loucura colectiva que varre literalmente, de lés a lés, este país-continente com a vitória num campeonato do mundo de futebol?

Veja-se, por exemplo, à hora a que escrevo estas linhas, a onda de amargura e desespero que assola a alma dos argentinos, habituados ao sucesso e agora confrontados com a ameaça real e inaudita de se verem fora do mundial da África do Sul do próximo ano. Ou a névoa que, apesar de se realizar no estádio da Luz o jogo com a Hungria, se abateu, espessa e lúgubre, sobre o coração aflito dos portugueses, em seriíssimo risco de se terem que contentar em torcer pelo Brasil nesse planetário torneio, onde se joga, mais do que futebol, dinheiro, prestígio, fama e poder**.

E aqui a primeira grande razão que ajuda a explicar a impressividade social deste desporto único, que é o futebol: a metáfora bélica que o enforma, como defende, por exemplo, Desmond Morris. E bem sabemos como é sobretudo através do exercício bélico que os povos projectam o símbolo afirmativo do seu poder, um poder que se esgrime pela lúdico-agonística mediação de um jogo de futebol.

Neste contexto de alegoria antropológica, os jogadores de campo constituir-se-iam, comefeito, em réplica simbólica dos caçadores que, disparando as suas flechas, procuravam fixar, dominar e matar as suas presas. E, nesta coreografia venatória, o papel do guarda-redes (goleiro) assemelhar-se-ia ao da mãe que tudo faz para proteger as suas crias das investidas dos caçadores.

É nele tão flagrantemente imperativo o dever da defesa a todo o custo, que a um goleiro que ouse marcar um golo na baliza adversária tendemos a vê-lo como um espécimen exótico, celebrado mais que tudo pela surpresa que o seu feito provoca – todos nos recordamos, por exemplo, de Chilavert.

Mas há mais: constitui elemento adicional de arrebatamento e paixão a circunstância de ser uma modalidade praticada num campo que, à semelhança do campo de batalha, está, de resto como os demais desportos colectivos, dividido em duas partes, mas que, neste caso do futebol, está exposto ao sol, à chuva, à intempérie. Ou seja, há uma congénita matriz de rusticidade que ajuda a embravecer a contenda e a conferir-lhe um mais acentuado teor bélico.

Uma segunda e não menos importante razão para a popularidade do chamado desporto-rei tem a ver com a sua simplicidade normativa: qualquer criança entende e assimila imediatamente as regras básicas do jogo – e isso favorece a espontaneidade lúdica.

Uma terceira razão: a sua simplicidade instrumental que permite um acesso expedito e imediato à sua prática – uma bola de trapo e eis meia dúzia de garotos a jogar futebol na esquina de uma qualquer rua do bairro.

E, finalmente, uma muito importante – entre outras certamente, que as haverá. Refiro-me ao teor transgressivo e bizarro do padrão gestual base deste desporto: joga-se com os pés!

Revolucionário, sem dúvida, este facto, já que os membros superiores, mais concretamente as mãos, sempre detiveram o primado, sem dúvida nobre, de criar cultura, provocando sentido através da acção humana.

As mãos sempre foram concebidas como os tentáculos da alma – do coração e do cérebro. As mãos sempre foi aquilo que mais à mão teve o nosso cérebro para concretizar as suas intenções. Daí que todos os desportos conhecidos até então se praticassem com as mãos, as mãos como símbolo de poder – por isso o bispo impõe as mãos no candidato ao ministério sacerdotal e o curandeiro exerce o seu poder curativo impondo as mãos sobre o paciente.

Os pés, pelo contrário, sempre foram encarados com acessório útil no equilíbrio e locomoção – nunca se lhes deu muita importância, porém. Historicamente, os sapatos são a última aquisição do vestuário e abundam povos em que a maioria da sua população continua a andar descalça. Mais: em Portugal, quando uma jovem rompe a relação com o namorado, diz-se até, em gíria popular, que “lhe deu com os pés”, sublinhando com isso a tónica de humilhação que tal atitude envolve.

Ora conceber um desporto basicamente jogado com a parte mais desprezível e distante do centro de comando, o cérebro – eis o escândalo e a total surpresa. É, pois, em grande parte esta perplexidade cultural gerada pela bizarria do gesto que, aliada à surpresa de com os pés se conseguir fazer praticamente o mesmo (nalguns casos, melhor!) que se faz com as mãos, ajuda a explicar a ébria adesão a este jogo de pessoas geograficamente situadas nos antípodas. Talvez porque esta transgressividade gestual do futebol encerra um ínvio apelo ao interdito – e bem sabemos como é universal e irresistível em nós o fascínio pelo fruto proibido, que é sempre o mais apetecido.

Talvez por isso também se possa dizer que a matriz genética do futebol é do tipo multitudinário – gentes, as mais diversas (Vergílio Ferreira afirma num dos seus Contos que “o Futebol é a única sociedade sem classes conhecida”), acotovelando-se em bancadas improvisadas e abraçando-se indiscriminadamente e em êxtase na celebração do golo.

Até que se intrometeu o império indiscreto dos Media que, ao dinamitarem o espaço físico do evento, amplificaram e compactaram o espaço público das emoções, que, assim, se generalizaram e potenciaram - eis a actual vivência massiva do fenómeno do futebol.

É certo que continua a ser do povo essa paixão, mas é cada vez mais uma paixão em rede e que tende, por isso, a dispensar o momento único de comunhão das multidões no recinto de jogo.

Perigo: num futuro não muito distante, estádios às moscas. Que ainda se não nota isso no Brasil? Olhem que aqui, em Portugal, nota-se e muito. É mesmo um fenómeno muito preocupante.

*José Antunes de Sousa é doutor e professor do Instituto Piaget, de Portugal, e seu texto foi mantido integralmente no idioma praticado naquele país.

**Com uma vitória por 1 a 0, em Montevidéu, a Argentina garantiu a classificação direta para a Copa do Mundo de 2010, relegando o Uruguai para a disputa da repescagem com a Costa Rica. Já Portugal, em território europeu, luta no qualificatórico com Bósnia-Herzegovina, a quem bateu na primeira partida, em Lisboa, por 1 a 0 – o jogo de volta ocorrerá nesta quarta-feira (18 de novembro).

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